O Amigo do Meu Tio, curta documentário de Renato Turnes e Vicente Concilio, estreia no Curta o Gênero.
Por Milena Moraes.
Em 1987 o pai de Vicente Concilio comprou uma filmadora VHS e passou a registrar momentos do cotidiano da família. Em 2021, Vicente reencontrou algumas dessas fitas que, ao serem digitalizadas, reviveram parte de suas memórias de criança LGBTI+.
Em parceria com o documentarista Renato Turnes (que dá continuidade à sua investigação sobre a memória da comunidade LGBTI+ iniciada com o premiado Homens Pink), o mergulho no acervo familiar de imagens VHS resultou em um documentário poético sobre expectativas, performances, afetos e desejos que compõem memórias de infâncias em conflito com o mundo heteronormativo dos adultos.
Uma coprodução das produtoras La Vaca e Vinil Filmes, O Amigo do Meu Tio estreia na programação da IX Mostra Internacional Audiovisual Curta o Gênero.
O IX Curta o Gênero acontecerá no período de 17 a 29 de agosto, em formato virtual.
Neste período, o catálogo de curtas-metragens escolhidos para a Mostra Internacional Audiovisual estará disponível para o público no site do Curta o Gênero (https://curtaogenero.org.br/) e os debates com os/as/es realizadores serão transmitidos pelo canal do evento no Youtube.
O Amigo do Meu Tio
Documentário, 8′
2021
Sinopse:
Um mergulho nas fitas VHS filmadas pelo pai de Vicente entre 1987 e 1993 resulta em um documentário performativo sobre a experiência da infância não normativa.
Um filme de Renato Turnes e Vicente Concilio
Com Vicente Concilio
Direção e edição: Renato Turnes
Roteiro: Renato Turnes e Vicente Concilio
Fotografia: Luiz Pio Concilio
Trilha Sonora Original e Mixagem: Hedra Rockenbach
Edição de Som: Renato Turnes
Masterizações: Marko Martinz
Produção Executiva: Loli Menezes e Milena Moraes
Uma coprodução La Vaca e Vinil Filmes
Página do filme
https://www.cialavaca.com/oamt
Vicente
“O Amigo do Meu Tio” nasceu de um texto escrito dentro da oficina “Como eliminar Monstros”, conduzida pelo Ronaldo Serruya e Fabiano de Freitas. Lá, abordando o impacto do hiv/aids na arte e cultura brasileiras, um encontro foi dedicado à obra de Cazuza, a forma como seu diagnóstico refletiu em seu repertório e como sua vida e morte simbolizaram a luta contra a epidemia para toda uma geração.
Eu não tinha como não lembrar da minha própria história: a epidemia era pauta fortíssima justamente no momento em que eu entrava na adolescência, e nós éramos o público alvo de muitas ações referentes ao uso da camisinha e do sexo seguro. Mais do que isso: a ênfase dos discursos nos “grupos de risco”, sempre lembrando que gays eram mais vulneráveis, imprimia certo terror para a minha geração.
Ali eu lembrei da história do Chulé. Sim, ele foi uma figura que me cativava. De todos os amigos do meu tio, era ele quem eu desejava. A palavra desejo pode parecer forte para uma criança de 8/9 anos, mas havia sim isso: vontade de encostar, de sentir um abraço, de idealizar um beijo. O passeio de moto foi o momento em que isso aconteceu de forma mais contundente: encostar o corpo todo no corpo dele, o temor de ficar de pau duro ali e acabar exibindo a bichice pra todo mundo.
Essa era a grande questão: desde muito cedo a gente sabe o que não se pode mostrar que é, e parte da angústia que eu sentia era de estar aparentando demais a bichice. E foi justamente no meio disso tudo que surge a câmera VHS do meu pai, que acabava registrando aquilo tudo, em imagens que a gente podia ver e rever – ou seja, ficava gravado para sempre o próprio fracasso de minhas tentativas de ter um comportamento normativo… não era fácil.
