Por Marco Vasques, para Desacato.info.
É clichê. Todos sabemos daquela expressão que diz que família é uma contingência. Não temos escolha. É preciso se conformar com os irmãos, pais, primos, tios. Podemos amá-los. Podemos odiá-los. Podemos apenas ficar distantes, como um parente estranho que não consegue respirar o mesmo ar. Podemos ainda ter aquela aproximação aconchegante e agradável ao lado dos familiares. Não há regras. É possível ser alegre e mesmo feliz no seio familiar. Contudo, também é provável que muita infelicidade se instaure na vida de uma família. Talvez a única certeza sobre o assunto tenha sido percebida por Tolstói, ao constatar que “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.
Também sabemos de outra expressão que diz que podemos escolher nossas famílias, ou seja, podemos selecionar, no infindo universo das gentes, algumas pessoas em quem depositaremos nosso carinho, nosso amor, nosso olhar terno. Essas pessoas são nossas amigas, nossas amantes, nossas conselheiras, nossas companheiras, nossas referências e, com elas, partilhamos dores, sonhos, alegrias, tristezas e oferecemos, via de regra, nossos olhares ternos e prenhes de afeto e vida. Não ter ninguém a recorrer, seja para as lágrimas, seja para os sorrisos, parece-me, significa navegar na mais absoluta penumbra. Não ter em quem confiar nossos olhos, mãos e coração nos deixa frágeis às dores do mundo, que, também, todos sabemos, não são diminutas.
Em Joinville, cidade na qual passei parte da minha infância e adolescência, morei em vários endereços. Minha mãe, que criou sozinha quatro filhos, se mudou algumas vezes de casa em decorrência da necessidade de diminuir o preço do aluguel a ser pago. Vivi minha primeira infância em Imbituba. Uma infância tortuosa que vibrou entre os abusos dos adultos, sempre rudes e brutos, e o idílio do sítio de meus avós, que se constituiu no único paraíso que minha tenra idade encontrou. As duas lagoas dentro do sítio do meus avós, as dunas, os capões cheios de pássaros, a pesca de meu avó Piala, o mar de um lado, o rio do outro. Ao meio de tudo isso o asfalto da BR-101 e a aspereza de uma família grande em migração.
E foi por esta mesma rodovia que, aos poucos, quase toda a família foi parar em Joinville. Todos ao encontro do trabalho. Sempre mantendo uma dimensão rude e sofrida de trabalho. Em síntese, para eles, trabalho não é lugar de prazer, mas de ganhar o suficiente para comer, dormir e acordar para mais uma vez trabalhar. Limpar casa de gente rica, apertar parafuso numa linha de produção, vender picolés, tapetes, encontrar um lugar em uma multinacional, enfim, trabalhar implicava, e ainda implica para grande parte da minha família, uma grande dose de sacrifício, suor e servidão.
Como se pode intuir, já naquela época, tinha uma queda pelos párias, pelos desesperados, pelos desajustados. Tanto que meu primeiro amigo, no bairro Costa e Silva, foi Bernardo. Um senhor bêbado que carregava, de boteco em boteco, um violão como fiel companheiro. Mas nada foi tão marcante em minha vida afetiva que conhecer a família da Dona Irene. Como minha mãe, Dona Irene, também sozinha, criava três filhos. Cátia, Deise e Mano. Deise foi minha primeira ilusão amorosa. Mano, meu primeiro irmão. Aqui é preciso falar um pouco sobre Mano, porque começamos a nos comunicar pelo olhar, pelo sorriso e por gestos de pele. Mano, que tem exatamente a minha idade, sofreu um erro médico na infância que o deixou sem fala, sem movimento e com o corpo todo enrijecido. Mano, ainda hoje, só solta alguns grunhidos, baba muito e se comunica pela expressão facial.
Faz algum tempo soube da morte repentina de Dona Irene, que cuidava de Mano como se cuida do mais precioso bem. E Mano sempre foi e é, ainda hoje, precioso. Mano sempre me recebeu com o sorriso possível. A expressão em sua face, a me ver, demostrava nossa irmandade. Mano nunca andou, nunca amou uma mulher, nunca falou de suas dores, mas, juntos, sempre soubemos de nosso amor infindo. Nossos olhos se comunicavam, e meu toque em seu rosto sempre trouxe alegria a ele. Quando o abraçava, sentia que seu corpo tremia, um tremor com energia ímpar.
Havia outro código nosso. Visitava Mano sempre, ao menos duas vezes por semana. Ao abrir o portão da casa de Dona Irene, gritava alto que a alegria estava chegando, porque Mano, quase todo o dia, ficava no sofá da sala cuja janela era bem próxima ao portão de entrada. Mano não falava, mas balbuciava de alegria ao ouvir meus berros estridentes.
Hoje, com tantos amigos que se foram, com tantos amigos construídos. Hoje, com tantos amores que escorregaram pelo tempo, meu corpo e minha memória têm saudades daquele irmão que foi a minha primeira descoberta amorosa. Mano foi o meu primeiro amparo familiar e hoje tenho saudades desse meu irmão eterno.