Tóquio – Passados os primeiros dias dos Jogos Paralímpicos já foi possível ver diversas modalidades praticadas de modo adaptado ao formato original, em maior ou menor grau, e também algumas que só existem neste padrão esportivo. É certo que, via de regra, o público em geral ainda tenta entender como funciona uma partida de goalball ou um jogo de bocha, admira um basquete em cadeira de rodas onde se quica menos a bola, ou enxerga pouco do rúgbi tradicional no praticado por cadeirantes. Fato é que os jogos são eletrizantes, cheios de emoção e disputas acirradas. O que é normal, afinal são praticados por atletas. E é isso o que eles são: atletas.
Além da visibilidade que os Jogos Paralímpicos dão a essas novas modalidades, há mais espaço para falar das pessoas com deficiências que competem em Tóquio. E, principalmente, ajudar a esquecer os discursos clichês sobre superação e aceitação de qualquer resultado como se fosse bom. O chamado capacitismo, uma forma de discriminação da pessoa com deficiência que parte do pressuposto de que ela é incapaz ou menos capaz do que as sem deficiência. Sugere que há um padrão ‘correto’ para a estrutura corporal e mental e, por consequência, que a deficiência seria uma falha, um problema, uma doença. Não é.
O jornalista Marcelo Romano, um dos mais especializados em esporte olímpico do país, defende que a avaliação dos atletas nos Jogos deve ser feita comparando-se o desempenho no evento com o que ele fez no chamado ‘ciclo olímpico’, período de quatro anos entre uma edição e outra da Olimpíada. Se o competidor manteve-se sempre entre os top 3 no ciclo e fica em quinto, sexto nos Jogos, por exemplo, o resultado é ruim. Se manteve-se entre o 12º, 13º lugares nos quatro anos e fica na mesma quinta colocação na Olimpíada, o resultado é acima do esperado. O mesmo vale para os Jogos Paralímpicos. Avalia-se comparando o que é comparável. Partir do princípio de que qualquer coisa que o atleta com deficiência faz já está bom só porque ele fez, sugere uma versão de que, em princípio, aquele ou aquela esportista é “incapaz”.
“Especial é para quem você paga uma pizza”
A velocista Verônica Hipólito, um das grandes atletas paralímpicas do Brasil, viralizou uma frase em recente comentário feito ao canal SporTV. “A gente sempre escuta ‘uma grande superação o movimento paralímpico, um PCD. Não tem superação, pessoal. O que tem de verdade é muito treino, muita resiliência. A gente reclama igual a todo mundo, tem problema, tá tudo bem. A deficiência é só uma característica como qualquer outra”. E completou: “especial é aquela pessoa que você paga uma pizza, um açaí, alguma coisa maneira. Ninguém nunca me pagou, então não me chamem de pessoa especial. Só me chamem quando pagar”, falou, em tom de brincadeira, mas carregada de seriedade.
"Especial é aquela pessoa que você paga uma pizza, um açaí, uma coisa maneira" ??
Como disse @vehipolito, "a deficiência é só uma característica como qualquer outra" #Paralimpíadasnoge #Tokyo2020 pic.twitter.com/ZSPb2DimuE
— ge (@geglobo) August 24, 2021
Daniel Dias, uma lenda da natação, com 27 medalhas, sendo 14 de ouro em Jogos Paralímpicos, em entrevista para o GE, foi no mesmo sentido. “É importante evitar termos que a maioria ainda usa, como ‘especial’, ‘deficiente’ e ‘portador de necessidades especiais’. Essas palavras são um eufemismo, como se fosse necessário amenizar a deficiência. O mais adequado é falar ‘pessoa com deficiência’.”
Suzana Schnarndorf, também da natação, acrescenta que não há “atleta normal” e sim “atleta sem deficiência”. Phelipe Rodrigues, outro que compete nas piscinas, acrescenta: “nós atletas só temos um propósito, que é melhorar a cada dia, batalhar contra o tempo, melhorando não nossas deficiências, mas nossas performances.
Sim, há superação
Contudo, a palavra superação não é proibida ao falar de atletas paralímpicos. Ela cabe quando usada em um contexto onde a deficiência não está em pauta. A triatleta Jéssica Messali, por exemplo, competiu após passar por 10 cirurgias em um período de 25 dias, todas realizadas a poucas semanas dos Jogos. Ela queimou gravemente os pés em uma sauna no dia 6 de julho. Além de retirar parte da pele, teve de amputar sete dedos e meio. No final da tarde de sábado (28), pelo horário do Brasil, ela caiu na água para nadar 750 metros, depois cumpriu 20 quilômetros de ciclismo e mais cinco de corrida. Chegou em quarto lugar, bem pertinho do pódio. Não há outra palavra que defina o desempenho de Jéssica que não superação.