Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Conjecturas? Poderia indagar, perplexo, o leitor. A perplexidade seria compreensível. Os economistas gostam de se apresentar com fiéis aos fatos e, mais ainda, aos hard facts. Ah, leitor, mas um dos segredos mais bem guardados da nossa profissão é que não dispomos quase nunca, para não dizer nunca, de hard facts.
Pode-se até mesmo duvidar se há algo que se possa apresentar como “fatos”, sem aspas. O fato é que “não há fatos, só interpretações”, como dizia Nietzsche. Em geral, mas particularmente no campo da economia. Todos os nossos fatos, especialmente os soft facts, estão contaminados por perspectivas, valores, conjecturas. Sem querer complicar desnecessariamente, o único fato é que não existem fatos – e mesmo esse fato pode ser questionado. E o economista, em particular, está sempre discorrendo sobre temas que ele não domina verdadeiramente.
Bem, isso a título de simples introdução. O meu tema hoje é a China e, dentro dela, o rumoroso caso Evergrande. Ora, para a China vale a fortiori o que foi dito nos primeiros parágrafos. Por pelo menos dois motivos. O primeiro é que os chineses não têm o menor respeito pela transparência. Cultuam, ao contrário, a opacidade mais radical. O segundo motivo é que tudo que se diz e se lê sobre a China no Ocidente está irremediavelmente afetado por medos profundos. Os ocidentais, em especial os americanos, temem, por um lado, a concorrência geopolítica da China. Em consequência, existe há muito tempo, desde os anos 1990 pelo menos, uma torcida feroz contra a China. Já perdi a conta de quantas vezes economistas e organizações ocidentais previram o colapso da economia chinesa. Até agora, todas as previsões negativas se mostraram erradas. E os chineses continuaram, impávidos, a sua ascensão econômica no mundo.
Mas há uma outra razão para a torcida contra a China. É que os americanos não querem ter de explicar a seu distinto público interno e externo como é possível que um sistema econômico tão diferente do capitalismo ocidental possa ser tão bem-sucedido no longo prazo, deixando na poeira as economias desenvolvidas dos dois lados do Atlântico Norte e, também, o Japão. Como explicar que uma economia profundamente estatizada e controlada pelo Estado – que se autodesigna como “socialista de mercado” – possa exibir um dinamismo persistente, desafiando invariavelmente o pessimismo dos seus críticos e as doutrinas econômicas tradicionais? Eis aí um tema para um ensaio de no mínimo 800 páginas, que dificilmente um ocidental teria condições de escrever.
Chego, enfim, ao tema deste artigo: os problemas financeiros da gigantesca incorporadora Evergrande. E feitas todas as ressalvas acima, peço vênia para apresentar as minhas modestas conjecturas.
Não me parece, primeiramente, que o caso Evergande possa ser considerado um “momento Lehman”, como tem sido dito repetidamente na mídia ocidental. Ou seja, não será um evento capaz de desencadear uma crise sistêmica na economia chinesa e na economia internacional. Para começo de conversa, cabe lembrar que o colapso do banco de investimentos Lehman, em 2008, foi um ponto fora da curva em termos das práticas ocidentais. As autoridades monetárias e fiscais dos EUA cometeram a imprudência de deixar uma instituição financeira importante quebrar, provocando uma corrida contra outras instituições dos dois lados do Atlântico Norte. Decidiram dar uma “lição de moral” a uma entidade financeira particularmente irresponsável, mas foram obrigados a bater em rápida retirada diante da crise financeira sistêmica que se configurou.
Não acredito que venha a ocorrer um colapso da Evergrande, no sentido de inadimplências seguidas de falência. O Estado chinês não assiste ao drama da companhia de braços cruzados. Trata-se da segunda maior incorporadora imobiliária de uma economia que depende especialmente da construção imobiliária e dos investimentos em infraestrutura. A construção responde por uma parte expressiva da formação bruta de capital fixo.
Chance zero de que o Estado resolva permitir um colapso para dar uma lição de moral. Haverá, então, um “risco moral”? Em outras palavras, para evitar um risco sistêmico a China estaria disposta a dar um mau exemplo, salvando empresários irresponsáveis? Esse raciocínio, leitor, me parece um exemplo de aplicação indevida do modo ocidental de pensar à realidade completamente diferente da China. A empresa e suas obras serão “salvas”, de alguma maneira, e parece provável que o Estado se encarregue de honrar a maioria das suas obrigações, pelo menos as internas que são a maior parte do passivo. Mas os empresários, acionistas e executivos serão responsabilizados, provavelmente com uma severidade incomum no Ocidente. Que sentido faz falar em “risco moral”?
Evidentemente, a intervenção não será fácil para a China. A Evergrande é uma empresa de grande porte e haverá expressivo custo fiscal na absorção de suas obrigações pelo Estado ou por empresas públicas. Parte dessas obrigações, as dívidas bancárias internas, já são indiretamente passivos com o Estado, uma vez que a quase totalidade do sistema financeiro chinês é estatal. Porém, a China pode bancar esses custos. O Estado chinês tem o que os americanos chamam de “deep pockets” e pode arcar com o prejuízo – tanto mais que ele é sobretudo interno, dado que as dívidas da companhia são preponderantemente em yuan.
Mais preocupante para a China é o efeito adverso que a crise da Evergrande terá sobre a taxa de crescimento da economia do país. Depois de uma rápida recuperação no primeiro semestre, as projeções de crescimento do PIB já vinham sendo rebaixadas em razão do novo surto de COVID-19 associado à variante delta. Deve haver agora diminuição adicional do crescimento. Isso se deve não só a dimensão da Evergrande e à já referida importância da construção imobiliária para a economia do país, mas também ao aumento das dúvidas e incertezas. A Evergrande é um caso isolado? Ou há mais empresas em dificuldades no setor?
Para o resto do mundo, o principal canal de contágio parece ser comercial, já que as dívidas externas da Evergrande são relativamente pequenas. A China é a maior parceira comercial para grande parte, senão a maior parte, dos países. Assim, o Brasil, por exemplo, sofre não apenas porque tem na China o principal mercado para suas exportações, mas também porque uma desaceleração chinesa prejudica outros países que são importantes clientes para o País. Como a China é a maior economia do planeta (por paridade de poder de compra), a retração do seu ritmo de crescimento afetará o crescimento do resto da economia mundial.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 1 de outubro de 2021.
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017 e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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