O jovem Benjamin

O marxismo de Walter Benjamin deveu muito ao seu envolvimento inicial com o anarquismo e o surrealismo.

A discussão sobre a obra de Walter Benjamin tradicionalmente teve como foco sua crítica cultural, geralmente deixando de lado seu engajamento com o marxismo. Ainda que tenha emergido nos últimos anos no interior do marxismo discussões substanciais sobre os escritos de Benjamin, focando principalmente em seus trabalhos mais “materialistas” dos anos 30, seus escritos marxistas iniciais – que representam uma forma bastante heterodoxa e pouco usual de associar anarquismo e comunismo –, contudo, merecem uma atenção maior.

Antes de 1924, o anarquismo parece ser a inspiração política principal do jovem Benjamin. Em sua conferência “A vida dos estudantes”(1915), ele presta homenagem ao “espírito tolstoiano” do serviço aos pobres, que cresceu “das ideias dos mais profundos anarquistas e em comunidades monásticas cristãs”. Mais significantemente, em seu ensaio de 1921 “Crítica da Violência”, podem ser encontradas reflexões diretamente inspiradas por Sorel e pelo movimento anarco-sindicalista.

Benjamin não esconde o seu total desdém pelas instituições do Estado, como a polícia (“a mais degenerada forma de violência que alguém possa imaginar”), ou o parlamento (“um espetáculo deplorável”), e aprova sem reservas as críticas antiparlamentares dos bolcheviques e dos anarco-sindicalistas – duas correntes que ele considera pertencentes ao mesmo campo.

Ele também celebra a proposta soreliana de uma greve geral como forma de ação coletiva, que “atribui a si mesma como missão única e exclusiva a destruição da violência do Estado”. A estratégia de Sorel, que Benjamin designa pela palavra “anarquista”, parece-lhe a mais apropriada, sendo “profunda, ética e autenticamente revolucionária”.

Em um documento do mesmo período (que permaneceu não-publicado durante sua vida), O direito de usar a violência. Notas para um socialismo religioso (1920-1921), Benjamin explicitamente descreve seu próprio pensamento como anarquista: “A apresentação desse ponto de vista é uma das tarefas da minha filosofia moral, na qual o termo Anarquismo pode certamente ser usado. É uma teoria que não rejeita o direito de usar a violência enquanto tal, mas ao invés disso recusa a qualquer instituição, comunidade ou indivíduo que atribua a si próprio o monopólio da violência”.

É portanto evidente, a partir desses documentos iniciais, que a primeira escolha ético-política de Benjamin foi o anarquismo – a rejeição radical e categórica de todas as instituições estabelecidas e, em particular, do Estado. Foi apenas alguns anos depois – estranhamente depois do fim do grande ascenso revolucionário na Europa de 1917-1923 – que Benjamin descobre o marxismo.

A onda revolucionária provavelmente o tornou mais receptivo às ideias comunistas, mas foi só tardiamente, em 1924, pela leitura de História e Consciência de Classe de Gyorgy Lukács, e conhecendo a professora bolchevique e ativista Asja Lácis – por quem ele se apaixonou – que ele realmente foi atraído pelo marxismo, uma forma de pensar que se tornaria em breve um componente chave de suas reflexões políticas e teóricas.

Em uma carta para Gershom Scholem em Setembro de 1924, Benjamin reconhece as tensões entre o que ele chama de “as fundações do meu niilismo” e a dialética de Lukács; o que ele mais admirou em História e Consciência de Classe foi a articulação entre teoria e prática que forma “o núcleo filosófico duro” do livro e dá a Lukács uma tal superioridade que faz com que “qualquer outra abordagem não seja nada além de burguesa e fraseologia demagógica”.

Dois anos depois, em outra carta para Scholem, Benjamin escreve que ele estava considerando entrar no Partido Comunista Alemão, mas insiste que isso não significa abjurar (abzuschwören) seu “antigo Anarquismo”.

Finalmente, depois de muita hesitação, Benjamin decidiu não entrar no Partido Comunista. Ele permaneceu um simpatizante próximo do partido, mas mantendo um distanciamento crítico. Um exemplo desse apoio pode ser encontrado nos seus Diários de Moscou (1926-1927), onde ele expressa uma visão negativa da tentativa do governo soviético de “sufocar a dinâmica do processo revolucionário” – um argumento que tem afinidades óbvias com as visões críticas desenvolvidas pela oposição de esquerda do Partido Comunista Russo (Trotsky, Zinoviev, Kamenev).

Se Benjamin não desistiu do seu “antigo anarquismo”, como ele explicou a Scholem, então como ele procedeu à vinculação deste com o projeto comunista? Seu mais importante documento anarco-marxista é, sem dúvida, seu ensaio de 1929 Surrealismo, o último instantâneo da inteligência europeia.

