Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“Em seus olhos brilhava o amor à vida.” (Soares).
Para Sálvea, Dilma, Marly, Ana e todas do COMDIO.
Eu cursei mais de dois anos de um mestrado em ciências políticas, depois de vários outros anos e mais dois diplomas – antropologia e sociologia. Mas um dos acontecimentos políticos melhores e mais importantes da minha vida aconteceu dentro de casa, com a minha mãe, idosa.
Eu vinha de uma família sindicalista. E eu também, sindicalista, como meu pai. Enquanto, ela, Mainha, se formava desde criança naquela importantíssima escola freireana, a Da Vida. Embora o seu Mestre, era um Judeu, lá do Oriente Médio. O Mais Famoso do Mundo, segundo ela.
De qualquer forma, o sistema patriarcal a reservava, forçadamente, a “guardar” todo o seu Pulsar.
Eu adoro explicar o episódio da minha Epifania, com ela. Da primeira vez que o câncer parecia ter ido embora, perguntei – ao telefone, de Barcelona a Olinda – como ela estava de saúde. Fiquei tão maravilhosamente espantado quando ela soltou-se a explicar a sua participação na Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, que demorei a interromper e voltar a perguntar, sorrindo, por ela – e não pelo Brasil. Na mais importante experiência institucional de democracia participativa na área da saúde, naquela Conferência, minha mãe – como delegada eleita representando as pessoas idosas de Pernambuco e o Conselho Municipal que presidia – deu-me mais uma (entre muitíssimas!) lição de vida.
Hoje é o Dia Mundial do Idoso. Foi decretado pela Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 1990. Demorou tantos anos para aprovar-se esse dia, desde a Assembleia Geral específica, em Viena, em 1982, até a mais recente, em Madri, em 2002 (onde o que era somente um Dia Mundial, virou um Plano de Ação Internacional sobre os direitos de envelhecimento digno), que eu aprendi com “as amigas de Mainha” – hoje, amigas de toda a família – que um dia como esse não é somente para lembrar-se como Um Dia Mundial, sem nada mais. Chegar a um Dia Mundial é a soma de pequenas grandes lutas.
O ecossistema de pequenos milagres operados desde a “coincidência” de anos que eu saí para morar fora do Brasil (em Barcelona, em 2005), aponta para dois fatores complementares, que me ajudam a entender o salto qualitativo da minha mãe, idosa: a primeira vez na história do país em que não fomos governados pelas velhas oligarquias disfarçadas (sim, me refiro aos anos de Governo do PT); e o quanto a expressão Democracia Participativa deixou profundas marcas na consciência “política” de algumas pessoas, como ela. Tanto que ainda hoje, na Espanha – e nem vos falo sobre como a Europa trata os Seus Idosos – uma gerontóloga social (!) me afirma que os maiores avanços vem, exatamente, daquele Brasil. Desse, não.
Me sai a revelação de um equívoco extraordinário, escondido em uma pergunta: como uma dona-de-casa, dedicada à maior parte da vida do marido e filhos (e parentes e netos e uma infinita lista de fazer mais pelos outros do que por ela mesmo), consegue Transcender Conscientemente dessa maneira?
O segredo deste sucesso estaria, certamente, na biografia. Paulo Freire, novamente. Olhamos tanto (e com razão!) pra escola formal, pra academia, que ofuscamos a capacidade de consciência crítica, inata, imanente, ontológica, presente na biografia de pessoas como Dona Lia. E são milhões. Uma maravilha.
E hoje, a pergunta é outra, ainda sobre o mesmo “ecossistema”: o que há de presente – por exemplo – em cada comemoração de aniversário na Associação das Idosas de Rio Doce, onde Mainha foi presidente, na celebração de uma data histórica para o Sistema ONU? Ou melhor, qual o retorno daquela “radicalidade democrática”, sobre o que foi, é e virá? O que não é somente ONU, distante, mas sim Cotidiano?
