Por Elbert de Oliveira Agostinho¹, Portal Geledés.
Introdução
Os estudos sobre a História da África apresentam-se como essenciais para que se desconstrua uma visão tacanha que é reproduzida durante séculos, tratando o continente africano como um único país, e apresentando a História da África como uma história de atraso, onde todos eram menos desenvolvidos, e nesse sentido, a Europa trouxe a “luz para as trevas”. Se faz necessário remover, abrir passagem, e constituir novos caminhos epistemológicos que permitam uma percepção adequada de nosso riquíssimo patrimônio africano-brasileiro (LUZ,2009).
Hoje é necessário perceber a contribuição da Herança Africana para o mundo, e repensar todo o conhecimento que aprendemos, pois, até então, ouvíamos uma história vinda de um estudo etnocêntrico, onde a Europa detinha todo o conhecimento do mundo, e apresentava-se como a de “civilização”. Pois, para estes (europeus), o outro (negro) torna-se entãoreferência sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pré-lógica (MUNANGA, 2012).Torna-se importante para nós educadores compreendermos o perigo de uma história única (ADICHIE, 2010), deve-se analisar e perceber estes deslocamentos propiciados pela cultura europeia, evidenciando sua etnia e menosprezando as demais, propondo assim, informar os principais aspectos e indicar caminhos para um maior conhecimento (LIMA, 2013). Portanto, abordar conteúdos que trazem para a sala de aula a história da África e do Brasil africano é cumprir nossos grandes objetivos como educadores (SOUZA, 2007).
Apresenta-se como um desafio discutir o continente africano no ambiente escolar, e dentro desta perspectiva torna- se interessante desenvolver novas metodologias para o exercício de debates e aulas diferenciadas. Tendo como referência as ideias propostas acima, a utilização de histórias em quadrinhos pode funcionar como uma estratégia interessante para se propor aulas distintas, pois, as HQs podem ser consideradas uma forma de literatura (EISNER, 2013), e podem ser utilizadas como recurso pedagógico (RAMOS, 2012).
Os quadrinhos podem funcionam como uma ferramenta mais atraente no sentido de estimular a leitura, pois existe o apelo visual, a figura, essa narrativa visual dialoga melhor com as crianças, adolescentes e jovens. Seria então, as Histórias em Quadrinhos um tipo de leitura distinta, dotada de recursos próprios e exclusivos (MOYA; D’ASSUNÇÃO, 2002).
Nesse sentido, o trabalho em questão propõe abordagens diferenciadas dentro do universo escolar, tendo como referências Histórias em Quadrinhos que apresentem o continente africano, servindo de material para novas reflexões, e adequação de novos saberes para com os alunos, tais bibliografias dialogam de maneira diferente com o ambiente escolar, onde os alunos, lendo sobre o continente africano de forma diferenciada, constroem novas leituras distante de estereótipos e arquétipos imutáveis. Para tal foram selecionadas algumas Hqs que possam ser utilizadas como ferramentas e material didático que facilitem a interpretação e compreensão dos alunos, problematizando a “história única” que é disseminada sobre o continente africano, e desarticulando os estigmas que são construídos em torno do negro na sociedade brasileira.
Portanto, neste exercício analítico o aluno torna-se parte essencial do trabalho, pois, ao ter acesso a novas versões da África, o aluno pode construir novas possibilidade sobre a representação deste continente, partindo deste princípio, pretende-se elaborar juntamente com os alunos um laboratório dialógico, onde o aluno se tornará autor/desenhista de uma narrativa, ou seja, almeja-se que os alunos sejam autores de histórias em quadrinhos, e tais histórias funcionarão como termômetro indicativo, e nos fará perceber se as aulas propostas alteraram de alguma maneira a percepção dos alunos sobre o Continente Africano. Além disso, pretende-se auxiliar na construção de uma nova percepção sobre a África. E sobre a presença africana em nosso cotidiano.
