Por Lucas Ferraz.
Nascido em Roma, o físico Giorgio Parisi é um típico professor universitário dos velhos tempos: cabelos desarrumados, a mesa um tanto caótica e uma genuína curiosidade no outro, sobretudo se o outro provém de uma cultura como a brasileira, país no qual tem imensa admiração por causa do forró, estilo que dança, e por escritores como João Guimarães Rosa.
Aos 73 anos, Parisi acaba de ganhar o prêmio Nobel de física ao lado de dois cientistas especializados no clima, o norte-americano de origem japonesa Syukuro Manabe, de 90 anos, e o alemão Klaus Hasselmann, de 89.
Além de uma medalha de ouro, a metade do prêmio de 986 mil euros — cerca de R$ 6,2 milhões — ficará com o italiano, enquanto o restante será dividido entre Manebe e Hasselmann.
“Jamais esperava ser premiado junto com dois climáticos. O Nobel mostra que física e clima são duas coisas diversas, mas que há qualquer relação entre os dois”, afirmou Parisi em entrevista em vídeo à BBC News Brasil. “O planeta Terra é um sistema complexo, talvez muito mais complexo do que conhecemos, exatamente por contemplar tudo dentro de si. Todo o desenvolvimento do mundo, os sistemas ecológicos, é um sistema complexo”.
Os sistemas complexos e o caos atmosférico são objetos de pesquisa de Parisi desde o final dos anos 1970. As décadas de estudo e algumas descobertas deram ao cientista o Nobel, conforme indicado pela academia sueca. “Não há nada mais fascinante do que encontrar uma ordem no caos”, comenta.
A Itália já somou até agora, contando todas as áreas, 21 prêmios Nobel — Parisi foi o sexto físico italiano premiado com a distinção, o que demonstra a força da disciplina no país. Professor da Universidade Sapienza de Roma, ele é vice-presidente — após ser o presidente por alguns anos — da Academia Nacional dei Lincei, existente desde o início do século 17 e responsável por promover a ciência, e pesquisador do Instituto Nacional de Física Nuclear da Itália.
Interessado no Brasil, país onde nunca pisou, Giorgio Parisi lamenta a situação da pandemia, o governo de Jair Bolsonaro e as recorrentes notícias sobre o aumento da pobreza.
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – A academia premiou o sr. com o Nobel por causa da “descoberta da interação entre a desordem e as flutuações nos sistemas físicos desde o nível atômico à escala planetária”. Como se explica isso?
Giorgio Parisi – A primeira coisa a entender é que, na natureza, existem os sistemas complexos. O mundo, e nós mesmos, somos cercados por esses sistemas. (…)
Se você pegar um cachorro, por exemplo, pode me dizer alguma coisa sobre ele: o que ele está fazendo naquele momento, se come, se brinca, se dorme. Ele pode estar fazendo tanta coisa. Depois, por uma intervenção externa, ele pode mudar completamente: alguém provoca um barulho e esse cachorro se assusta e começa a pular. O sistema complexo mostra que um cachorro, que estou descrevendo em nível comportamental, é formado por tantas coisas, células, órgãos como fígado e cérebro, e esses órgãos podem estar doentes, alguns têm milhares de celulares. São sistemas que provocam um efeito cascata.
BBC News Brasil – Ou seja, pode ser qualquer coisa, com diversas implicações.
Parisi – Um cristal de sal não é um sistema complexo. Ou um copo de água, já que todos são feitos do mesmo átomo. Mas quase tudo que temos ao nosso redor é um sistema complexo. O ponto é que a física, por muito tempo, se ocupou a estudar o infinitamente pequeno, as coisas pequenas, átomos ou demais substâncias. Depois ela olhou para o infinito, as estrelas, as galáxias, o universo, a escala cósmica.
A outra fronteira da física são os sistemas complexos, mas estamos ainda distantes de ter compreendido tudo. Por isso o Nobel me foi concedido, pois o trabalho que faço desde o final dos anos 1970 é colocar esses sistemas complexos na física.
A física é muito diferente das outras disciplinas: a física tenta simplificar o mundo, ou estudá-lo de forma simplificada.