Em tempos de tanta desgraça (sim, da Sindemia Fascista), a resposta eu comecei a perceber na videoconferência de apresentação desta publicação: https://www.editoracrv.com.br/produtos/detalhes/36264-observatorio-ilpi26-em-tempos-de-pandemiabruma-articulacao-em-defesa-dos-direitos-das-pessoas-idosas
De fato, leio já no seu começo, pelo prefácio escrito a partir de uma (eu garanto!) recíproca admiração: “sistematizações sobre um pulsar de luta, de resistência e de vida. […]” (Raquel Soares, na obra citada).
Este dia Mundial da Idosa, mais que uma homenagem, nos revela, portanto, um coquetel explosivo. E que exploda mesmo. Ser Idosa é um grito de já não poder nem querer esperar mais nada. “É pra ontem!”.
A média de esperança de vida em todo o Mundo, aumentou de 46 a 68 anos, entre 1950 e 2010, segundo a OMS. Os dois maiores fenômenos populacionais são Envelhecimento e Migrações. E suas relações.
O Ministério da Saúde do Brasil afirmava, em 2018, que 75% dos idosos brasileiros são usuários exclusivos do SUS, e que 70%, aproximadamente, tem pelo menos uma doença crônica. Prevent Senior neles?!
Qual segmento da população (mais que sofreu!) morreu por causa da Sindemia (muito mais que uma Pandemia!)? A Sindemia é a politização genocida da Pandemia: não estamos no mesmo barco dos ricos. O Céu pode até ser para todos; mas a Sindemia é a escolha dos empobrecidos para morrer primeiro.
Onde está, enfim, a força ativa do Pulsar sistematizado no Prefácio de Raquel (Luta, Resistência e Vida)?
A meu ver, no ainda silencioso cotidiano de Idosas (sim; posso afirmar com dados e com meus próprios olhos que a imensa maioria participativa é de mulheres, empobrecidas – e negras, não por acaso).
É daí que está mais viva que nunca, para mim, o esperançar – verbo freireano – de milhares de Donas Lias.
Jamais desmerecer a especialidade da minha. Mas ela, como ninguém, sabe – hoje, ainda – que a força é a multiplicação, germinada, da semente de milhares de Mainhas.
Viva!
PS.: Para “não concluir”, com um desafio. Todos os anos, a ONU determina um lema para cada Dia Mundial da Idosa (doravante, por coerência, o digamos assim, no feminino). Sabe qual é o lema deste 2021? A luta contra a exclusão digital das idosas. Parou pra pensar em quantas, exatamente por isto, não poderemos fazer chegar reflexões como estas, pelas dificuldades no acesso à Internet? Percebeu que – novamente! – serão elas o segmento mais prejudicado pelo avanço imparável das novas tecnologias? Sobre isso, também, o que poderemos fazer? Que tal humanizar ainda mais o mundo, para começar e para terminar?
Além de todas as saudosas e maravilhosas heranças da minha mãe, guardo comigo – quase sempre ligado, na minha casinha – o seu telefone celular, com Whatsapp e Facebook aberto. Como vício ou como virtude, nos melhores e piores dias (e principalmente nestes), sonho com escrever um livro das mensagens que Ainda Hoje, Conscientemente, suas melhores amigas a seguem escrevendo – ou gravando mensagens de voz. Os sonhos nos mantém vivos. E eu sinto, convicto, que essas mensagens Nunca estão sem resposta.
Ah! Dia 12 de dezembro, também pela ONU, é o Dia Mundial da Cobertura Sanitária Universal. Viva o SUS!
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Flávio Carvalho é sociólogo, escritor e participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya.
@1flaviocarvalho, @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
Flávio, boa tarde! Que belíssima homenagem e eu estou muito emocionada, pois a sua mainha faz muita falta… Mas está conosco! LIA, PRESENTE!