Em suma, pretende-se alterar certos métodos de ensino no intuito de construir diferentes respostas, apresentando assim as histórias em quadrinhos como referencial bibliográfico para se construir diferentes imaginários sobre o cenário africano, compartilhando com os alunos o prazer da leitura, a análise sobre a representação, e a elaboração de personagens, tendo como base a construção de saberes adquirida pelos alunos. Trata-se então de um exercício, em que também será analisado a maneira de pensar dos alunos, e as relações dialógicas entre as aulas e a produção de um trabalho específico sobre histórias em quadrinhos, almejando assim, uma Nova África a partir dos alunos que seja contrária ao pensamento eurocêntrico latente nos livros didáticos.
Novos Olhares sobre o Continente Africano
A pesquisa e consequente análise sobre o continente africano apresenta-se como prática importante, principalmente dentro do ambiente escolar. Dentro do espaço educacional ainda funcionam representações errôneas sobre a História da África, nesse sentido, cabe aos educadores o exercício de projetar novos saberes, dialogando com os alunos sobre as maneiras diferentes de se observar o mundo, e consequentemente a África. Em uma perspectiva histórica torna-se interessante salientar que a África é um amplo continente, em que vivem e viveram desde os princípios da humanidade grupos humanos, com línguas, costumes, tradições e maneiras de ser próprias, construídas ao longo de sua história. Portanto torna-se um equívoco pensar em “africanos” como algo singular, percebe-se através de novos olhares, a pluralidade existente no continente.
“A África é o segundo continente do mundo em população, com mais de 800 milhões de habitantes. Lá vivem 13 de cada 100 pessoas no mundo e a taxa de crescimento da população é uma das mais altas do nosso planeta: de quase 3% ao ano. É o terceiro continente do mundo em extensão, com cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados que correspondem a 20,3% da área total da terra”. (LIMA, 2013. p. 29).
A historiadora Mônica Lima, especialista nesta temática comenta que no Continente Africano existem 54 países, sendo 48 continentais e seis insulares, e ainda há 10 territórios dominados por países estrangeiros, sendo que a maioria desta são ilhas.
“Cerca de 75% da superfície do continente se situa nos trópicos, e somente as suas extremidades norte e sul têm clima temperado. É o mais quente dos continentes, ainda que tenha regiões de altas montanhas, sempre cobertas de neve, como o Monte Kilimanjaro, no Quênia”. (idem).
Segundo Mônica Lima torna-se importante destacar, também que no Continente Africano falam-se aproximadamente duas mil línguas, as quais por sua vez têm suas variantes: os dialetos. E entre essas línguas, mais de 50 são faladas por mais de um milhão de pessoas. A autora continua: “Os estudiosos localizam cinco grandes famílias linguísticas na formação dos idiomas do continente” (LIMA, 2013. p. 2013).
Nota-se que existe uma série de fatores que durante séculos foram silenciados a respeito do Continente Africano, portanto, faz-se necessário este estudo, no sentido de se aprofundar sobre as possibilidades e perspectivas de se observar tal continente. Para tal, verifica-se a importância de se estudar a História da África, e apresentar a relevância desse estudo, proposta que será apresentada no decorrer deste trabalho.
Por que devemos estudar sobre a História da África?
“- Somos o que trazemos coma gente… Dos nossos Antepassados da África!
– A Senhora nasceu na África Vovó?
– Eu não… Mas nossos Ancestrais vieram de Lá. Grande parte da nossa cultura veio de lá.” (Diálogo extraído da revista em quadrinhos: A Herança Africana no Brasil de Daniel Esteves e Wanderson Sousa. Editora Nemo. 2015).
Os estudos sobre o continente africano apresentam um espaço de diversidade e pluralidade, ao observar seu retrato físico por exemplo, compreende-se que o continente africano é cercado a nordeste pelo mar Vermelho, ao norte pelo Mediterrâneo, a oeste pelo oceano Atlântico e a leste pelo oceano Índico.
