Por Marco Vasques, para Desacato.info.
VALDECIR
Não tem mais que cinquenta anos, mas sua feição externa traz um homem pesado e carcomido por rugas. Nunca olha o horizonte com firmeza. Ao redor das pupilas, o globo ocular é cada vez mais acinzentado. Tem dias que seus olhos lembram aqueles peixes envelhecidos, expostos em gelos nos mercados públicos. Frio também é o coração de Valdecir, porque destituído de esperanças. Valdecir olha para o mundo como se estivesse pedindo desculpas por sua existência. Ele próprio não se sente presente nos lugares, porque seu espírito está sempre em desconforto.
Costuma dizer que foi enterrado quando assassinaram seu filho. O que mais dói, o que mais aperta o coração de Valdecir é o fato de ele não ter encontrado o seu corpo. Valdecir sabia do envolvimento de seu filho com entorpecentes e fez de um tudo para que o filho encontrasse novos caminhos. Chegou a pagar, por duas vezes, as dívidas contraídas por Luan, porque sabia, como todo pai sabe, que seu filho, apesar de desajustado, desencontrado, era apenas um menino à procura de alívio para o peso e a carga dos dias.
Valdecir, que beijou a face de Luan em criança, não conseguia entender em que curva da vida havia falhado, em qual momento seu filho perdera a alegria contagiante da infância para se tornar um jovem taciturno e imerso em silêncio. Entre o nascimento e a morte de Luan, viveu um Valdecir que, hoje, não se reconhece. Nos primeiros momentos do desaparecimento, pensou que o garoto estava apenas em mais uma das aventuras que duravam três ou quatro dias até o retorno ao lar. Mas logo começaram a dizer que ele estava endividado e prometido de morte.
O primeiro mês foi de muita procura e esperança. No entanto, entre idas e vindas à delegacia de polícia e conversas com pequenos traficantes, o assassinato foi confirmado. É preciso dizer que Luan era o único filho que Valdecir tivera com sua esposa, Marilda. A mãe, como dizem os vizinhos, virou um fantasma após a desaparição do filho. Não saía de casa e, todas as tardes, exibia seus longos cabelos brancos e mãos enrugadas na janela da sala. Ali ficava à espera de seu rebento, até que o breu da noite e os mosquitos a jogassem para a cama. Marilda mergulhou no seu mais profundo silêncio.
Já Valdecir, nos primeiros meses, moveu mundos para encontrar o menino. Para ele, não importava se vivo ou morto. Precisava encontrar o corpo, precisava de uma última aparição, de um último ritual. Foi nessa procura que ficou sabendo, por meio de outros meliantes, que o corpo de seu filho havia sido enterrado numa imensa floresta do bairro. Valdecir não teve dúvidas. Foi à loja de material de construção, comprou facão, pá e enxada. Jurou a si mesmo que vasculharia cada metro quadrado enquanto seus braços, mãos e pernas pudessem cavar, derrubar árvores e abrir caminhos com o facão na mata cerrada.
Valdecir procurou o corpo de Luan como se procura um tesouro perdido no mar. Todos os dias, enquanto Marilda se punha à janela, Valdecir adentrava a mata com suas ferramentas como um homem desesperado que foge de um cão enraivecido. As mãos, os cabelos e o corpo de Valdecir exalavam gosto de terra úmida.
Marilda e Valdecir nunca mais se tocaram. Também não trocavam uma única palavra sobre o assunto. Após anos de procura, Valdecir, finalmente, foi vencido pelo cansaço e pela desesperança. Dizem, à boca pequena, que ele guarda um pequeno esqueleto em seu rancho. Outros, mais perspicazes, dizem que guarda o corpo do filho dentro dos olhos.
NATAN
Natan só conheceu o sonho. Seus pequenos olhos iluminados não foram maculados pela razão, dada a tenra idade. Com oito anos, seu coração foi perfurado por bala perdida. Na verdade, bala achada. O projétil saiu de uma metralhadora, que, se não estava com um militar, foi vendida por um deles aos milicianos de plantão.
Natan corria com seu pai, Júlio, nas calçadas, sempre que o caminhão do lixo passava. E ria com a máquina enorme que engolia copos, garrafas, sacolas plásticas, restos de comida, enfim, todas as sobras da vida cabiam no caminhão. Pelo encanto da máquina, ele dizia ao pai que, ao crescer, seria lixeiro. Natan está estendido em um simples caixão pequeno, que mal esconde seus pés. Morreu enorme como a máquina que sonhou e caminhou em seus sonhos de infância.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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