Um exemplo: Galileu Galilei, quando começou a estudar o movimento das bombas de canhão que caíam em Pisa, negligenciou o efeito do atrito da atmosfera. Havia um modo simplificado. O grande sucesso da física, desde Galileu, foi o de fazer grandes simplificações e depois removê-las. Cinquenta, cem anos depois de Galileu, a física começou a levar em consideração os corpos que se movem na atmosfera por meio do atrito.
Estudar os sistemas complexos é difícil exatamente porque não é simplificável. Se você simplifica um sistema complexo, ele se torna simples, não é mais complexo. Eu comecei a fazer estudos sobre os sistemas complexos, mas diversos outros pesquisadores também promoveram e se dedicaram a esses estudos.
BBC News Brasil – Qual a relação do sistema complexo com o clima? Isso foi citado na premiação do Nobel.
Parisi – Eu tento adivinhar. O planeta Terra é um sistema complexo, talvez muito mais complexo do que conhecemos, exatamente por contemplar tudo dentro de si. O clima não é uma coisa fácil. As grandes glaciações da terra, no passado, são eventos nos quais a temperatura da terra abaixa repentinamente, passa de uma situação de calor para uma situação de frio intenso. Isso acontece porque a Terra, de qualquer modo, pode estar essencialmente em dois estados diversos, frio ou calor. Pode haver várias situações.
Fiz estudos sobre as glaciações. A ideia de base da motivação do prêmio, de me colocar junto com dois climáticos, mostra que física e clima são duas coisas diversas, mas que há qualquer relação entre os dois. Devo dizer que jamais esperava ser premiado junto com os climáticos.
O olhar complexo sobre o universo chega até a escala planetária. Todo o desenvolvimento do mundo, os sistemas ecológicos, é um sistema complexo, um dentro do outro. Depois, há um estudo quantitativo do planeta que, em outra ideia, é feita a partir da climatologia, de personagens que construíram os primeiros modelos detalhados do clima do planeta, dividindo-o em faixas. Quiseram premiar uma inovação que une coisas aparentemente diversas.
Uma coisa fundamental é que muito do dióxido de carbono que é emitido a partir da atividade humana é absolvido pelo oceano, mas por qual parte do oceano? Vai para a parte fria ou quente do oceano? São problemas fundamentais para as pesquisas atuais. Entrar nesses detalhes, na mistura das águas que vai para a superfície, ou para a profundida dos mares, é algo de enorme complexidade.
BBC News Brasil – O sr. disse que se ocupa do caos. É o caos dos sistemas complexos ou tem algo aí maior, quase filosófico?
Parisi – O caos no sentido da imprevisibilidade. O movimento da Terra em relação à Lua, ou em relação ao Sol, é um movimento completamente certo. Podemos fazer previsões sobre o próximo eclipse com grande precisão. Sabemos que os cientistas do passado sabiam fazer isso muito bem.
A ideia de caos, ao menos do ponto de vista científico, são movimentos que não são facilmente previsíveis. Se fizermos a previsão do tempo daqui dois, três dias, podemos acertar com grande probabilidade. Daqui a 20 dias, por exemplo, não é uma tarefa fácil, geralmente não acertamos. É alguma coisa que se movimenta de forma imprevisível dentro de uma certa escala. Isso, na atmosfera, chamamos de sistema caótico.
Não há nada mais fascinante do que encontrar uma ordem no caos. Das partículas aos sistemas neurais, até os componentes que formam um pedaço de vidro, há sistemas cujas regras estão todas ainda por descobrir e o meu trabalho é tentar encontrá-las.
A palavra caos entrou na física nos anos 1960. O melhor exemplo é uma mesa de sinuca. É um exemplo clássico do sistema caótico. Na primeira e na segunda jogada, você pode prever onde a bola estará parada nas jogadas sucessivas. Mas depois da terceira e quarta jogada, e assim por diante, torna-se imprevisível.
