Por Conceição Lemes.
A sequência de atos de autoritarismo e truculência do reitor João Grandino Rodas conseguiu algo inédito, impensável até recentemente: unificar a resposta das entidades representativas de alunos (DCE), professores (Adusp) e trabalhadores (Sintusp) e de boa parte da comunidade uspiana à falta de democracia na USP.
“Por iniciativa dos signatários do Manifesto pela Democratização da USP, foram iniciadas conversas para criação do Fórum Aberto pela Democratização da USP”, informa Walter Andrade, formado em direito pela Faculdade de Direito (a SanFran, como é chamada), e atualmente fazendo graduação em Filosofia (FFLCH/USP). “Que teve sua primeira reunião na quarta-feira passada, 2 maio. E haverá outra nesta terça 8, para instalar o Fórum”.
A recente onda de arbitrariedades na USP começou com a violenta reação do reitor à ocupação da Reitoria por um grupo de estudantes como ato de protesto contra o convênio assinado com a PM ( ). Depois, foram os processos judiciais e administrativos contra estudantes, trabalhadores e até mesmo entidades como a Adusp.
Na sequência, a denúncia de irregularidades nesses processos e a recusa do monumento na Praça do Relógio em homenagem às vítimas da ditadura na USP Relógio acabaram levando à consolidação no início deste ano do Manifesto pela democratização da USP.
A Reitoria retorquiu, publicando no USP Destaques n. 56 o artigo A democracia na USP, onde afirma que o modelo de administração da universidade é democrático e os signatários do Manifesto são “autointitulados perseguidos pelo regime militar”.
De novo, ADUSP, Sintusp e DCE reagiram em conjunto. O resultado é a carta abaixo (encaminhada a nós via e-mail por Ricardo Maciel), onde abordam as informações inverídicas do USP Destaques, ponto por ponto tudo.
Carta Aberta sobre o USP Destaques nº 56
As entidades representativas dos estudantes, funcionários técnico-administrativos e professores da Universidade de São Paulo vêm, por meio desta, expressar sua preocupação com o conteúdo do boletim USP Destaques n° 56, de 9/3/2012.
O referido boletim tem como título “A democracia da USP” e inicia com um questionamento ao Manifesto pela Democratização da USP, assinado por 70 vítimas da ditadura militar, seus familiares, 245 docentes da USP e 217 professores de outras universidades do país e do exterior.
Concordemos ou não com o Manifesto, no todo ou parte, julgamos inadmissível que a Reitoria da USP ponha em questão o fato de que seus signatários, sob a rubrica “familiares de mortos e desaparecidos, ex-presos e perseguidos pela ditadura”, representem ou tenham sido, de fato, vítimas do regime de exceção iniciado com o golpe militar de 1964. Ao afirmar que os signatários são “autointitulados perseguidos pelo regime militar, parentes de companheiros assassinados… e defensores dos princípios por eles almejados”, a Reitoria transpõe para o plano subjetivo – logo, passível de relativização – o reconhecimento dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura. Tal negação histórica, arbitrária e desqualificadora em si mesma, assume um caráter extremamente grave ao ser emitida pelo órgão máximo de uma das maiores e mais importantes universidades públicas no país.
O USP Destaques n° 56, apesar de tentar deslegitimar o citado Manifesto, desenvolve temas que, embora referidos nele, dizem respeito ao atual momento vivido pela USP. É o caso, por exemplo, da negação de “perseguições políticas no seio da Universidade”. A alegação central da Reitoria é a de que os processos contra membros da comunidade uspiana não dizem respeito a “manifestações individuais ou coletivas”, mas sim a “ações (….) consideradas como crime pelo Código Penal Brasileiro”. Temos consenso quanto ao princípio de que numa democracia vigorem os mecanismos que permitam atribuir aos cidadãos a devida imputação de responsabilidade pelos seus atos. No entanto, não cabe à administração universitária punir alguém penalmente, o que torna a menção ao Código Penal, feita no boletim, de uma inconsistência que só revela tendência autoritária.
