A velha máxima do escândalo Watergate ainda parece válida, quase 50 anos depois de resultar na renúncia do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon: sigam o dinheiro. A CPI da Covid iniciou seus trabalhos tentando detectar os responsáveis pela má gestão da pandemia, imaginando que a morte de 500 mil brasileiros, em um ano e meio da maior crise sanitária brasileira, poderia ser resultado de uma política negacionista e a visão ideológica deturpada do presidente Jair Bolsonaro.
Agora, percebe-se que a tragédia brasileira tem a ver também com uma velha doença da política nacional tão ao gosto do bolsonarismo e dos conservadores: a corrupção. Em menos de uma semana, o Palácio do Planalto saiu do esforço de apontar a alça de mira para eventuais desvios de recursos públicos a governadores e servidores públicos estaduais para colocar-se no centro do que pode ser um grande esquema de desvio de dinheiro.
O crime é clássico e mostra o nível das tramoias tão ao gosto do Centrão, com pelo menos um velho personagem conhecido da mídia brasiliense. O enredo também tem empresário próximo de políticos poderosos, filhos ambiciosos que adoram externar riqueza, uma crise que serve de oportunidade para grandes negócios e servidores públicos tentando evitar a sangria dos cofres públicos. O que não se imaginava é que a explosão do esquema viesse a público tão rapidamente e que a bomba fosse detonada no colo de Bolsonaro. E, o mais surpreendente: por um aliado do presidente da República, o desconhecido deputado federal Luís Miranda (DEM-DF).
O que se sabe até agora
A empresa enrolada no esquema é a Precisa Medicamentos, que conseguiu um contrato bilionário junto ao governo federal para fornecer a vacina Covaxin, produzida na Índia pela Bharat Biotech. O valor do contrato também está ao gosto dos grandes escândalos da política nacional: R$ 1,6 bilhão. Outro personagem que entrou na trama é ninguém menos que o líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR), ex-ministro da Saúde do governo Temer, acusado de improbidade administrativa ao beneficiar o pagamento antecipado à empresa sócia da Precisa Medicamentos, a Global Gestão de Saúde. Esse outro caso se arrasta na Justiça Federal.
O sócio da Precisa é Francisco Emerson Maximiano, que tem um histórico de contratos contestados por órgãos de investigação, além de ser alvo de processos judiciais de cobranças de dívidas. Apesar das suspeitas, ele teve as portas abertas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por ninguém menos que o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), amigo próximo e padrinho do presidente do órgão, o jovem empresário Gustavo Montezano. O encontro não era para tratar de medicamentos. Mas de outros negócios: expansão da internet no Nordeste. A reunião foi em 13 de outubro do ano passado.
O esquema de corrupção no governo foi denunciado por um servidor público federal concursado do Ministério da Saúde, responsável direto pelo Departamento de Logística que faz importação de medicamentos e imunizantes. Luís Ricardo Miranda denunciou a Precisa Medicamentos, apontando mutretas no processo de liberação de recursos, suspeitas de desvios, pressões diretas de superiores e o esforço para acelerar o pagamento de US$ 45 milhões, mesmo com o contrato só prevendo o desembolso do governo federal na entrega de medicamentos.
O contrato foi assinado em 25 de fevereiro de 2021 pelo Ministério da Saúde. Foi firmado com a Precisa, farmacêutica responsável por intermediar a compra da vacina indiana Covaxin, produzida pelo laboratório indiano. Sabe-se agora que o contrato com a Covaxin foi fechado de forma mais ágil, como mostra o Tribunal de Contas da União. Outra suspeita: o governo topou pagar pela Covaxin o valor mais caro das vacinas adquiridas até agora pelo Ministério da Saúde, considerando o preço por unidade.
Cada dose da Covaxin foi negociada a US$ 15 pelo Ministério da Saúde. As vacinas da Pfizer, da Janssen, a Sputnik V e a Coronavac todas tiveram custo unitário entre US$ 10 e US$ 12. A vacina de Oxford/AstraZeneca foi a mais barata: US$ 3,16 a dose. O mais incrível: o governo usou uma empresa terceira para adquirir imunizantes. A praxe até agora tinha sido a compra diretamente dos laboratórios – ou de instituições públicas, como a Fiocruz e o Instituto Butantan.