Chulé era um homem hétero, e naquele momento em que não havia tratamento para a doença, ele foi a única pessoa próxima que morreu como consequência do vírus, alguns anos depois das imagens que estão gravadas.
O que é quase inacreditável é que, quando eu escrevi o texto, eu não lembrava que as imagens daqueles dias na casa da praia estavam gravadas. No momento em que eu assisti as imagens digitalizadas, aqueles momentos todos me transportaram justamente praquela era: a gente vê aquele monte de homens sendo “servidos”, a câmera sempre com meu pai, registrando aquilo que era valorizado: a zoeira, a confraternização, a comilança e a malandragem.
Tudo isso me assustava, porque eu não conseguia, mesmo criança, ser isso direito. Sempre delicado, interessado em outras coisas, mais perto das mulheres que dos homens…
No fim, a junção da história que relacionava a presença do vírus na memória da minha primeira paixão de criança com as imagens de arquivo transformou tudo em algo muito maior, com mais conexões. Muitos gays passaram por esse medo de serem descobertos quando crianças, por medo da retaliação e da opressão normativa; muitos também tiveram sua paixão platônica por um homem mais experiente…
Dessa forma, quando juntamos o texto com as imagens gravadas nos registros de família, ficou evidente que aquilo evocava muito mais que a minha própria experiência. Desvelava-se ali uma certa ancestralidade, cenas que evocavam experiências vividas por muitos homens e mulheres cujo comportamento não se “adequava” ao que era esperado pelo seu gênero. Aí o filme fez todo sentido, porque mais que um exercício autobiográfico, ele é um processo de conexão com quem também viveu essas mesmas opressões – em um país que não nos deixa esquecer o quanto é um risco de vida lutar para ser quem se é.
Vicente Concilio, roteiro e performance
Ator, diretor e professor na graduação e pós-graduação em Teatro da Udesc, doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. Dedica-se a estudar teorias decoloniais e implicações das teorias de gênero na Pedagogia do Teatro, além de pesquisar a presença das artes cênicas em espaços de privação de liberdade. Tem diversos textos publicados em revistas e livros, sendo autor de Teatro e Prisão: dilemas da liberdade artística e de BadenBaden – Modelo de Ação e Encenação no Processo com a peça didática de Bertolt Brecht. Em 2019 dirigiu o espetáculo “Estendemos nossas memórias ao Sol”, em processo realizado com mulheres presas do Presídio Feminino de Florianópolis.
Renato
O Amigo do Meu Tio é um documentário performativo que criamos no momento mais isolado da pandemia do covid 19. Nesse contexto escolhemos desenvolver uma narrativa audiovisual sem nenhuma filmagem atual e nos concentrarmos nas possibilidades de criação de sentido do material de arquivo, em diálogo com a voz de Vicente adulto.
O texto é então o elemento da linguagem que se expande para fora do arquivo, o observa e atualiza, a partir de uma distância auto-reflexiva. O olhar do personagem adulto, que também é performer de si mesmo, reconstrói o documento VHS, escolhendo para si os espaços de lembrança e esquecimento que vão constituir a expressão pessoal de suas memórias de criança.
Imaginei que assim criaríamos uma tensão nas expectativas comuns ao documentário enquanto gênero, que permitiria ao filme transitar com liberdade nos limites entre o depoimento e a auto-ficção.
O conjunto de imagens VHS filmadas pelo pai, voz de homem que controla aquilo que deve ser documentado, registra a família ao longo dos anos, o que permitiu que a passagem do tempo estivesse impressa nos corpos que enquadrou.
Se o corpo-criança de Vicente muda até o ponto de ter que enfrentar as questões de performatividade que o corpo-homem impõe, a cachorra Dolly também percorre seu próprio arco temporal sereno e doméstico, nos lembrando sempre que surge em cena que o tempo é a matéria.
