Por Vicente Loeblein Heinen[1] e Lauro Mattei[2]
Os impactos da pandemia da Covid-19 sobre o mercado de trabalho já são bastante visíveis, tanto em termos da ampliação do número de famílias sem renda do trabalho como da própria redução dos rendimentos de grande parte dos trabalhadores que conseguiram se manter ocupados. De uma maneira geral, esses elementos contribuem para explicitar a enorme vulnerabilidade social existente no Brasil – e também em Santa Catarina -, fazendo com que os temas da pobreza e da insegurança alimentar retornassem ao centro da agenda política do país.
Visando contribuir com o debate sobre esses assuntos, este texto apresenta um breve balanço da situação dos rendimentos do trabalho em Santa Catarina em 2020, tomando como referência os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC). Para tanto, na primeira parte do texto são analisados os rendimentos individuais do trabalho, enquanto a segunda apresenta o comportamento da renda domiciliar.
Emprego e renda do trabalho em Santa Catarina
O aumento da vulnerabilidade social no Brasil não se deve apenas à pandemia, mas também à situação prévia dos rendimentos do trabalho e às insuficiências estruturais do sistema de seguridade social brasileiro. Com a crise econômica que tomou conta do país nos últimos anos, o mercado de trabalho foi responsável pelo retorno do crescimento da desigualdade de renda, respondendo por 30% da piora do índice de Gini entre 2015 e 2018[3].
O fato do estado de Santa Catarina se encontrar em uma situação “menos pior”, comparativamente ao restante do Brasil, não significa que os trabalhadores catarinenses não sofreram dos mesmos problemas observados a nível nacional. Conforme demonstra o Gráfico 1, a massa de rendimentos do trabalho no estado (a soma de todas as remunerações recebidas pelos trabalhadores) cresceu em 2019, todavia o mesmo não pode ser dito quanto aos rendimentos médios. Com isso, o nível salarial registrado em Santa Catarina às vésperas da pandemia era semelhante ao de 2014, representando um período de longa estagnação nos rendimentos do trabalho.
Gráfico 1 – Taxa de crescimento anual do rendimento médio e da massa de rendimento real efetiva e habitualmente recebidos em todos os trabalhos em Santa Catarina (2018-2020, em %)
Fonte: PNADC/T (2021).
Esses dois indicadores foram fortemente afetados pela pandemia, principalmente quando se considera os rendimentos efetivamente recebidos, que apresentaram uma tendência distinta dos rendimentos que seriam auferidos em condições normais[4]. Por um lado, a massa de rendimentos efetivamente recebida em todos os trabalhos caiu 6,1% em 2020, enquanto a habitualmente recebida caiu 4,1%. Por outro lado, o rendimento médio efetivo permaneceu praticamente inalterado (0,6%), enquanto o rendimento habitual cresceu 2,8%.
Os determinantes desse comportamento podem ser analisados a partir do Gráfico 2. O afastamento de trabalhadores, a inviabilização de atividades e a queda no nível de atividade econômica observadas ao longo de 2020 provocaram uma grande redução do número médio de horas efetivamente trabalhadas, que chegou a ficar 13% abaixo das jornadas habituais entre abril e junho de 2020. Essa redução acabou se transformando em uma grande perda de renda na primeira metade do ano, sobretudo para os trabalhadores por conta própria. Tal perda só não foi maior devido ao fato de que os rendimentos fixos de alguns segmentos de trabalhadores foram mantidos, principalmente os empregados formais, cujos salários dependem menos do número de horas trabalhadas, o que resultou em uma elevação artificial do salário/hora.
Gráfico 2 – Decomposição da variação da massa de rendimentos do trabalho em Santa Catarina (2020, % em relação a 2019)
Fonte: PNADC/T (2021).