Nos primeiros parágrafos desse artigo, Benjamin descreve a si mesmo como um “observador alemão” situado em uma “posição altamente delicada entre a fronda anarquista e a disciplina revolucionária”. São compatíveis? Em 1927, nas ruas de Paris, comunistas e anarquistas marcharam juntos em manifestações e motins contra a condenação dos anarquistas norte-americanos Sacco e Vanzetti; os surrealistas estavam presentes; e Benjamin celebra a “excelente passagem” no romance de André Breton Nadja (1928) que se refere aos “dias agradáveis pilhando Paris por ocasião do episódio de Sacco e Vanzetti”.

Para Benjamin, o surrealismo é algo mais do que o trabalho de “uma outra clique de literatos” – uma opinião que ele atribui a “especialistas” medíocres e filisteus. O surrealismo é muito mais do que um “movimento artístico”: ele é uma tentativa de explodir a esfera da poesia de dentro, graças a um conjunto de experimentos mágicos com implicações revolucionárias. Mais especificamente, ele é um movimento “visionário” que é ao mesmo tempo profundamente libertário (anti-autoritário) e em busca de uma possível convergência com o comunismo.

Como Benjamin define a dimensão anarquista do surrealismo? Tentando alcançar o Pólo Norte do campo magnético surrealista, ele escreve: “Desde Bakunin, a Europa perdeu um conceito radical de liberdade. Os surrealistas têm um”.

É difícil imaginar uma formulação melhor – em poucas e incisivas palavras – do núcleo inquebrável de escuridão do movimento fundado por André Breton. De acordo com Benjamin, foi “a hostilidade da burguesia em relação a cada manifestação de liberdade intelectual radical que empurrou o surrealismo para a esquerda, para a revolução e, após a guerra de Rif, para o comunismo”. De fato, logo depois da guerra colonial francesa no Norte da África, Breton e outros surrealistas entraram, em 1927, no Partido Comunista Francês.

Para Benjamin, a figura que preparou e induziu o “giro à esquerda” do surrealismo foi Pierre Naville, o antigo diretor do jornal La Revolution Surrealiste e o autor de A Revolução e os intelectuais (1926) – um texto no qual Naville propõe que seus amigos surrealistas participem do movimento comunista. De Naville, Benjamin tomou emprestada a definição da verdadeira atitude revolucionária como “a organização do pessimismo”.

Essa tendência à politização e o compromisso crescente não significaram, para Benjamin, que o surrealismo tinha que abandonar suas qualidades mágicas e libertárias. Ao contrário, Benjamin acreditou que essas qualidades lhe permitiria exercer um papel único e insubstituível no movimento revolucionário: “para ganhar as energias da embriaguez para a revolução – é sobre isso o projeto surrealista, em todos os seus livros e iniciativas. Assim pode ser chamada sua tarefa mais autêntica. Se é para realizar essa tarefa, o surrealismo deve, todavia, abandonar sua postura unilateral e aceitar uma aliança com o comunismo”.

Que tipo de comunismo tem a simpatia de Benjamin? Aparentemente não o oficial: no ensaio sobre o surrealismo, Bukharin – que era, no tempo em que o artigo foi escrito, o principal ideólogo do marxismo soviético após Stalin – é rejeitado (junto com Carl Vogt, materialista vulgar do século XIX) como um “materialista metafísico” e Trotsky é favoravelmente citado, ainda que ele já tenha sido expulso do partido e estava exilado naquele momento.

Em uma carta de 1973 para Soma Morgenstern, Gershom Scholem escreve o seguinte sobre a política de Walter Benjamin: a despeito de sua decisão de não entrar para o partido em 1926, “não há dúvida de que ele continuou a relatar sua simpatia para com o comunismo… Ele era, poder-se-ia dizer, o que alguém chamaria hoje de um trotskista”.

Isso me parece um pouco exagerado. É verdade que Pierre Naville, o representante principal nesse ensaio da aproximação entre o surrealismo e o comunismo, foi expulso em fevereiro de 1928 do Partido Comunista Francês por seu apoio à oposição trotskista. Mas diferentemente de Naville, Benjamin não pensava que os surrealistas deveriam desistir de suas inclinações anarquistas. Ele simplesmente insistiu na necessidade de combinar a “embriaguez” anarquista com organização e disciplina:

“Para eles não é suficiente, como sabemos, que um componente ectásico esteja vivo em cada ato revolucionário. Esse componente é semelhante ao anárquico. Acentuá-lo exclusivamente seria subordinar a preparação metódica e disciplinada para a revolução a uma práxis que oscila entre o exercício e a véspera da festa”

O que é esse “intoxicação”, essa Rausch (embriaguez) cujas energias Benjamin ansiosamente tenta trazer para a revolução? Em Rua de Mão Única, Benjamin refere-se à intoxicação como uma expressão da relação mágica entre os ancestrais e o cosmos, mas ele sugere que a experiência (Erfahrung) e a Rausch [embriaguez] que certa vez caracterizaram a relação ritual com o mundo desapareceram na sociedade moderna. No artigo da Literarische Welt, ele parece redescobrir essa relação, sob uma nova forma, no surrealismo.

O artigo de Benjamin contém severas críticas aos surrealistas, mas a conclusão é uma celebração relativamente incondicional de Breton e seus amigos: “Nesse momento, apenas os surrealistas conseguiram compreender as palavras de ordem [do Manifesto Comunista]. Eles trocam a mera interpretação de feições para encarar um alarme que a cada minuto soa durante sessenta segundos”.