Esse dispositivo permitiu que as memórias fluíssem sobre uma linha do tempo natural, na qual o olhar cheio de expectativas do pai é transgredido pela forma como o filho escolheu lembrar. Donos daquilo que lembramos, podemos construir e protagonizar nossas próprias narrativas.
Como homem gay, ao me encontrar com essas imagens e com a visão de Vicente sobre elas, me lembrei também de meus amores de criança e, mais que tudo, lembrei daquilo que somos forçados a esquecer em função do discurso moralizante e hipócrita que tenta apagar a existência da infância LGBTI+ e suas elaborações particulares de afetividades e desejos.
Renato Turnes, Direção e Edição
Ator e diretor de teatro e cinema, roteirista e documentarista, tem investigado dramaturgias da memória, com especial interesse nas relações entre documentário e performance. Roteirista de ficções como os curtas Selma Depois da Chuva e Bloco dos Corações Valentes (inédito). Nos últimos anos tem se dedicado à memória da comunidade LGBTI+, em trabalhos como Não Representadas (espetáculo), Homens Pink (documentário e performance: Prêmio Especial do Júri Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero – DIGO 2020; Prêmio Melhor Média Metragem no Arquivo em Cartaz – Festival Internacional de Filmes de Arquivo 2020) e os inéditos Finas & Caricatas (documentário) e O Amigo do Meu Tio (documentário).
Hedra
Tive algumas certezas no começo de que queria usar cordas como uma virilidade falida, que pudesse variar entre uma delicadeza melancólica e um luau etílico.
Me senti muito na infância, no corredor da minha casa, tocando violão sem parar porque não sabia lidar com a realidade.
Esse pequeno pedaço de pedaços de alguém remexeu muitas caixinhas aqui.
Espero que o resultado esteja à altura do que foi para mim esse processo de desenterrar melodias, instrumentos e sensações de jovem.
Hedra Rockenbach, Trilha Sonora
Sound designer, musicista, iluminadora, coordenadora e diretora técnica de espetáculos. Desenvolveu um trabalho singular ao campo das artes cênicas no qual luz e som são criadores de dramaturgias e extensão da ação dos performers, especialmente junto ao Cena 11 Grupo de Dança. Desde 2016 também atua no audiovisual criando trilhas sonoras para longas e curtas metragens.
As Produtoras
La Vaca é uma companhia brasileira de teatro e produtora audiovisual criada pelos artistas Milena Moraes e Renato Turnes, em Florianópolis.
Em 2008 iniciou sua trajetória estabelecendo parcerias com dramaturgos da nova cena latino-americana, em espetáculos como Mi Muñequita, Uz, Kassandra, além do recente Ilusões.
Desenvolve projetos que incluem linguagens diversas, expandindo a experiência com o palco tradicional para o teatro contemporâneo, intervenção, performance e audiovisual. Em mais de uma década de atuação, segue investindo na produção de trabalhos politicamente comprometidos, que buscam diálogo potente com os espectadores.
Em 2020 produziu o documentário Homens Pink, sobre memória da comunidade LGBTI+ brasileira e em 2021 os curtas O Amigo do Meu Tio (documentário) e Bloco dos Corações Valentes (inédito).
Vinil Filmes é uma produtora independente de cinema, TV, videoclipe e artes visuais com sede em Florianópolis/SC. É uma das produtoras mais ativas do sul do Brasil, circulando suas obras por festivais nacionais e internacionais e recebendo cerca de 30 prêmios. São 16 anos de uma cinematografia continuada, construída de forma coletiva, sempre presente em eventos de destaque e nas mais diversas telas para o público, desde escolas, cine-clubes, mostras até grandes festivais, TV e plataformas digitais. Com o curta “Selma depois da Chuva”, percorreu 17 países, conquistando 9 prêmios, representando o Brasil no Iris Prize – maior premiação de curtas do mundo.