Sobre os processos disciplinares instaurados pela Reitoria, alguns deles com início na gestão anterior, sabe-se que, no caso de Claudionor Brandão, demitido “por justa causa”, não houve a necessária ação judicial para apuração desta, como prevê a legislação trabalhista, tendo sido o sindicalista punido pelo fato de, atuando em solidariedade com os trabalhadores terceirizados, ser acusado de reincidência. O fato que originou a alegada reincidência ocorreu em momento anterior ao ato que gerou a primeira punição. Ainda assim, ressalte-se que, em virtude da estabilidade prevista na Constituição aos dirigentes sindicais, Brandão não poderia ter sido demitido por meio de processo administrativo interno da USP, mas somente mediante processo na Justiça do Trabalho. A demissão do sindicalista antecipa a instauração de processos e ameaças de demissões de vários outros dirigentes do Sintusp, também pelo exercício de atividades sindicais que lhes são próprias, ao mesmo tempo em que se ignora a ocorrência de fatos que necessitam ser devidamente apurados, como a denúncia feita pelo Sintusp sobre a tentativa de atentado à sua sede em 12/01/2012.
Intimidação
Já no caso dos oito estudantes expulsos em dezembro de 2011, não está claro no processo que os punidos tenham efetivamente sido autores dos atos a eles atribuídos. Além disso, na Portaria que instaurou o processo administrativo contra os estudantes não há qualquer menção aos “crimes” que lhes foram imputados pela Reitoria no USP Destaques. O fato é que, na Portaria, há referência apenas à “invasão e ocupação das dependências da Divisão de Promoção Social da Coordenadoria de Assistência Social (…), ocorrida no dia 18 de março de 2010, por volta das 1h15min”. A mesma acusação, sem qualificações, aparece no Decreto que torna pública a decisão de expulsão dos estudantes, considerando “verdadeiros os fatos que lhes são imputados quanto à invasão e ocupação das dependências da Divisão de Promoção Social da COSEAS no dia 18.03.2010” (Cf. Nota sobre o USP Destaques n° 56 do advogado desses estudantes, Aton Fon Filho.
http://goo.gl/62gLu).
Portanto, tal punição não ocorreu por crimes como depredação do patrimônio público ou extravio de documentos, mas pelo ato de ocupação em si, que pode ser facilmente considerado como “Protestos extraordinários (…) por meio de demonstrações”, que o próprio boletim da Reitoria considera “cabíveis em um Estado democrático de direito, como o Brasil”.
Tanto no caso do sindicalista como no da expulsão dos estudantes há graves irregularidades que indicam a perseguição de pessoas que ousam agir politicamente na USP para reivindicar direitos, fato este reforçado quando se considera a quantidade de processos disciplinares instaurados desde o início da gestão do atual Reitor. A maior evidência da fragilidade dos processos que resultaram na expulsão dos estudantes é que os mesmos começam a ser contestados na Justiça, gerando uma desnecessária exposição pública da instituição, fato que já estava ocorrendo desde a dispensa abrupta de 270 aposentados em janeiro de 2011.
Se é verdade que a apuração de crimes não constitui perseguição política, também é verdade que a atribuição aleatória de culpa a constitui, uma vez que produz intimidação, insegurança e medo, desencorajando os membros da comunidade universitária a engajar-se publicamente nas questões e na solução de problemas da instituição.
É nesse contexto que se identifica como tentativa de intimidação a interpelação judicial por meio da qual a Reitoria alega buscar explicações da diretoria da Adusp, por conta de supostas declarações críticas à atual administração. Embora a lei brasileira proteja os cidadãos contra crimes de “calúnia e difamação”, tentar atribuir teor de “calúnia e difamação” a análises de conteúdo político sobre instituições públicas e seus dirigentes, feitas com vistas a tornar mais claras as motivações de atos administrativos, configura óbvia tentativa de cerceamento do direito de manifestação da entidade de classe, que – no limite – pode ser interpretada como censura e abuso de poder.