Qual o significado dessa enigmática alegoria? Talvez Benjamin esteja sugerindo que a importância única do surrealismo reside na habilidade de ver cada segundo como a porta estreita pela qual entra a revolução – para parafrasear uma imagem que ele usaria não muito depois (na última das teses Sobre o conceito de história).

Quase não há referências explícitas ao anarquismo nos últimos escritos de Benjamin. Todavia para um observador perspicaz como Rolf Tiedemann – o editor da primeira edição alemã de seus escritos completos – as teses Sobre o Conceito de História de Benjamin “podem ser lidas como um palimpsesto: sob o marxismo explícito o antigo niilismo torna-se visível, e arrisca levá-lo à abstração da prática anarquista”.

O comentário é interessante, mas o termo “palimpsesto” não é o mais apropriado: a relação entre ambos os componentes, para Benjamin, não é uma mecânica de superposição, mas muito mais uma combinação alquímica de substâncias previamente destiladas.

Desenvolvendo seu argumento Tiedemann declara, novamente em referência às Teses de 1940, que “a representação da práxis política em Benjamin é muito mais o entusiasmo do anarquismo do que a sobriedade do marxismo”. O problema desse comentário é que ele opõe como mutuamente exclusivas as atitudes que Benjamin tentou precisamente associar, porque elas lhe parecem complementares e igualmente necessárias para a ação revolucionária: “entusiasmo” libertário e “sobriedade” marxista.

De maneira mais sistemática do que Tiedemann, Jürgen Habermas analisou a dimensão anarquista das últimas reflexões de Benjamin de forma a submetê-las a uma crítica radical a partir de sua perspectiva histórica evolucionista e “modernista”. Em um artigo bastante conhecido sobre Benjamin dos anos 70, Habermas rejeita a tentativa de Benjamin de radicalizar o materialismo histórico com a ajuda de elementos messiânicos e libertários:

“Essa tentativa deve falhar porque a teoria materialista do desenvolvimento social não pode ser simplesmente combinada à concepção anarquista dos Jetztzeiten [tempos-agoras] que intermitentemente colide com o destino como algo exterior. Uma concepção da história antievolucionista não pode ser alinhavada ao materialismo histórico como se fosse o capuz de um monge – alinhavado ao materialismo histórico que leva em conta não apenas a dimensão das forças produtivas, mas a dominação dessas forças produtivas também”.

O que Habermas considera um erro é precisamente, do meu ponto de vista, uma das grandes qualidades do marxismo de Benjamin, e sua superioridade sobre todas as formas de “evolucionismo progressista”: sua capacidade de compreender um século caracterizado pela interconexão direta entre modernidade e barbárie – uma interconexão que tomaria a forma, alguns anos após a sua morte, da figura catastrófica de Auschwitz e Hiroshima.

Uma concepção evolucionista da história, que acredita no progresso necessário das formas de dominação, dificilmente poderia dar conta do que foi o fascismo – exceto como um parêntese inexplicável, uma regressão incompreensível “em meados do século XX”. Agora, como Benjamin havia escrito nas Teses, não é possível compreender o significado do fascismo se alguém o considera apenas uma exceção à norma histórica que seria o progresso.

Alguns anos depois Habermas renovou sua polêmica discussão com Benjamin em seu livro de 1985 O discurso filosófico da Modernidade. Agora ele opôs aqueles que sustentam uma visão não-continuista da história, como Karl Korsch, Benjamin, “e os ultra-esquerdistas”, aos pensadores, como Karl Kautsky e os protagonistas da Segunda Internacional, “que viram no desenvolvimento das forças produtivas uma garantia de transição evolutiva da sociedade burguesa ao socialismo”.

Benjamin e os “ultra esquerdistas”, de acordo com Habermas, “puderam apenas imaginar a revolução como um salto para fora da eterna recorrência do barbarismo da pré-história, como a explosão da continuidade de toda história”. Essa atitude, argumenta Habermas, “inspirada pela consciência surrealista do tempo, tem algo em comum com o anarquismo daqueles que, seguindo Nietzsche, opõe o nexo universal de poder e delírio apelando à soberania do êxtase […], resistência local e revoltas involuntárias de uma natureza subjetiva ferida”.

A interpretação de Habermas tem muitos problemas. Antes de tudo, seu conceito de “barbarismo pré-histórico” é completamente inadequado: todo o esforço de Benjamin visava precisamente mostrar que o barbarismo moderno não foi uma “recorrência” de uma selvageria “pré-histórica”, mas um fenômeno especificamente moderno – uma ideia que dificilmente pode ser aceita por um defensor tão fiel da modernidade como Habermas.

Contudo, ele compreendeu com grande perspicácia tudo aquilo que as reflexões finais de Benjamin devem ao surrealismo e ao anarquismo: a revolução não é a coroação da evolução histórica – o “progresso” – mas a interrupção radical da continuidade histórica da dominação.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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