Datas próximas e uma mansão
Coincidência ou não, o contrato com a Precisa foi assinado em fevereiro e, uma semana depois, veio a público que Flávio Bolsonaro adquiriu uma mansão no valor de quase R$ 6 milhões em Brasília, num bairro nobre da capital federal. Uma casa de 1,1 mil metros quadrados, dois pavimentos, quatro quartos, aquecimento solar, detalhes em mármore carrara. O imóvel fica em uma das mais exclusivas vizinhanças de Brasília, no Setor de Mansões Dom Bosco, no Lago Sul.
Como senador, Flávio morava em um apartamento funcional na capital federal. O parlamentar é acusado de lavagem de dinheiro pelo Ministério Público, enquanto era deputado estadual no Rio de Janeiro. Imagens da mansão, divulgadas pela imobiliária, mostram que a casa conta com amplos espaços e uma decoração em madeira e mármore, além de luxos como banheira, spa com aquecimento solar e quatro vagas na garagem.
A mansão hollywoodiana de Flávio também contaria com segurança armada 24 horas por dia. Do total de R$ 6 milhões do imóvel, R$ 3,1 milhões foram financiados em 360 meses, a taxas reduzidas, pelo Banco Regional de Brasília (BRB). Uma operação atípica. A parcela média, de R$ 8.600 a ser paga pelos próximos 30 anos, consumiria sozinha cerca de um terço do salário que Flávio tem como senador, com vencimentos de R$ 25 mil.
Quando veio a público os negócios imobiliários do filho mais velho do presidente, a assessoria do senador disse que a casa havia sido comprada com “recursos próprios” a partir da venda de seu imóvel no Rio. E que tudo foi registrado em escritura pública.
O cheiro de encrenca permanece e ninguém dúvida que possa ter origem numa trampa típica da política feita pelos políticos conservadores em Brasília, com a mistura de recursos públicos e privados, tão ao gosto do patrimonialismo que marca a política nacional desde que Mem de Sá conseguiu uma capitania hereditária.
Bolsonaro recebeu os denunciantes
Na semana que passou, o que veio à tona nos bastidores do Congresso e na movimentação desses e outros personagens parece saído de uma ópera bufa. O servidor que pressentiu a lambança no contrato do Ministério da Saúde com a Precisa bateu com as línguas nos dentes para o irmão, justamente o deputado federal Luís Miranda. Eleito na esteira da “nova política” em 2018, Miranda é um aliado do presidente e ganhou notoriedade na campanha eleitoral em Brasília há três anos gravitando diretamente no bolsonarismo, usando um canal no YouTube.
Diante das revelações do irmão, o deputado não teve dúvidas. Entrou em contato com o ajudante de ordens do presidente da República e foi diretamente a Bolsonaro relatar as suspeitas. Levou o irmão a tiracolo. Isso ocorreu em 20 de março de 2021, um sábado, por volta das 16 horas, no Palácio da Alvorada. Os irmãos Miranda levaram documentos, mensagens, detalhes das suspeitas sobre a compra bilionária da Covaxin. O presidente ouviu as denúncias diretamente da fonte há pouco mais de 90 dias. E, segundo o deputado Luís Miranda, disse que o rolo era “coisa do Ricardo Barros”, o líder do seu governo.
Segundo o deputado, o presidente, supostamente espantado com o nível da denúncia, informou que levaria o caso ao conhecimento direto do diretor-geral da Polícia Federal. O deputado e o irmão, em seguida, revelaram o que sabiam ao Ministério Público Federal. Já haviam denunciado a trampa diretamente ao presidente da República. Os Mirandas imaginavam que teriam feito o correto, denunciado o esquema e barrado a roubalheira.