Nota-se que os rios são os meios de comunicação mais importantes do continente, e que entre eles destaca-se o rio Nilo, que nasce na região do lago Vitória e deságua no Mediterrâneo. Ainda sobre a importância do Continente Africano, destaca-se:
“As informações mais antigas acerca de povos africanos referem-se ao Egito, onde floresceu há 5 mil anos, no vale do rio Nilo, uma civilização que durou mais de 2 mil anos e deixou algumas marcas de sua grandeza, como os túmulos reais e as pinturas”. (SOUZA, 2007. p.11).
A história da África é parte indissociável da história da humanidade, portanto, a África deve ser compreendida como o berço da humanidade como salienta Mônica Lima:
“…Lá surgiram as primeiras formas gregárias de vida dos homens e das mulheres de nosso planeta. Em toda sua longa história, os nativos do continente africano estiveram relacionando-se aos habitantes de outras regiões e continentes. Seus conhecimentos, produtos, criações e ideias circularam o mundo, assim como os seus criadores” (LIMA, 2013. p. 23).
Compreende-se a importância do continente africano, os diversos matizes de nossa formação cultural, a memória de nossos ancestrais africanos e suas heranças. Pensar sobre estas questões nos leva a reconhecer que entre as heranças africanas no Brasil estão conhecimentos, condutas e visões de mundo. Ou seja, Os africanos que vieram como escravos para o Brasil trouxeram em suas memórias maneiras de se relacionar com as pessoas, de celebrar, de preparar os alimentos, de lidar com a religiosidade, fatos estes que são apagados, minimizados, e como afirma Mônica Lima (idem. p. 25):
“O nosso desconhecimento sobre a história e cultura dos africanos e dos seus descendentes no Brasil e nas Américas pode fazer muitas vezes com que optemos por utilizar esquemas simplificados de explicação para um fenômeno tão complexo” (LIMA, 2013. p. 25)
Nota-se todo processo de invisibilidade referente ao aspecto cultural existente no continente africano, tais características que poderiam funcionar como empecilho devem ser encaradas como desafio, no sentido de produzir novas possibilidades de evidenciar diferentes representações sobre a África, e a desconstrução de discursos lineares, apresentando assim a complexidade existente no continente, e evidenciando novos olhares, reconstruindo a identidade do continente que sofreu e ainda sofre com posturas errôneas, práticas eurocêntricas, processos de invisibilidade e apagamento, nota-se que é extremamente importante pontuar a característica identitária presente no continente, pois, as identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas (WOODWARD, 2014.)
Portanto, ao se propor aulas que se discutam sobre as representações do continente africano e sua contribuição cultural para a sociedade brasileira, torna-se necessário discutir com os alunos sobre o aspecto identitário, a partir desse pressuposto será possível desconstruir estereótipos sobre o continente, reapresentando o cenário étnico-cultural africano, assim, redescobrir o passado, é parte do processo de construção da identidade (WOODWARD, 2014).
O redescobrimento se faz necessário, a produção de novos saberes evidencia este aspecto, é extremamente importante remarcar as posições no qual o Continente Africano foi colocado, e dissipar as “representações selváticas” presentes nas narrativas sobre o continente, como sinalizou Fanon (2008): “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mas o colonizado escapará de sua selva” Neste trecho específico o autor faz alusão ao pensamento europeu, onde qualquer tipo de relações culturais existentes no continente africano eram compreendidas como menores, oriundas das selvas, bárbaras e consequentemente selvagens, torna-se importante salientar que ainda hoje, é possível perceber a valorização de valores específicos da “Metrópole”, a partir desta postura é possível compreender a relevância deste trabalho, pois, trata-se do exercício de formular novas representações sobre a África, destituindo o continente desta posição selvagem que o acompanha até os dias atuais.
1.2 Existem Histórias em Quadrinhos sobre a África?
A prática metodológica de descontruir as imagens sobre o continente africano pode ser pautada em diferentes possibilidades, no intuito de construir novas narrativas sobre a África é possível trabalhar com livros, figuras, cinema, ou seja, apropria-se de diversos meios para propor diferentes representações e construir novos sabres. Neste trabalho optou-se por utilizar as Histórias em Quadrinhos que apresentam temáticas ligadas a África.
