Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info
Ninguém passa imune à pungente história de Macabéa, personagem principal de A Hora da Estrela. O livro dá visibilidade às condições de vida de uma migrante nordestina solitária e indefesa na cidade inconquistável para ela: Rio de Janeiro. O relato dolorosamente frio é feito por Rodrigo S. M: supostamente um escritor. Ele narra seu horror à sociedade que cria e recria Macabéa: uma dentre milhares de moças espalhadas por cortiços e que são compelidas a morar em vagas de quartos alugadas junto com outras moças pobres que também trabalham à estafa. Sequer notam que são facilmente substituíveis.
A personagem é uma moça de dezenove anos, datilógrafa que escreve mal, quase analfabeta, vinda de Alagoas, delicada e de vaga existência numa cidade todinha feita contra ela. A história inicia com a demissão de Macabéa que era um fracasso como datilógrafa. Face à miséria quase absoluta dessa moça, Rodrigo S. M. diz: “escrevo porque sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto”[2]. Pondera que precisa falar dessa nordestina porque a existência dela o acusa e o sufoca. O livro todo é um grito de horror as condições de vida dos que são compelidos à criação da riqueza alheia em troca de algum salário. Modernas Macabéas espalhadas em inúmeros ofícios povoam cidades grandes não mais como datilógrafas, algo do passado. Contudo, vivem à míngua, tal como Macabéa. Elas são a acusação histórica mais concreta da decadência da sociedade atual. A pobreza individual da personagem reflete a pobreza das relações sociais que transformam pessoas em coisas descartáveis. No momento atual, não é exatamente o que está acontecendo no mundo? Certamente não é a pandemia que mata por si mesma, milhares de trabalhadores. Mas, a relações humanas. Quando menina, Macabéa foi castigada pela tia com o medo. Sua parente contava a história de um homem vampiro que chupava o sangue das pessoas. A moça parecia meio idiota, só que não era. Tinha olhos redondos enormes, saltados e interrogativos. Olhos que perguntavam. Porém, ela adivinhava que não havia respostas. Achava que a vida era assim porque tinha de ser assim. A única coisa que queria era viver. Não se indagava. Imaginava que a pessoa era obrigada a ser feliz. Então era feliz.
Macabéa nasceu raquítica, uma herança do sertão nordestino. Perdeu os pais com dois anos de idade. Foi criada pela tia beata, única parenta no mundo. Depois foram para Maceió. A tia vivia dando-lhe cocorutos no alto da cabeça para evitar que que ela se tornasse uma dessas moças que viviam nas ruas da cidade se prostituindo. Mas, o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: queijo com goiabada: sua única paixão. A menina nunca perguntou porque era sempre castigada. O não saber foi parte importante de sua vida. Pensava que um dia morreria como se tivesse desempenhado de cor o papel de uma estrela. Acreditava que a pessoa na hora da morte, tornava-se uma brilhante estrela: instante da glória de cada um.
Queria ter um bicho quando pequena. A tia não permitiu porque seria mais um a ser alimentado. A convivência com a tia deixou-a de ombros curvos e cabeça baixa. Porém, não herdou a beatice da tia. Quando essa morreu, nunca mais foi à missa. Parecia que Macabéa tinha nascido do sertão. Nem se lembrava se tivera pai ou mãe. Teve uma infância horrível sem bola, sem boneca e sem qualquer carinho. Por isso, costumava beijar a parede. Não era nem de longe débil mental. Mas, estava à mercê dos fatos e era crente como uma tola. A moça que ao menos não mendigava, não pertencia ao contingente de gente perdida e com fome. Tal como milhares na sociedade moderna, ela era apenas um parafuso dispensável e substituível. Nada mais do que uma espécie de mercadoria como outra qualquer.
Tia e sobrinha acabam vindo para a cidade de Rio de Janeiro: local de destino de muitos trabalhadores nordestinos compelidos à migração. Foi a tia que conseguiu um emprego de datilógrafa para Macabéa. Quando sua parenta morreu, ela teve de ir morar num quarto compartilhado com mais quatro moças que trabalhavam de balconistas. O quarto ficava num sobrado colonial situado na barulhenta rua Acre, cercado de prostitutas e perto do cais. Macabéa dormia mal porque tinha uma tosse seca e estava resfriada há mais de um ano. À noite quando sentia fome mastigava papel bem mastigadinho e engolia. Esquivava-se da morte vivendo de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar. Só uma vez fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou de pensar. Macabéa teve uma vida murcha como a de tantas outras trabalhadoras, principalmente a de retirantes assustadas e indefesas nas cidades grandes.