Disparidade
A nota da Reitoria afirma que é um direito legítimo da Administração da USP recorrer ao Poder Judiciário e que os próprios setores que contestam sua política já mobilizaram, outrora, esse mesmo Poder. Tal comparação é descabida, considerando-se a disparidade entre, de um lado, o poder de mobilização judicial de estudantes e servidores e, de outro lado, o poder da Reitoria da USP, além da dissonância dos propósitos das partes. Estudantes, técnico-administrativos e docentes vão ao Judiciário para reaver direitos atingidos por ato de poder da Administração pública e esta, sem abrir mão de seu poder institucional, ainda se vale do Judiciário para reforçá-lo perante estudantes e servidores, os quais, por conseguinte, são tratados como adversários, instaurando-se um clima de autêntica repressão, com negação direta do que é essencial na construção democrática das relações institucionais – o diálogo, apesar do discurso em contrário (Cf. o então candidato a reitor, João Grandino Rodas, Informe n° 2, “Princípios Norteadores Principais”, São Paulo, 5/10/2009).
Enquanto a Reitoria dispõe de meios institucionais para intervir diretamente na vida universitária, com amplas consequências no cotidiano e futuro de seus membros, estudantes e servidores recorrem ao Judiciário como medida defensiva, que pode dar resultados apenas em médio ou longo prazo, sob risco de perda de direitos adquiridos, incluindo meios de subsistência. Nenhum desses riscos corre quem usa o Judiciário enquanto dirigente de instituição. Para estes, o recurso ao Judiciário constitui opção política que substitui o diálogo e a negociação, ou que precede a todo diálogo, justamente como acaba de mostrar a Reitoria na interpelação judicial impetrada contra a diretoria da Adusp por declarações a ela atribuídas e publicadas em editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 25 de fevereiro de 2012.
Outra questão levantada no USP Destaques n° 56 é a presença – ou “permanência”? – da Polícia Militar no campus Butantã. Valendo-se de um tom irônico, a Reitoria afirma que aqueles que questionam a recente mobilização da PM pela Reitoria contestam, na verdade, o poder de polícia conferido a essa corporação pela Constituição Federal, de modo que, para recusar a atuação da PM na USP, seria necessário: “1) emendar a referida Constituição; ou 2) parte do território nacional se proclamar novo Estado soberano e ser reconhecido pela comunidade internacional”.
Ao sugerir que o que está em jogo é uma negação de toda e qualquer atuação da PM no campus, deturpa-se a reivindicação de amplos setores da universidade que defendem a anulação do convênio estabelecido pela direção da USP em 2011 e a consequente retirada da PM do campus da USP. Caberia perguntar: antes da formulação de tal convênio, a Cidade Universitária não estava inserida em um Estado soberano, como sugere ironicamente o boletim?
Já é tempo de o Reitor dispor-se a discutir com seriedade e respeito os assuntos que afetam a universidade. O que motivou este protesto é precisamente o convênio que militariza o campus e tem recebido questionamentos jurídicos e políticos bem fundamentados, dentro e fora da USP.
“Aberração”
Assim, por exemplo, o jurista e professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais, Túlio Vianna afirma, em artigo publicado na revista Fórum de 9/1/2012 <http://goo.gl/YZgkY> que “A presença da Polícia Militar nos campi das universidades públicas brasileiras é uma aberração jurídica que só pode ser superada com a criação das guardas universitárias ou o seu fortalecimento onde ela já existe, como é o caso da USP.” Sua apreciação tem por base o fato de a USP ser uma autarquia e se referenda, justamente, no funcionamento da segurança em outras autarquias. Do mesmo modo, a própria PM-SP, na figura de seu Ouvidor, Luiz Gonzaga Dantas, afirmou à Rádio Brasil Atual que o convênio USP–PM devia ser questionado e que a Ouvidoria da PM pediria audiência com o reitor Rodas para revisá-lo. A declaração foi motivada por avaliação da agressão, em janeiro último, por um policial que, sem qualquer justificativa, apontou arma de fogo para a cabeça de um aluno, dentro de espaço dos estudantes da USP, depois de ter-lhe dado tapas na cara.
