Ciladas da história: anotações sobre o fascismo italiano*. Por José Álvaro Cardoso.

Mussolini no Palazzo Venezia em Roma. Foto: Underwood & Underwood/CORBIS

Por José Álvaro Cardoso.

Faz alguns anos, pelo menos desde 2013, que crescem os grupos de extrema direita no Brasil, alguns abertamente fascistas. O fato em si, nos dá razões de sobra para a realização de quantas ações se fizerem necessárias para combater esse risco. A história mostra que com um perigo desses não se deve brincar. Claramente a sociedade brasileira caminha para a direita, como mostram a matança de lideranças populares, a destruição industrial de direitos sociais e sindicais, a proliferação de grupos fascistas cada vez mais agressivos e a própria existência de um núcleo de governo que é fascista.

Que Bolsonaro, e uma boa parte do seu grupo, são fascistas, não pode haver dúvidas. Pegar uma listinha pequena de itens e verificar se o governo Bolsonaro preenche alguns deles, para classificá-lo como fascista ou não, é algo muito acadêmico, que não funciona na vida prática. As características fascistas de Bolsonaro, e daqueles que o rodeiam, são elementos que facilitariam um golpe fascista no Brasil. Inclusive combinado com um golpe militar, risco que tampouco se leva devidamente a sério no Brasil.

A experiência internacional mostra que o movimento fascista cresce na medida em que é subestimado ou temido. Em grande medida consegue se expandir porque tem o apoio dos capitalistas, e porque setores democráticos e populares da sociedade fazem de conta que “não é comigo”. As experiências no mundo todo revelam isso (inclusive a do Brasil da década de 1930). É bom lembrar do famoso poema atribuído a Bertolt Brecht (que na realidade é do pastor alemão Martin Niemoller), conhecido como “E não sobrou ninguém”.

Na Itália, quando os fascistas começaram a levantar a cabeça, se o Partido Socialista, que era uma organização de massas, tivesse chamado os trabalhadores a se armarem e enfrentado os fascistas, eles não teriam chegado nem perto do poder. Mas os partidos de esquerda, ao invés de organizar os trabalhadores prevenindo o perigo, se limitavam a reagir com discursos no parlamento, dos quais ninguém tomava conhecimento e a imprensa nem mesmo divulgava.

Historicamente o fascismo não é um movimento nascido dos operários, ainda que possa ter o apoio de alguns segmentos dos trabalhadores. É um movimento desencadeado pela burguesia, que descarta o método tradicional de dominação, baseado na democracia parlamentar. É, tipicamente, uma máquina política organizada pela burguesia, para desmantelar as organizações dos trabalhadores e barrar os seus avanços. O movimento, por uma série de razões históricas e políticas, encontra forte respaldo nas classes médias. Mas fundamentalmente o fascismo é uma organização da burguesia, que procura instigar um movimento de massas, no qual coloca muito dinheiro, e que surge quando a burguesia não consegue mais controlar os movimentos de trabalhadores pelo regime parlamentar tradicional, como registrado.

Objetivamente o fascismo é um movimento de direita, criado por Benito Mussolini na Itália, que cresceu no período de entre guerras, que consiste numa ação coletiva baseada em valores irracionais, como superioridade racial, afirmação nacional, etc. Por uma série de razões históricas, o movimento fascista repudia a reflexão e o aprofundamento das questões políticas, econômicas e sociais. É um movimento que aposta todas as suas fichas na ação. Para os fascistas, não adianta debater, tem que agir.

Em 1917, Mussolini, gravemente ferido na guerra da Itália com a Áustria, retornou à Itália e continuou a sua pregação política, de caráter fortemente nacionalista (de direita). Organiza as Esquadras de Combate (Fasci di Combattimento). Estes grupos não são um partido político, e sim um movimento popular, de base, muito centrado na luta contra os políticos e contra a organização dos trabalhadores em geral. Esses grupos começam a atacar as sedes dos partidos de esquerda e se dedicam a atacar todas as iniciativas do movimento operário. Com as ações violentas das Fasci, a burguesia percebe que são um instrumento importante para reprimir os trabalhadores e começa a financiar as Fasci. Em 1920, essas organizações arregimentavam 17 mil pessoas. Quando Mussolini toma o poder, em 1922, já eram cerca de 300 mil.

