Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“E vamos botar água no feijão” (Feijoada completa, Chico Buarque)
Realizamos (o Coletivo Brasil Catalunha) em 2006, um perfil da comunidade brasileira em Barcelona. Na pergunta sobre saudade apareceu em destaque o Feijão.
Na Espanha, um brasileiro chega a perder-se em meio aos mais de 35 nomes que se atribuem ao feijão, dependendo da região, variedade e forma de cozinhar: fríjol, habas, habichuelas, judías, alubias, etc. Um debate interminável de comparações polêmicas (“Fava é uma coisa e Feijão é outro!”), que recomendo muito cuidado ao entrar.
É tão importante para o Brasil que tornou-se a principal comida típica mencionada fora do país, pela derivação Feijoada. Feijoada Brasileira em Barcelona, por exemplo, é sinônimo de Festa, na minha opinião. A palavra Samba se agarra automaticamente na minha mente, de forma deliciosamente imperativa. Já veem o quanto eu gosto.
Recentemente, descobriu-se que a Feijoada não é somente no Brasil a mais mencionada tradição culinária de raiz escravocrata (graças ao desespero criativo dos famintos milhões de escravizados, que aproveitavam os restos do porco desperdiçados pelos racistas proprietários, os latifundiários de sempre). Há um belíssimo documentário na Netflix que revela as origens da feijoada também nos Estados Unidos, e de como influenciou toda a forma de cozinhar naquele país. Se chama, em castelhano, A pedir de boca: Cómo la cocina afroamericana transformó EE.UU. Eu o assisti e me emocionei diversas vezes.
A cada dia que passa, torna-se impossível esquecer que O Principal Erro de análise sociológica da chamada Formação Social do Brasil foi Nunca haver atribuído à Escravidão o papel que ela ainda hoje merece na história do nosso país – contada ou pelos vencedores, pela oligarquia política; ou pela oligarquia acadêmica (por mais simpatias que esta última tenha tido junto ao pensamento abolicionista).
Cheguei a estudar na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e hoje me arrependo de cada pé que pisei na instituição que leva o nome do que conheci como abolicionista, agora que tenho acesso aos mais indignantes comentários racistas que Nabuco (também!) chegou a proferir. Sim, o abolicionismo foi tão amplo que também acolheu a diversidade de racismos estruturais brasileiros – isso não é novidade em relação àquele contexto.
E me permito nem entrar a falar em Gilberto Freyre, por enquanto…
Revisionismo? Sempre! É o meu dever ético, do alto do meu privilégio branco de Cientista Social, diante de uma história que se reconstrói a cada dia. E hoje mais que nunca. Não é passado a menina negra que ainda hoje será assassinada, ao cumprir-se as atuais estatísticas policiais.
E aqui falo do meu Sentimento, pedindo para isto muita atenção. Cansei de Racionalismos interesseiros.
Enquanto não houver revisão profunda (psicanalítica, eu diria) de como o Racismo Estrutural, junto ao Racismo Implícito dentro do próprio campo progressista, distorceu o que Florestan Fernandes tão bem chamou de Os Significados do Protesto Negro, não haverá nenhuma possibilidade de analisar a saída do armário do atual Fascismo Brasileiro.
Porém, foi nas vésperas do feriado brasileiro da (Fake) Independência, que Bolsonazi deu-se o mais novo tiro no próprio pé, ao comparar Feijão com Fuzil. Ecoou pelo mundo inteiro mais uma tentativa de desviar a atenção das denúncias de corrupção da sua criminosa família: alguém lhe perguntou em público sobre a dificuldade de comprar Feijão, caríssimo (pela sua desastrosa política econômica): “compre Fuzil”, comparou Bolsonazi.
Há uma evidente primazia da linguagem de baixo nível na falta de discurso presidencial como equivocada estratégia de aproximar-se da linguagem das ruas. Como se pobreza fosse sinônimo de burrice. Que nunca foi! Qualquer mínima busca na Internet colecionará insultantes bobagens presidenciais. Já ficou clara ser uma estratégia denominada “cortina de fumaça”: esconder denúncias dos roubos que a família comete. Acontece, não por coincidência, quando o governo necessita desviar a atenção da opinião pública. A cada vez que mais uma investigação policial recai sobre um dos fihos da mais famosa Familícia brasileira.
Como toda estratégia de marketing político (ou pura imbecilidade, o que não é incompatível), às vezes a tentativa de remédio piora a doença.
Falar mal do feijão, comparando-o com uma arma de fogo, foi outra burrice. E isso no exato momento em que milhões de brasileiros voltam ao terrível Mapa da Fome. Não conseguem comprar o que já foi o mais básico produto, presente no imaginário nacional de todo o imenso país.
A terrível comparação do Feijão com o Fuzil deveria ser tiro de misericórdia. Não no povo. Mas no governante.
Claro que eu não queria terminar esse texto com metáfora violenta, linguagem de fascista. Porém, é dito popular: quem com ferro fere, com ferro será ferido.
Viva o Feijão. Fora o Fuzileiro.
Aquele abraço. E Fora, Desgraçado!
Barcelona, 5 de setembro de 2021.
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Flávio Carvalho é sociólogo, escritor e participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya.
@1flaviocarvalho, @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor.
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