Extra pode ser multado em R$ 11 milhões por discriminar consumidor de periferia

Unidade do hipermercado do Jardim Ângela, em São Paulo, só entregava carne depois de o cliente passar pelo caixa e pagar pelo que havia adquirido no açougue

No Extra do Jardim Ângela, clientes recebem bandeja vazia até pagar pela carne; na região da Paulista, situação “normal”

São Paulo – Gestora operacional da Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia (Anip), Fabiana Ivo denunciou e o jornalista Rodrigo Ratier reportou a discriminação cometida pelo supermercado Extra. O resultado: a empresa pode ser multada em até R$ 10,9 milhões. Ex-moradora do Jardim Ângela, Fabiana Ivo foi, a pedido da mãe que ainda vive no bairro do extremo sul de São Paulo, comprar carne no açougue do Extra. Lá constatou que os moradores recebiam uma bandeja vazia com o código de barras e o preço a pagar. Mas só depois do pagamento no caixa o produto era entregue ao comprador. Diante da situação de desconfiança premeditada, Fabiana fez o que todo cidadão deve fazer: denunciou em suas redes uma discriminação de origem empresarial que já ocorria há quase um ano. “Isso é uma afronta a toda a população das quebradas, duvido que o mesmo acontece no Extra do Morumbi.”

Professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, Rodrigo Ratier tem uma coluna na seção Ecoa, do portal UOL, e fez também o que todo bom jornalista deve fazer. Foi a uma unidade do Extra Brigadeiro, a pouco metros da Avenida Paulista, checar se a medida também era adotada por lá. Desse modo, Ratier comprovou a discriminação do Extra aos moradores do Jardim Ângela – região com 300 mil habitantes e situada a 30 quilômetros do centro da capita. Depois de sua postagem, a notícia bombou, e o fato acabou sendo notícia em diversos portais. O Procon-SP informou nesta terça (19) que vai multar o Extra por prática “discriminativa e vexatória”.

Crime contra o consumidor

“Acredito que a multa vem para ajustar conduta. Essa conduta preconceituosa com as periferias não dá mais para passar batida. Precisamos evidenciar esses espaços que criam condições para humilhar aqueles e aquelas que já estão se sentido assim”, afirma Fabiana Ivo. “Fico feliz que o meu post na minha rede social tenha tomado essa dimensão. Que outras mulheres e homens das periferias o façam. Que tenhamos a coragem de denunciar tudo aquilo que tira a nossa dignidade como humanos.”

Ratier lembra que o Jardim Ângela é o bairro paulistano com maior proporção de população preta e parda dos 96 distritos da capital: 60,1%. A proporção de habitações em favela, de 53,9%, é a segunda maior do município. Os dados são do Mapa da Desigualdade 2020, da Rede Nossa São Paulo.

A discriminação do Extra feriu o Código de Defesa do Consumidor, disse a Ratier o advogado Igor Britto. “O Código de Defesa do Consumidor proíbe em diversas disposições que pessoas consumidoras recebam tratamento discriminatório de qualquer natureza”, afirma Britto, diretor de relações institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

“Quando um estabelecimento comercial estabelece padrões de atendimento diferenciado para seus clientes por considerar que sua cor, sua origem ou sua condição social é motivo de desconfiança ou que justifica um padrão de segurança diferente ao que submete aos demais, está não apenas violando as normas de defesa do consumidor, mas também ignorando direitos fundamentais de tratamento igualitário”, completa.

Falha de procedimento

O Procon-SP informa que comprovada a discriminação do Extra, com a adoção da medida somente em unidades de bairros específicos, a multa será aplicada a partir do faturamento global da rede. Caso tenha sido uma determinação local do gerente da loja no Jardim Ângela, a multa terá como base o faturamento daquela unidade.

O grupo Extra divulgou nota e afirma que a medida não faz parte de sua política de atendimento. E que “se trata de uma falha de procedimento” sobre a qual “tomou providências para que a prática fosse imediatamente descontinuada”.

Mudando o mundo

O jornalista Rodrigo Ratier considera que sua colaboração nessa história foi, “e espero que continue sendo”, realizar o trabalho com seriedade. “Fiquei pensando muitas coisas. Quando a gente entra no jornalismo para ‘mudar o mundo’ – meu caso –, o risco de se decepcionar e daí desistir ou derivar para o cinismo é grande. Essas duas décadas de carreira têm sido um aprendizado de que a mudança é possível, mas de uma forma diferente daquela que, talvez ingenuamente, eu imaginava no começo da trajetória.”

Ratier acreditava que por meio de análises e opiniões a informação conseguiria incidir no debate público. “Mas hoje estou cada vez mais convencido de que a grande tarefa do jornalismo é a informação, precisa e contextualizada. Aprendi que a denúncia se faz, primeiro, com sensibilidade para enxergar o inaceitável no que já parece naturalizado. Afinal, o relato é de que a prática discriminatória do Extra já durava quase um ano. Depois, com cuidado e respeito às fontes, não abrindo mão de apresentar diferentes versões e direitos de defesa, mas com firmeza e busca do relato – não vejo outra palavra – mais objetivo possível dos fatos.”

Para o professor, “objetividade não significa neutralidade”, sobretudo diante de situações injustas e desumanas. E desse modo o relato objetivo deve buscar o retrato mais acurado possível dessas mazelas. “Se houver conclusões a serem tiradas, elas devem estar explícitas. Buscar informação dessa forma toma mais tempo, exige muito mais recurso, supõe reflexão a cada passo na apuração. E esperar que as instituições funcionem, que a sociedade aja. Nesse caso, agiu, e o mundo está mudando, um pouquinho que seja. Minha colaboração foi, e espero que continue sendo, realizar meu trabalho com seriedade.”

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