Em um estado que legisla para os grandes, agricultor familiar precisou ser preso para ser ouvido

    Propriedade de pequeno produtor, detido no interior de SC, é a única do município livre de tuberculose e brucelose; o que teria motivado sua prisão?

    Reprodução/Youtube

    “Do ponto de vista legal, não havia motivos para que o agricultor fosse preso e a sua mercadoria descartada”. A palavra do advogado, Ricardo Pellegrinello, levanta uma nova perspectiva sobre a atuação do poder público com a Agricultura Familiar e questiona o verdadeiro motivo da prisão de Luis Petrycowski, que chegou a ser algemado e levado à delegacia durante uma feira em Caçador-SC.

    Se a prisão do agricultor, no entendimento do jurista, não se justifica, o que teria motivado essa ação repressiva do Estado com um trabalhador do campo? Essa questão é regularmente levantada pela Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Santa Catarina (FETRAF-SC).

    Segundo a entidade, a prisão do Agricultor Familiar trouxe para a superfície uma série de entraves e injustiças por que passam os trabalhadores do campo, historicamente penalizados não apenas pelas exigências legais, desproporcionais com a produção familiar, mas também com o preconceito e a lógica de repressão dos poderes constituídos sobre Agricultura Familiar.

    Para entender como a história de Luis teve esse desfecho extremo, é preciso olhar com mais cuidado para produção de queijo artesanal, que acontece a todo o vapor em pequenas propriedades rurais Brasil afora.

    Foto: Divulgação/Luiz Paganeli

    Um pouco de tudo

    Diferente da prática das grandes agroindústrias, na Agricultura Familiar a produção é diversificada e todo o processo é conduzido pelo núcleo familiar, com foco na geração de renda para a família e na produção de alimentos para a população.

    Em uma pequena propriedade de 22.9 hectares na Linha Caixa D’água, interior de Caçador-SC, Luis e a esposa, Juceli, criam vacas de leite, outras de corte, alguns suínos para o adubo, além da produção de cereais para dar suporte na alimentação dos animais. Tudo em pequenas proporções.

    Figura conhecida na região pelo posicionamento forte e seu bigode de duas cores, o agricultor conta que a família sempre trabalhou na produção de leite, mas percebendo a dificuldade em garantir o sustento, decidiu mudar o foco. “Como sempre vendemos queijo muito bem, aumentamos a produção até que paramos de vender leite e, em 2015, começamos a vender queijo na feira”, explica o agricultor.

    Rapidamente, Luis viu a procura por seus produtos disparar e não demorou para a Vigilância Sanitária exigir as adequações para garantir a sanidade dos alimentos. Em 2017, inicia a jornada do agricultor em busca de reconhecimento legal e regularização da propriedade.

    Jornada de heróis

    Até 2019, a produção de queijo com leite cru não era permitida na maior parte do Estado, em função do risco de contaminação por brucelose e tuberculose.

    Em 2017, portanto, Luis foi orientado a construir uma estrutura elaborada, para que pudesse pasteurizar o leite e atender às exigências legais, “me deram um elefante branco, uma planta pra fazer uma fábrica de queijo, como uma indústria”.

    Para se adequar à norma, o agricultor viu o seu vizinho investindo R$ 110 mil na propriedade. Percebendo que não conseguiria levantar esse volume de recursos para atender às exigências legais, sem opção, a família seguiu investindo com mais modéstia e, no decorrer dos anos, desembolsou mais de R$ 20 mil para construir o que Luis chama de fabriqueta, cujo advogado, Ricardo Pellegrinello, conheceu de perto: “ele montou uma queijaria na casa dele, climatizada, azulejada, portas de vidro com tela nas janelas. Tudo nos conformes”.

    Com o decreto 362/19, Santa Catarina passou a permitir a produção de queijo com leite cru, desde que a propriedade apresente a certificação que comprove a sanidade dos animais, da água e do leite.

    Em junho de 2020, mais uma vez a família de Luis entendeu a importância da regulamentação e foi em busca dessa certificação, providenciando a contratação de um profissional de Veterinária para realizar os testes sanitários exigidos pela Cidasc (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina).

    Desta vez, Luis investiu cerca de R$ 1 mil para testar sua propriedade e garantir que o seu produto chegasse na mesa da comunidade com qualidade e segurança. Todos os 28 animais foram testados duas vezes por um profissional autorizado pela Cidasc, e todo o custo dessa certificação foi bancado pela família de Luis.

    Após os testes, o agricultor foi informado que sua propriedade estava livre de brucelose e tuberculose, faltando apenas a chegada do documento físico. Luis alega que a Vigilância Sanitária acompanhou o processo e que sabia da procedência dos seus produtos, mas optou deliberadamente por descartar os alimentos.

    Se os produtos da família de Luis eram comprovadamente livres de tuberculose e brucelose, qual a necessidade de descarte? A insistência nessa resposta foi o que levou o Agricultor Familiar a debater com a Vigilância Sanitária por cerca de 2 horas, antes de ser preso por desacato à autoridade e suas 75 peças de queijo serem descartadas no aterro municipal.