Evidentemente a palavra caos é sugestiva. Em muitos ambientes ela tem outro significado. Mas, do ponto de vista técnico e científico, é essa imprevisibilidade que não é absoluta. Não podemos fazer previsão do clima numa distância de tanto tempo, mas estamos convencidos que no próximo ano não vai nevar em Manaus. Ou sabemos, por exemplo, que no verão fará mais calor que no inverno.
BBC News Brasil – A escola italiana de física é reconhecida mundialmente, com outros colegas que já foram premiados com o Nobel. O que a faz uma escola tão notável?
Parisi – Para ter bons físicos, é preciso ter bons estudantes de física. E para ter bons estudantes em física, é necessário que bons estudantes se inscrevam em física.
A Itália teve no passado grandes físicos, como Edoardo Amaldi (1908-1989), que fez uma interlocução muito importante entre física e a política. Por anos, a física foi uma das disciplinas mais bem financiadas pelo Estado italiano, o que permitiu estudos e experimentos necessários para o seu desenvolvimento.
E tivemos também muita gente capaz, estrangeira, que veio para a Itália na Primeira Guerra Mundial (1914-18), e mais tarde após a Segunda Guerra (1939-45), que trouxe muita inovação. Um deles foi o russo Gleb Wataghin (1899-1986), que também foi professor da Universidade de São Paulo. Foi um luxo ter Wataghin aqui. Ele voltou à Itália depois da guerra, após o período no Brasil. Ele foi fundamental para a física italiana, e tinha ainda muito conhecimento internacional. O país acabou criando um ambiente propício para o estudo da física.
BBC News Brasil – O sr. é um respeitável dançarino de forró. Como começou essa relação com a cultura brasileira?
Parisi – Por um certo período, até 2004 ou 2005, a última coisa que me interessava no mundo era a dança. Mas me aproximei de forma casual, numa academia que frequentava, a partir das danças gregas. É difícil dizer isso, mas sei dançar de forma decente uma série de bailes gregos, danças populares. A Grécia é riquíssima, é um país com centenas de danças diversas.
Depois, encontrei por acaso um anúncio para aprender forró universitário aqui perto da universidade (Sapienza, em Roma). Não entendi nada, achei que era uma lição de forró para alunos e professores universitários. Ninguém sabe realmente das coisas…
Depois, aprendi que era um estilo de forró (risos). E me interessei muito. É um ambiente muito simpático. Não é só uma dança criativa, mas o sentido comum das pessoas, de ir fazer as aulas, cria um ambiente muito agradável. A dança é um evento social.
BBC News Brasil – Qual tipo de forró o atrai mais?
Parisi – Conheço a diferença entre o forró pé de serra e o forró universitário. A isca, quando conheci o estilo, era o forró universitário, mas logo depois passamos a dançar o pé de serra, que é bem diferente. Sei que o chamado forró eletrônico está na moda, mas ele não faz sucesso na Itália. Conheço algo da música e da cultura brasileiras. Gosto mais do estilo tradicional, como as canções de Luiz Gonzaga.
BBC News Brasil – O sr. já visitou o Brasil?
Parisi – Infelizmente ainda não, preciso conhecê-lo. Uma vez ia com minha família, em 2009. Mas pouco antes de partir, aconteceu aquele terrível acidente com o avião da Air France que caiu sobre o oceano Atlântico. Minha família ficou com medo e desistimos da viagem. Lamentei muito. Deveria ir a Minas Gerais. Li Grande Serão: Veredas, de Guimarães Rosa, um livro belíssimo. Queria muito ir a Minas Gerais, o sertão descrito no livro. Esse é um dos melhores livros do século 20, um livro que era muito conhecido na Itália cinquenta anos atrás, mas que nos últimos anos vem sumindo, as pessoas não conhecem mais, o que é uma pena. Espero que ainda seja um livro lido no Brasil.
BBC News Brasil – O sr. está acompanhando as notícias brasileiras?
Parisi – Sim. Conheço bem a situação brasileira. Lamento muito a eleição de Jair Bolsonaro. (…) E lamento muito a situação da pandemia, o aumento da pobreza… (…) Ter Bolsonaro como presidente, durante a pandemia, foi uma das piores coisas que poderiam acontecer com o Brasil. Espero muito que ele seja chutado do cargo.