De fato, aparentemente, isso teria acontecido. Nenhum centavo saiu até agora para a Precisa, de Francisco Emerson Maximiano, o empresário amigo de Flávio Bolsonaro e, aparentemente, próximo do líder do governo Bolsonaro Câmara. Detalhe: Maximiano deveria depor na quinta-feira à CPI da Covid, mas meteu um atestado médico falando que estava de quarentena após uma viagem à Índia. Pelo que veio até agora à tona, Maximiano terá muito o que relatar à CPI.
“O empresário da Precisa precisa contar tudo o que sabe”, cobrou o senador Humberto Costa (PT-PE), na audiência pública ocorrida na sexta-feira (25), quando os Mirandas passaram mais de 7 horas em um depoimento morno, mas cujos detalhes parecem uma mina para as investigações. Tudo para tentar revelar o que acontece no governo e no Ministério da Saúde.
E mais: o que fez Bolsonaro diante da denúncia escabrosa apresentada a ele pessoalmente por um parlamentar e um servidor de carreira da administração pública federal. Para a cúpula da CPI, as suspeitas de prevaricação pelo presidente Jair Bolsonaro são o primeiro indício da podridão que exala do governo. Só na sexta-feira (25) a PF abriu uma investigação para apurar a legalidade do contrato da Precisa com o Ministério da Saúde. Noventa e cinco dias depois que Bolsonaro recebeu a denúncia.
O depoimento de Maximiniano deve ocorrer esta semana. Outro que deve falar também é Eduardo Pazuello. Ele foi demitido do cargo de ministro também em março. E as suspeitas lançadas por ele quando se desligou do Ministério da Saúde também agora ganham sentido.
Quase um mês antes de deixar o cargo de ministro da Saúde, Pazuello se reuniu com sua equipe no ministério e anunciou a queda iminente. Disse que não iria virar o mês de março no comando da pasta por causa da pressão política. “Eu reuni toda minha equipe no dia 23 de fevereiro, fiz um quadrinho e mostrei todas as ações orquestradas contra o ministério. Eram oito. Falei que não tinha como nós chegarmos até 20 de março”. Na quarta-feira, 24 de fevereiro, em discurso de despedida aos servidores do ministério, o general disse que sofria boicote interno e pressões políticas para deixar a pasta.
“O ministério é o foco, o aval das pressões políticas. Por quê? Por causa do dinheiro que é destinado aqui de forma discricionária”, desabafou. “A operação de grana com fins políticos acontece aqui. Acabamos com 100%? Claro que não, 100% nem Jesus Cristo. Nós acabamos com muito”, declarou. Em dezembro, o então ministro teria desabafado também sobre uma pressão por “pixulés”, propinas na própria pasta. Tudo isso é ouro para as investigações da CPI. Há muito a apurar. E o personagem por trás das pressões, entendem os integrantes da CPI, seria ninguém menos que Ricardo Barros.
Mas há outras pontas apurar. O quadro agora parece mais nebuloso, porque, segundo servidor Luís Ricardo Miranda, um dos personagens que o pressionaram diretamente a liberar o processo da Precisa era ninguém menos que o coronel Élcio Franco, então secretário-executivo do Ministério da Saúde, indicado por Pazuello, e que hoje é assessor especial da Casa Civil da Presidência da República, respondendo diretamente ao ministro Ônyx Lorenzoni, o mesmo que durante a última semana anunciou a abertura de um procedimento administrativo disciplinar para apurar a conduta de Miranda, o servidor denunciante.
A novela da CPI continua. O novelo ainda parece confuso e será trabalhoso até ser desenrolado. Mas só uma coisa parece que não muda: a direita sempre que adota um discurso moralista se vê flagrada naquilo que é mais experiente, a cleptocracia. A bandeira contra a corrupção foi brandida por Jair Bolsonaro em 2018 como um mantra e levou à sua eleição ao Planalto. Agora, as suspeitas de roubo de dinheiro público podem ser o início do fim do seu governo. E, como na era Collor, a cleptocracia parece uma marca do governo de direita.