O uso de medicamentos sem eficácia, presentes no kit covid-19, colocou cinco pacientes na fila do transplante de fígado em São Paulo. Os remédios, defendidos por Jair Bolsonaro e médicos negacionistas, também é investigado por matar outras três pessoas por hepatite. De acordo com reportagens do Estadão, publicadas nesta terça-feira (23), o kit covid-19 também pode ter causado hemorragias, insuficiência renal e arritmias em pacientes que fizeram uso dos medicamentos. Entre os remédios usados, estão: hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes – todos sem eficácia contra a doença.
A ivermectina, por exemplo, indicada para tratar sarna e piolho, é um dos medicamentos foram utilizados por cinco pacientes que entraram na fila de transplante de fígado. Semanas antes, diagnosticados com covid10, receberam a prescrição do kit covid-19 para o chamado “tratamento precoce”. Ao Estadão, o médico Luiz Carneiro D’Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do Hospital das Clínicas da USP, relata que atendeu quatro dos pacientes. “Quando fazemos os exames no fígado, vemos lesões compatíveis com hepatite medicamentosa. Vemos que esses remédios destruíram os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino”, disse.
Kit covid-19 sob suspeição
Ainda de acordo com D’Albuquerque, dos quatro pacientes colocados na fila do transplante, dois tiveram doença aguda e morreram antes da operação. O outro óbito por doença hepática aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre. A professora Ilka Boin, da Unidade de Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Unicamp, onde um paciente aguarda transplante, explica que as biópsias do fígado desses pacientes evidenciam que os casos são de origem medicamentosa, sem relação com o próprio coronavírus.
“A covid-19 pode atacar o órgão, mas de uma forma diferente. Ela causa pequenos trombos (coágulos) nos vasos. Esse padrão que encontramos é de lesão por medicamentos”, explicou a especialista. “Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo”, acrescentou.
Ao jornal, a filha de um paciente que morreu de covid-19, mesmo após a opção pelo kit de remédios sem eficácia, relata que o pai pediu os medicamentos defendidos pelo presidente. “Ele disse que queria porque era o remédio do Bolsonaro.” Segundo ela, uma unidade da Prevent Senior cedeu o o kit covid-19 ao seu pai, com azitromicina, cloroquina, vitaminas, corticoide.
Hemorragias e insuficiência renal
O médico nefrologista do Hospital das Clínicas da USP Valmir Crestani Filho relata ter atendido pacientes com hemorragia e insuficiência renal ligadas ao uso de medicamentos do kit covid-19. Em um dos casos, um paciente recebeu azitromicina e teve cólicas, diarreia e fortes dores abdominais, efeitos conhecidos do antibiótico.
Ao ser atendido por um serviço de saúde, o doente recebeu omeprazol para o alívio dos sintomas, mas desenvolveu um quadro raro de insuficiência renal. Ele precisou ser internado para fazer algumas sessões de diálise e se recuperou.
O outro caso é de um paciente que recebeu prescrição de anticoagulantes, também de tratamento precoce do kit covid-19, e teve uma hemorragia gástrica. Ele tinha um quadro de úlcera não diagnosticado e a medicação acabou agravando o problema.
Kit covid-19 tem riscos
O kit covid-19, também chamado de tratamento precoce, contribui para aumentar o número de mortes de pacientes graves. É o que dizem diretores de Unidades de Terapia Intensiva de hospitais de referência, em entrevista à BBC News Brasil.
Segundo o médico intensivista Ederlon Rezende, coordenador da UTI do Hospital do Servidor Público do Estado, em São Paulo, 15% ou 20% dos que usaram os remédios e precisam de internação, podem prejudicar o tratamento no hospital e contribuir para a morte de pacientes.
A pneumologista Carmen Valente Barbas (HC e Albert Einstein), diz que a maioria das pessoas que ela atende dizem, na consulta, que tomaram medicamentos do kit covid-19. “Esses remédios não ajudam, não impedem o quadro de intubação, e trazem efeitos colaterais, como hepatite, problema renal, mais infecções bacterianas, diarreia, gastrite. E a interação entre esses medicamentos pode ser perigosa”, acrescentou.
Para o supervisor da UTI do Hospital Emilio Ribas, Jaques Sztajnbok, o uso “preventivo” de azitromicina e corticoide causa mais mortalidade do que protege. “Se você dá corticoide a paciente de covid sem necessidade, ele vai ter um desempenho pior. Ele morrerá mais do que se tivesse sido adequadamente tratado.”