Torna-se interessante comentar que atualmente existe uma série de obras em quadrinhos que podem ser utilizadas para tal fim, como por exemplo: A Herança Africana no Brasil (2015), Cumbe (2014), Aú, o Capoeirista (2008), Histórias de Tio Alípio e Alê (2009), Chico Rei (2007), Luana e sua Turma (2000), Jeremim, o príncipe que veio da África (1987), trata-se então, de analisar as diferentes bibliografias e perceber de que maneira se deseja trabalhar, que metodologia torna-se mais pontual, e que repercutirá melhor.
A Herança Africana no Brasil (2015), por exemplo, apresenta a relação entre os elementos culturais africanos e as práticas existentes no Brasil, articulando pontos de contato, e representando a estética negra de maneira singular, valorizando toda uma tradição pautada nas relações entre os antepassados e o que herdamos deles. De uma maneira poética, as narrativas se dividem entre os aspectos culinários, os ritmos diásporicos, a simbologia religiosa, e o mosaico particular existente apenas no cenário africano, além de se debruçar sobre o papel dos negros no processo abolicionista, apresentando estes como protagonistas, indivíduos que fazem parte do processo histórico que culminou na libertação dos escravos. A partir desta leitura é possível construir diferentes possibilidades para se trabalhar no ambiente escolar, levando o aluno a novas compreensões sobre as relações África-Brasil.
Nesse sentido, obras citadas podem ser compreendidas como importantes para discutir questões ligadas a identidade e representação e utilizadas na construção de novos saberes dentro do espaço escolar.
Entretanto, existem algumas obras que reproduzem narrativas sobre a África de maneira linear, diminuindo o continente, menosprezando seus habitantes, funcionando como elementos de manifestação neocolonialistas e relações paternalistas do europeu para com os africanos, ou seja, a mentalidade burguesa ligada à industrialização crescente, em desenvolvimento desde o século XVIII; a visão do europeu, branco, colonizador, em relação ao “Outro”, não branco e colonizado (Filho, 2013). É o caso, por exemplo, da obra “Tintim na África”, de Hergé publicada inicialmente em 1930.
“Em breve resumo, Tintim na África narra a viajem de um jovem repórter ao Congo, valioso Estado neocolonial da Bélgica. Tintim é o seu nome. Tão logo desembarca em terras africanas junto de seu cão Milu, o repórter é recebido com alegria pelos congoleses.” (FILHO, 2013. p.242)
A narrativa presente em Tintim apresenta exatamente um discurso colonialista, metáforas, estereótipos, e motivos alegóricos exercem papel fundamental na figuração da superioridade europeia.
Os habitantes do continente africano exaltam de maneira alegre e quase honrosa a figura do “outro” que se apresenta como o modelo ideal a seguir.
“Grande parte dos africanos representados na obra de Hergé veste-se à moda europeia. Curiosamente, no entanto eles parecem não saber utilizar as roupas de maneira adequada” (idem, p.245)
Dentro desta perspectiva torna-se interessante pontuar que a construção de uma representação dos africanos seria o reflexo do contexto histórico no qual se inseria o desenhista, período este marcado por uma ação imperialista, entretanto, levando em consideração o fato de a revista ter publicações mais atuais, deve-se compreender todas as questões relacionadas nos cenários gráficos e nas narrativas propostas. Nota-se que tal material pode ser utilizado, propondo releituras, indicando quais pontos são inadequados, ou seja, o material merece novas análises, e não apenas ser deixado de lado, esquecido, como característica mais “relevante”, trata-se deste exercício, incessante, trazer novos debates a assuntos vistos como fixos, imutáveis.