Macabéa era calada e nunca tinha o que dizer. Seu único luxo era tomar um café frio antes de dormir. De madrugada, gostava de escutar o barulho de um rádio relógio e de ouvir coisas que jamais conheceria. Lia anúncios de jornais velhos recortados do escritório em que trabalhava. Era impressionável e acreditava em tudo que existia e que não existia. Nunca soube enfeitar a realidade. Para ela, a realidade era demais para ser acreditada. Dava-se melhor com o irreal. Quando acordava se sentia culpada sem saber porque. Parecia que vivia em câmara lenta. Acordava cedo no domingo para ficar mais tempo sem fazer nada. O pior momento de sua vida era o final de domingo quando comia farofa e sentia o vazio seco do dia. Conservava um luxo: ir ao cinema uma vez por mês e pintar de vermelho vivo as unhas das mãos que roía e descascava o esmalte. “Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser”[3].
A nordestina vivia uma espécie de atordoado nimbo: entre o céu e o inferno. Macabéa era e é uma verdade da qual não se pode negar. “Ela gostava de um refrigerante com gosto e cheiro de esmalte de unhas, de sabão Aristolino e de plástico mastigado. Tudo isso não impedia que todos o amassem com servilidade e subserviência”[4]: algo exemplar do duvidoso gosto dos que sobrevivem subalimentados. A moça nunca havia comido em restaurante, apesar de sua grande fome. Só comia no botequim da esquina. Nunca recebeu presentes em toda sua vida. Um dia, conheceu um nordestino da Paraíba chamado Olímpico de Jesus: um operário de uma metalúrgica. Tornaram-se namorados. O homem era seco e duro como a Paraíba. Por isso, se salvava mais do que Macabéa num país de famigerados e humilhados trabalhadores. No entanto, tinha uma vida tão insossa quanto a dela porque eram seres de uma mesma classe social: a dos que nada possuem.
O namorado grosseiro só a maltratava. Termina o namoro dizendo-lhe que ela era uma espécie de cabelo na sopa, impossível de comer. A nordestina que nunca soube reclamar tocou sua vida como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, comprou um batom bem vermelho para se parecer com Marylin Monroe – famosa atriz hollywoodiana dos anos 1950. Macabéa não era idiota, apenas tinha a felicidade pura dos idiotas. Incentivada pela amiga que lhe roubara o namorado, foi consultar uma cartomante. Madama Carlota falou que ela ia ter um novo emprego e que arranjaria um namorado rico. Disse mais: que engordaria, criaria seios e cabelos volumosos como os de uma artista de cinema.
Macabéa só então percebeu o quanto miserável era sua vida. Saiu aos tropeços da casa da cartomante. Acreditava que sua história havia mudado por meio das palavras. A moça se sentiu grávida de futuro. Macabéa que pertencia à valente raça nordestina, pressentiu que sua hora de estrela havia chegado. Não precisava mais beijar a parede. Havia aberto a caixa de Pandora. Podia gritar ao mundo o quanto pode ser medonha a existência despida de qualquer sentido.
[1] Segundo a mitologia grega, Prometeu, Epitemeu e Pandora constituem um mito do conhecimento. Assim, a pedido de Zeus, Pandora foi criada por Hefesto a partir do barro. Pandora recebeu dos deuses habilidades na tecelagem de tecidos nobres, beleza, inteligência, astúcia e perfídia, dentre outras. Pandora – a que continha todos os dons – seria ofertada à humanidade como um presente de todos os deuses. Ela foi levada à presença de Epitemeu, irmão de Prometeu, que já havia sido alertado para recusar qualquer presente ofertado por Zeus, porque só traria desgraças. Porém, Epitemeu ficou arrebatado pela mulher excepcional e a desposou. Como presente de núpcias, recebeu uma caixa que jamais deveria ser aberta. Até então, a existência humana se dava num espaço ausente de desgraças, doenças, fadigas e cóleras. Todavia, Pandora enlouquecida de curiosidade, abriu a caixa e todas as desgraças foram libertadas. A mulher tentou corrigir seu infortúnio fechando o mais rápido possível a caixa, mas não em tempo suficiente para reter alguns dos males. Conseguiu apenas que a esperança não fosse libertada. Disponível em: http://blogcorifeu.blogspot.com/2010/03/caixa-de-pandora.html. Acesso em: 11, junho, 2021.
[2] LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7ª. ed. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984. p. 25.
[3] LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7ª. ed. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984. p. 44.
[4] LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7ª. ed. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984. p. 30.
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