    “Foi chegando polícia e viatura, eu bati o pé, disse que não ia entregar. Me prenderam, me algemaram, me botaram no camburão e me levaram pra delegacia”, lembra.

    Situação recorrente

    Na avaliação do advogado, entraves como esse acontecem constantemente em milhares de propriedades catarinenses e brasileiras, embora não ganhem os holofotes, já que a maioria dos agricultores, alvos dessas operações, entregam suas mercadorias sem resistência, “o Luis poderia ter optado em ter ficado quieto, mas ele escolheu contestar, foi o único jeito de ser ouvido”.

    Para a FETRAF-SC, essas ações de repressão são frutos do endurecimento da Lei, feita para as grandes indústrias que não contemplam a Agricultura Familiar. “Defendemos que haja regulamentação e fiscalização sobre essas produções, o problema é que Agricultura Familiar não é indústria e não há como usar o mesmo parâmetro de exigências”, avalia o coordenador geral da Federação, Jandir Selzler.

    Segundo ele, os fiscais já entram nas propriedades com o olhar enviesado, acostumados a penalizar o pequeno agricultor, “em vez de auxiliar essas famílias orientando sobre a melhor maneira de adaptar a propriedade, o poder público usa uma lei desigual e injusta para agir como instrumento de repressão, dificultando ainda mais a vida no campo e desestimulando a permanência dessas famílias nas áreas rurais”.

    Perseguição ou fidelidade à lei?

    Na sexta (18), Luis finalmente recebeu a certificação em sua casa e pode exibir com orgulho o documento comprovando a boa procedência dos seus queijos. Mesmo sabendo da sanidade dos produtos, a prefeitura optou por descartar os alimentos. Pellegrinello tenta responder o porquê.

    “A propriedade do Luis é a única do município livre de tuberculose e brucelose, mas ele teve alguns atritos com a fiscal que esteve em sua propriedade”, conta o advogado, explicando que a Vigilância Sanitária é responsável pelo aval para comercializar os produtos, e que essa autorização depende, entre outras coisas, da certificação de sanidade expedida pela Cidasc.

    Supostamente, a propriedade de Luis não atendeu todos os requisitos de estrutura exigidos pela fiscal, e por isso não recebeu autorização para comercializar na Feira do Produtor Rural de Caçador.

    Para produzir leite cru, a lei prevê que a pocilga deve estar a pelo menos 50 metros da queijaria, “o que aconteceu foi uma falta de bom senso, porque o chiqueiro da propriedade, com dois ou três porcos, fica próximo à ordenha e não da queijaria, e ainda com um desnível muito grande entre os dois locais”, justifica o advogado, afirmando que, durante Audiência Pública para discutir o caso, um funcionário da prefeitura chegou a alegar “contaminação por odor”.

    Luis conta que, durante a visita da fiscal, contestou a recomendação de remover o chiqueiro, porém, desde a sua visita, em 2020, não havia recebido nenhuma devolutiva por parte do poder público municipal a respeito da fiscalização, e não fazia ideia de que seria barrado na Feira e ter seus produtos descartados.

    “Continuo vendendo, porque as vacas não param de dar leite e porque é meu ganha-pão. Ontem eu fui, mas me encostei em um pátio e vendi de cima da caminhonete”, conta Luis que, fora jurisdição da prefeitura, consegue vender o seu produto sem ser incomodado, “a vigilância só pega quando é em comércio, na rua só a Cidasc pode pegar, e ela não vai fazer isso porque sabe que o queijo do Luis tem certificação”, complementa o advogado.

    Reinvindicação antiga

    Em maio, representantes da Agricultura Familiar e Camponesa entregaram ao governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, uma pauta de reivindicações para auxiliar na construção de políticas públicas pensadas para os trabalhadores do campo.

    Entre as reivindicações, a FETRAF-SC destaca o pedido de alteração da Lei Agrícola de Santa Catarina, criada em 1993, para que as entidades do campo, junto com a Federação, sejam incluídas no Conselho de Desenvolvimento Rural do Estado (Cederural).

    Com essa alteração na Lei, a Agricultura Familiar poderia participar das regulamentações, ajudando a construir leis mais justas, que atendam todas as subjetividades da agricultura no Estado.

    A prisão de Luis não foi em vão. Após a repercussão do caso e a pressão das entidades da Agricultura Familiar, Luis conta que o governador, Carlos Moisés, entrou em contato com uma promessa: criar um laboratório na Cidasc, que será responsável pelas certificações sem qualquer custo ao Agricultor Familiar.

    Para a FETRAF-SC, o momento é de fiscalizar e cobrar, “vamos seguir lutando para que o poder público adote políticas que incentivem os agricultores, para que e eles permaneçam no espaço rural, agregando valor e comercializando seus produtos”.

     

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