Nesse sentido torna- se importante desconstruir os estereótipos, pois, o estereótipo categoriza, funciona como um carimbo, as pessoas deixam de ser vistas por suas reais qualidades e passam a ser julgadas pelo carimbo recebido. É uma caricatura, uma imagem mental coletiva que apoia o preconceito (Pompeul, 2008). Segundo Dylia Dias (2010). O estereótipo funciona tendo como base o agenciamento das representações partilhadas por um certo sujeito enunciador. Nesse sentido, a mídia encontra-se como responsável por representações errôneas sobre o continente africano.
A autora ainda comenta que o estereótipo pode ser definido como uma representação fixa e partilhada, que funciona como conhecimento instituído, ou seja, a identidade dos grupos é definida a partir de uma categorização generalizante que relaciona comportamentos padronizados a um dado lugar de origem. Portanto, torna-se essencial descontruir tais estereótipos que fixam o continente africano em um lugar, menosprezando sua cultura, e estigmatizando sua história.
No intuito de apresentar novos olhares sobre a África, e trabalhar tais questões dentro do universo escolar optou-se pela utilização da figura do Super-Herói, ambiente familiar para os alunos, que costumam se impressionar com narrativas que promovem imaginários, e instigam a leitura. E tornando a temática mais adequada, tornou-se interessante observar e analisar as representações de um super-herói africano chamado Pantera Negra.
Quem é o Pantera Negra?
“Sendo o primeiro super-herói negro do mundo, o Pantera Negra é visto por muitos como um dos ícones culturais mais importantes da Marvel” (Marco M. Lupi, diretor de publicações da Panini na Europa e América Latina. Entrevista publicada em Quem é o Pantera Negra? Panini. 2014).
T’challa (alterego do Pantera Negra) é o herdeiro da dinastia que tem governado o reino africano de Wakanda (cidade fictícia) por séculos e o líder do clã da Pantera.
T’challa estudou na Europa e nos Estados Unidos, e então passou pelos rituais em Wakanda, inclusive o confronto com S’yan, o Pantera Negra na época. Só depois ele ganharia a erva em forma de coração para aumentar suas habilidades e o ligar espiritualmente ao Deus Pantera Bast. Tornando-se o monarca de Wakanda, no papel de Pantera Negra, ele debandou e exibiu o Hatut Zeraze para continuar a transformar o seu país em lugar altamente tecnológico, restabelecendo assim a paz em Wakanda.
Como o primeiro super-herói negro da história dos quadrinhos, o Pantera Negra pavimentou o caminho para outros como Falcão, Luke Cage, Tempestade e muito mais. Ele é um personagem cuja importância não pode ser diminuída, com um legado que se expande muito além da página” (Ed Hammond, editor da Marvel, Panini UK.Entrevista publicada em Pantera Negra, Panini. 2015).
O personagem fez sua estreia na revista Fantastic Four 52, em 1966². Os criadores Stan Lee e Jack Kirby conceberam a ideia de colocar um personagem negro nos títulos da Marvel Comics. O personagem que se restringia a aparições em histórias de outros super-heróis, teve sua revista própria em 1973, apesar de no início, ele ter sido apenas uma adição a um título já existente a Jungle Action. A revista já produzia histórias com temáticas que se passavam na África, o personagem foi escolhido para dar continuidade as histórias. Em 1977 a Jungle Action foi relançada como Black Panther.
“Antes de sua aparição, personagens negros nos quadrinhos pareciam resignados de ficar em segundo plano, jamais figurando como protagonistas” (Marco M. Lupi, diretor de publicações da Panini na Europa e América Latina. Entrevista publicada em Quem é o Pantera Negra, Panini. 2014).
A postura de Stan Lee e Jack Kirby foi considerada uma atitude corajosa, no intuito de reforçar a importância do personagem e evitar quaisquer clichês óbvios, Wakanda foi mostrada como uma nação africana diferente de todas as narrativas até então propostas. Wakanda, jamais tinha sido conquistada e apresentava uma política isolacionista, uma civilização altamente tecnológica que se harmoniza com a natureza africana.