Com a retomada das jornadas habituais e das ocupações informais a partir do 3º trimestre de 2020, esses “ganhos” em termos de salário/hora foram sendo gradualmente diluídos. Assim, a contração da renda observada ao final de 2020 se deve basicamente ao efeito ocupação, tendo em vista que 6% de todas as pessoas que estavam ocupadas no estado acabaram desempregadas ou então saíram do mercado de trabalho ao longo do ano[5].
Por fim, nota-se ainda um leve aumento do salário/hora no acumulado do ano. Assim como o crescimento dos rendimentos médios habituais, esse resultado não significa que houve uma melhora do nível salarial no estado, mas sim um aumento das desigualdades, ocasionada pela concentração das perdas de ocupações entre os segmentos de trabalhadores mais pobres[6].
Impacto sobre a renda domiciliar
Em um cenário de expansão do desemprego, a análise dos rendimentos individuais apresenta uma grande limitação, uma vez que considera somente a população ocupada. Esse problema pode ser contornado por meio da mensuração da renda do trabalho por domicílio, procedimento que permite verificar a renda disponível para toda a população, incluindo as famílias cujos responsáveis encontram-se sem trabalho. No entanto, a limitação que persiste é que esses dados ainda se restringem aos rendimentos do trabalho que, segundo a PNADC anual de 2019, representam cerca de 75% da renda total das famílias catarinenses.
De acordo com a Tabela 1, a renda per capita média das famílias catarinenses passou de R$ 1.453,37, no 4º trimestre de 2019, para R$ 1.317,92, no 4º trimestre de 2020, representando uma queda de 9,3%. Esse resultado se deve tanto à perda de ocupações quanto ao cenário de arrocho salarial, que se estendeu por quase todas as classes de renda. Puxada pela queda no emprego formal, as faixas intermediárias foram as que mais encolheram, com destaque para a das famílias que recebiam entre 2 a 3 salários mínimos (-10,3%) e de 1 a 1,5 salário mínimo (-6,9%) por morador. Em termos absolutos, 27 mil e 30 mil domicílios saíram dessas faixas, respectivamente. Já as perdas de ocupações informais incidiram especialmente sobre a faixa de até meio salário mínimo per capita, que registrou queda de 4,6%. Por abranger grande parte das pessoas que voltaram a trabalhar a partir do 3º trimestre, a faixa dos domicílios com renda entre meio e um salário mínimo per capita foi a única que permaneceu praticamente estável. Além disso, houve perda de rendimentos efetivos também na faixa das famílias melhor remuneradas, ocasionada pela migração dos domicílios que recebiam a partir de 5 salários mínimos per capita para faixas de renda inferiores.
Tabela 1 – Distribuição dos domicílios por faixa de rendimentos do trabalho per capita (Santa Catarina, mil domicílios)
Em que pese a redução dos rendimentos efetivos e a consequente migração dos domicílios para faixas de renda menores, o maior efeito da crise foi, sem dúvida, o aumento do contingente de famílias sem renda. Em decorrência das 220 mil ocupações remuneradas perdidas ao longo de 2020, o número de domicílios sem renda do trabalho em Santa Catarina saltou de 544 mil, no 4º trimestre de 2019, para 697 mil, no 4º trimestre de 2020, representando uma alta de 28,2%. Em termos relativos, esse grupo também atingiu seu maior patamar da série histórica, abrangendo 26% do total de domicílios, ou seja, 5,1 pontos percentuais a mais do que tinha sido registrado ao final de 2019.
De uma maneira geral, nem todos os domicílios que deixaram de receber renda do trabalho devem estar passando por grandes necessidades, uma vez que parte considerável deles possui rendimentos de outras fontes ou algum nível de poupança. Para isolar esses fatores, a Tabela 1 desagrega os domicílios sem renda entre aqueles cujos responsáveis são pessoas inativas (que não estão ocupadas e nem desejariam trabalhar) ou desempregadas (procurando trabalho ou na força de trabalho potencial, isto é, que não realizaram busca efetiva por trabalho, mas necessitariam trabalhar)[7].