Importante: o movimento fascista não precisa de tempo de maturação para formar os seus quadros. Quando a burguesia resolve apoiar o movimento, visando usar como antídoto para o crescimento do movimento dos trabalhadores, os fascistas crescem exponencialmente, especialmente colocando muito dinheiro. É importante considerar que uma sociedade capitalista dispõe de uma reserva de quadros fascistas bastante robusta, que em períodos de normalidade conseguem se segurar “dentro do armário”. A história mostra que a ação fascista no mundo todo, não é coisa de “meia dúzia de loucos”, ela tem o apoio de setores poderosos da sociedade, como mostram todas as experiências, incluindo a brasileira.

Mussolini tomou o poder pela via eleitoral em 1922. Tudo votado pelo parlamento. Foi um golpe de Estado, sem forças armadas, sem fechamento do Congresso, tudo “dentro da lei” (já vimos esse filme aqui no Brasil). O governo com plenos poderes foi aprovado pela maioria dos parlamentares. Inclusive se formou um ministério com todos os partidos da Itália, menos o Partido Socialista, que era o maior partido dos trabalhadores à época. Mussolini deu um golpe, no qual tornou-se um ditador com poderes absolutos, mantendo a aparência de constitucionalidade. O processo foi disfarçado e atraiu inclusive uma parte da esquerda colaboracionista, com perspectivas exclusivamente parlamentares e eleitorais. Não precisou também desencadear um golpe militar clássico. Foi um processo parlamentar que, depois se tornou uma ditadura fascista, o regime mais sanguinário havido até àquela altura da história.

Antes de Mussolini assumir, e ainda mais depois, os fascistas mataram muita gente através de espancamentos, queimaram casas, batiam nas famílias, obrigavam pessoas a tomar óleo de rícino. Assassinavam sindicalistas na porta das casas, na frente das famílias. Foi um movimento extremamente decidido e radicalizado, que teria que ser enfrentado com igual determinação. O partido socialista, que tinha voto e penetração no meio dos trabalhadores, por uma série de razões, não conseguiu reagir ante o crescimento do fascismo, se limitando a fazer uma oposição de tipo parlamentar. O parlamentar ia na tribuna, fazia um discurso contra os fascistas para meia dúzia de deputados, a imprensa não divulgava, não acontecia absolutamente nada. E o movimento fascista seguia se organizando e atacando o que tinha sobrado de democracia.

Em 29 de outubro de 1922, o rei pede oficialmente ao chefe do Partido Nacional Fascista que forme o novo governo. Paulatinamente até 1926, o novo chefe de governo trataria de reforçar seu poder e instalar o horror na Itália, eliminando adversários em grande quantidade, e até aliados que discordassem dele. Em 8 de novembro de 1926, a polícia italiana prendeu Antônio Gramsci (que era do Partido Comunista da Itália), que posteriormente foi condenado a cinco anos de confinamento na ilha de Ústica. Em 1927 foi condenado a vinte anos de prisão em Turi, próximo a Bari, capital da Apúlia. Em 1934, com a sua saúde seriamente abalada, recebeu a liberdade condicional, após ter passado por vários hospitais. Praticamente toda a sua obra foi escrita na cadeia. Morreu aos 46 anos, algum tempo após ter sido libertado.

Em 1943, depois de 4 anos de sucessivos fracassos militares e privações e sofrimento com os bombardeios, a Itália foi invadida pelas tropas aliadas. Mussolini foi destituído e preso pelo rei e pelos integrantes do Grande Conselho Fascista (que ele mesmo tinha criado). Os alemães ocuparam o país, libertaram Mussolini e o levaram para o Norte da Itália, onde tentou reconstituir seu governo. Mas foi uma medida completamente insustentável, o avanço aliado o deixou cada vez mais encurralado.

Capturado pelas forças de resistência da Itália, os partigiani, em 28 de abril de 1945, foi conduzido a Mezzagra, aldeia de Dongo, onde seria justiçado no mesmo dia. No mesmo 28 de abril, o cadáver do Duce, o de sua namorada Clara Petacci e os corpos de mais três comparsas capturados com ele, foram pendurados de cabeça para baixo num posto de petróleo, na cidade de Milão. A cena está imortalizada em fotografia: Mussolini, sua namorada e mais três fascistas pendurados pelas pernas nesse posto de gasolina de Milão. Em volta uma multidão querendo fazer picadinho dos cadáveres.

O capitalismo está num período longo de crise e a linha de desenvolvimento do sistema aponta para uma crise crescente. Um sistema como esse numa trajetória de decadência começa a produzir esses fenômenos, como o do fascismo. O medo, e ilusão quanto ao Brasil voltar à “normalidade democrática”, num momento destes, não são bons conselheiros.

* Artigo publicado originalmente em 05.09.2020. Esta versão vem com algumas poucas alterações.

José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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