“A popularidade do Pantera Negra estava garantida, aparentemente adorado pelos fãs independentemente de raça ou credo. No entanto, para muitas crianças afro-americanas, ele era mais do que apenas um super-herói – ele era uma inspiração. Aquela tinha sido a primeira experiência de ver um personagem negro em qualquer mídia que era igual, se não superior, a um personagem branco”. (Ed Hammond, editor da Marvel, Panini UK.Entrevista publicada em Pantera Negra, Panini. 2015).
Torna-se interessante salientar que sua primeira aparição ocorreu dois anos depois dos Estados Unidos terem aprovado a lei dos Direitos Civis, apresentando-se assim como referência no mundo de super-heróis para todos os negros dos Estados Unidos e do mundo, sendo aclamado pelos fãs e recebendo elogios de celebridades, como Ice Cube e Ziggy Marley.
“Não é surpresa que muitos negros atores, artistas, escritores e até mesmo astros do hip hop tenham declarado o quanto T’challa foi importante como modelo para sua juventude” (Marco M. Lupi, diretor de publicações da Panini na Europa e América Latina. Entrevista publicada em Quem é o Pantera Negra, Panini. 2014)
Em suma percebe-se a importância da representação e representatividade do personagem Pantera Negra, construído entre histórias que enfatizam suas raízes africanas se articulando entre relações internacionais e protecionismo político no Ocidente em um período pós-colonial.
Herói e Monarca, que defende sua Nação contra qualquer tipo de prática etnocêntrica. Este é o Pantera Negra. Ou seja, trabalhar com tal super-herói é propor um olhar diferenciado dentro do universo escolar, iniciando uma proposta de transformação, pois apesar de os alunos conhecerem muitos super-heróis, nem todos reconhecem o Pantera Negra como um africano, que vivencia um cenário no Continente Africano em desacordo com as narrativas europeias. Um rei que comanda um Império, que se apresenta nas histórias em quadrinhos como um dos locais mais ricos do mundo. A representação do personagem Pantera Negra torna-se referência importante para se discutir sobre a História da África, e sobre os reinos e a identidade étnica, nesse sentido, pontua-se as histórias em quadrinhos como recurso metodológico importante na construção de novos saberes sobre a História da África, pois a partir desta leitura inicial, o imaginário sobre o Continente Africano poderá ser transformado, e os alunos compreenderão a África de maneira diferente dos europeus.
Nesse sentido, percebe-se a importância de se levar os conhecimentos referentes a História da África ao ambiente escolar, pois, tal experiência apresenta-se como um desafio, no objetivo de projetar transformações no imaginário social sobre o Continente Africano. Então, deve-se descontruir essa construção baseada em referencias europeias, como sinaliza Munanga (2012): “Na situação colonial africana, a dominação é imposta por uma minoria estrangeira, em nome de uma superioridade étnica e cultural dogmaticamente afirmada, a uma maneira autóctone”. (Munanga, 2012, p. 25).
Portanto, apesar de os traços desta dominação se mostrarem visíveis, torna-se necessário romper com esses esquemas que simplificam a história da África, e produzir novos saberes.
A Utilização de Histórias em Quadrinhos no Ambiente Educacional
“Colocar quadrinhos na escola é algo que chega com atraso. No começo da década de 1990, o vestibular Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) já pedia aos futuros universitários a interpretação do humor em tiras cômicas. A questão é repetida até hoje. O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) também o usa o recurso em suas provas. A maioria dos livros didáticos de língua portuguesa já usa a linguagem há vários anos” (Ramos, 2012, p. 224).
As Histórias em Quadrinhos apresentam um grande histórico de percalços e perseguições, durante décadas foram mal compreendidas e subestimadas, no início até pelos próprios artistas, as histórias em quadrinhos têm uma trajetória meio marginal, entre altos e baixos, inclusive sendo percebidas com certas desconfianças pelos próprios pais, educadores e autoridades durante a maior parte do século passado.