Inicialmente, nota-se que os domicílios com responsáveis inativos já eram a maioria em 2019 (19,1%), mantendo-se nessa condição também durante a pandemia (23,7%). Esse resultado não é nenhuma surpresa, tendo em vista o grande número de domicílios chefiados por aposentados, pensionistas ou pessoas permanentemente fora do mercado de trabalho por outras razões. Entretanto, vale observar que esse grupo cresceu 27,6% em 2020, incorporando 137 mil novos domicílios. Em grande medida, isso se deve aos trabalhadores provisoriamente afastados de suas ocupações (pela MP 936 ou por contágio por coronavírus, por exemplo), além daqueles que saíram voluntariamente do mercado de trabalho por contarem com outras fontes de renda (seguro-desemprego, no caso dos empregados formais demitidos, ou mesmo ativos financeiros, no caso de parte dos domicílios mais ricos). Desconsiderando esses grupos, sobram ainda as famílias cujos responsáveis necessitariam trabalhar para auferir renda, porém não conseguiram fazê-lo. Ao longo de 2020, o total de domicílios nessa condição em Santa Catarina passou de 45 mil, para 61 mil, registrando um crescimento de 35%. Considerando os residentes nesses domicílios, estima-se que aproximadamente 40 mil domicílios de catarinenses tenham perdido sua fonte de renda no ano de 2020.
Se somarmos esse grupo anterior aos trabalhadores submetidos a um regime de trabalho precário e mal remunerado, chega-se aos grupos sociais mais vulneráveis do estado do ponto de vista da renda, uma vez que dependem quase que exclusivamente de seu trabalho para acessar os itens que garantiriam a subsistência básica. Descontados os domicílios com responsáveis inativos, estima-se que 3% das famílias catarinenses se encontram sem renda e 15,8% delas não recebem, em média, mais do que meio salário mínimo. Agregando ainda os domicílios com renda per capita de até um salário mínimo, chega-se a 43,5% da população ativa, conforme demonstra o Gráfico 3.
Gráfico 3 – Distribuição dos domicílios ativos por faixa de rendimento do trabalho per capita em Santa Catarina (2020, em %)
Fonte: PNADC/T (2021).
Ainda que a queda generalizada dos rendimentos do trabalho em Santa Catarina possa ter sido compensada por transferências de renda – com destaque àquela proveniente do Programa Auxílio Emergencial –, a concentração dos domicílios nas menores faixas salariais durante o ano de 2020 revela uma nova escalada da degradação das condições sociais no estado, tendo em vista a baixa abrangência dos programas de transferência de renda atualmente em andamento e a fragilidade histórica do sistema de proteção social para garantir assistência às famílias brasileiras e catarinenses em momentos adversos como este.
[1]Estudante de Economia da UFSC e bolsista do NECAT-UFSC. Email: [email protected]
[2] Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email:[email protected]
[3] BARBOSA; SOUZA; SOARES. Distribuição de Renda nos Anos 2010: Uma Década Perdida para Desigualdade e Pobreza. Rio de Janeiro: IPEA (Texto para Discussão, n. 2610), nov/2020.
[4] Na metodologia da PNADC, o rendimento habitual é o valor médio que o trabalhador normalmente receberia no período em sua atual ocupação, sem descontos ou acréscimos extraordinários; já o rendimento efetivo diz respeito à remuneração de fato recebida no mês anterior à coleta, considerando descontos ou acréscimos extraordinários e/ou sazonais.
[5] HEINEN; MATTEI. Mesmo com baixo desemprego, Santa Catarina perdeu 220 mil postos de trabalho em 2020: como isso foi possível? 2021.
[6] HEINEN; MATTEI. A queda dos rendimentos do trabalho em Santa Catarina durante a pandemia da Covid-19. 2020.
[7] Sobre a relação entre rendimentos e saída da força de trabalho em Santa Catarina, ver HEINEN, V. L. O mercado de trabalho catarinense diante da crise da Covid-19. 2020.