Além de ser objeto de questionamentos de pessoas externas à USP, o citado convênio também foi questionado, com fundamentação, por representantes em vários colegiados. Assim, é estranho que a Reitoria reclame, no mesmo USP Destaques, de uma suposta omissão dos representantes de estudantes e servidores na vida institucional da USP. Isso porque, na sessão do Conselho Universitário de 13/12/2011, o convênio com a PM foi objeto de questionamento em intervenções das Congregações da Escola de Comunicações e Artes e da Faculdade de Educação, do representante dos doutores e de todos os representantes discentes de graduação e pós-graduação. Antes disso, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas também havia manifestado a necessidade de revisar o convênio e o DCE-Livre da USP havia divulgado um conjunto de propostas alternativas. A Reitoria encerrou a sessão do Conselho sem manifestar-se e, três meses depois, publica esse boletim no qual sugere nada ter ouvido, recorrendo a zombarias sobre o real conteúdo das propostas. É esse o convite que o Reitor nos faz à participação na vida institucional?
Parece-nos evidente que, ao afirmar que a USP não perdeu sua “capacidade de discutir internamente”, a Reitoria nega o anacronismo de seus órgãos deliberativos internos, sobretudo no nível central, refletido no Conselho Universitário. Destaque-se, neste sentido, que a postura do próprio Reitor evoca prescindir do órgão máximo de deliberação da universidade. Gera-nos estranheza que em 2011, ano em que inúmeros acontecimentos e mudanças importantes incidiram sobre a USP, o referido Conselho não tenha sido mais vezes chamado a opinar.
Não é de se estranhar, portanto, que diante desse esvaziamento das instâncias internas de discussão e decisão da USP nenhum colegiado tenha discutido e/ou deliberado, de forma necessariamente antecedente, sobre a demissão de 270 servidores em janeiro de 2011. Tratou-se de uma deliberação exclusiva da Reitoria que foi ocultada, inclusive, dos diretores das unidades onde esses servidores trabalhavam. Nenhum colegiado interno da USP debateu e/ou deliberou, também, sobre a criação da denominada “sala de crise”, que, na verdade, é um relatório minucioso das atividades políticas e sindicais, incluindo reuniões internas do Sintusp, Adusp e DCE dirigido à Reitoria da USP, veiculado originalmente em audiência pública da Alesp e posteriormente objeto de ampla reportagem publicada pela revista Fórum, em janeiro de 2011, sem qualquer desmentido por parte da Reitoria. Se a existência de um serviço de espionagem na universidade não é demonstração evidente de autoritarismo, o que seria?
Igualmente, os colegiados da USP não deliberaram a expulsão de estudantes em dezembro de 2011. E, neste caso, é flagrante no despacho do Reitor a inclusão, entre as alegações que “fundamentam” sua decisão, do “respaldo de, praticamente, a totalidade dos dirigentes das Unidades de Ensino e Pesquisa e Órgãos Centrais, expresso em documento datado de 13.12.2011”. É a mesma data da reunião do Conselho Universitário, em cuja plenária nada foi dito, por parte da Reitoria, acerca dessas expulsões, apesar de, durante a sessão, vários representantes terem solicitado o fim dos processos contra estudantes e servidores e a reforma do Regimento Disciplinar vigente. A esses fatos somam-se as reformas feitas sem que nada indique sua urgência, como a que está em andamento na pós-graduação.
Estatuinte
Por tudo isso, reafirmamos que a Universidade de São Paulo está efetivamente perdendo a capacidade de discutir internamente. Que tenha que ser o Ouvidor da Polícia Militar a lembrar à USP que ela goza de autonomia e que deve preservar o ambiente de democracia e diálogo é uma das expressões mais explícitas e paradoxais da crise institucional que vivemos. Para nós, é evidente que não é com ameaças de “responsabilização, inclusive penal”, como as que encerram a nota pública divulgada pela Reitoria em seu boletim USP Destaques n° 56, que enfrentaremos e superaremos a deterioração da vida comunitária, universitária e institucional em curso na USP.
Afirmamos, ainda, pelos motivos apontados anteriormente, que é absolutamente inaceitável a forma como a atual Reitoria vem administrando, gerindo e representando a universidade e argumentamos que é necessária a instauração de um processo Estatuinte, amplo e democrático, princípio este que defendemos há mais de duas décadas, pois é urgente uma profunda reforma dos estatutos e regimentos internos da USP!
São Paulo, 27 de abril de 2012
Adusp, Sintusp e DCE-Livre da USP
Fonte: http://www.viomundo.com.br