“Os quadrinhos, do ponto de vista do governo, são vistos como uma ferramenta mais atraente para estimular a leitura. “O apelo visual, a figura, é algo que atrai demais a criança, é uma forma de ela se interessar pela leitura por um outro formato”, diz Cecília Correia Sampaio, coordenadora substituta do departamento de seleção de obras” (Ramos, 2012, p. 225).
A partir de certas abordagens educacionais as histórias em quadrinhos foram recuperadas, tratadas com consideração pela sua condição de arte e têm sido objeto de uma série de pesquisas acadêmicas, com vários trabalhos publicados. Hoje tal arte está inserida no contexto educacional como ferramenta metodológica contemporânea. Isso se deve ao esforço de intelectuais que enfrentaram preconceitos e a descrença do próprio corpo acadêmico, e que arriscando suas reputações pesquisaram profundamente os quadrinhos e sua linguagem. Nas palavras de Paulo Ramos (2012): “Os estudos acadêmicos – que ainda gozam de um prestígio social altíssimo – ajudaram a consolidar a literatura infantil como linguagem e dar a ela credibilidade que não tinha até os idos de 1980” (Ramos, 2012. p. 228).
A utilização das Histórias em Quadrinhos no ambiente escolar não apresenta-se como uma metodologia única, pois existem diferentes realidades educativas, portanto, cada professor pode construir seus caminhos metodológicos a partir de certas experimentações práticas e análises críticas que desenvolve sobre elas. Torna-se interessante compreender que “Histórias em Quadrinhos são Narrativas ImagéticoTextuais que podem contribuir, na educação básica e superior, tanto no desenvolvimento da razão sensível, como da razão simbólica” (Neto, 2013. p. 29). Nesse sentido, um professor que atua na educação infantil, no ensino fundamental, no ensino médio, no ensino superior e mesmo nos cursos de pós-graduação, tendo presente as especificidades dos alunos, pode se utilizar da linguagem dos quadrinhos para ajudalos a reconhecerem e desenvolverem diferentes aspectos culturais, sociais, políticos econômicos, ou seja, existem diversas abordagens possíveis. O trabalho com as histórias em quadrinhos favorece o desenvolvimento de uma maneira diferente de olhar e pensar a realidade. Nas palavras de Neto (2013): “Trabalhar com histórias em quadrinhos exige uma experiência com as mesmas, familiaridade com a sua linguagem, percepção de suas possibilidades comunicativas”.
Apesar de apresentar-se como atraente, esta opção metodológica exige um certo “tato”, uma experiência como leitor, para compreender todas as possibilidades possíveis dentro das narrativas. Nesse sentido torna-se necessário ser criterioso na escolha de Hqs que se deseja trabalhar em sala de aula, pois, partindo deste pressuposto, o trabalho será elaborado de forma mais adequada propondo diálogos interculturais com os alunos.
“O educador precisará estar muito consciente da concepção pedagógica que defende, dos valores que norteiam o seu trabalho, do projeto pedagógico da escola na qual trabalha, pois a partir daí a escolha/criação com os quadrinhos poderá ser feita com maior experiência” (Neto, 2013. p. 31).
O Educador, então, torna-se responsável pela escolha sobre com quais quadrinhos trabalhar e como trabalhar, de modo a se conectar com a realidade sociocultural dos alunos, pois, a partir da opção metodológica de se utilizar os quadrinhos, inicia-se uma educação para uma cultura visual, uma construção de saberes diferenciados para o universo dos alunos, evitando o equívoco da didatização de tal conteúdo, pois devem funcionar como um artefato cultural, parte importante da construção de metodologias que se comuniquem melhor com os alunos, como salienta Neto (2013): “Os professores precisam ser preparados para trabalhar com as histórias em quadrinhos no cotidiano escolar”. (Neto, 2013. p. 35).
Em suma, nota-se que entre as diferentes abordagens metodológicas que podem ser utilizadas no ambiente escolar, as histórias em quadrinhos apresentam-se como uma fonte importante, que dialoga com o universo simbólico dos alunos, então, é possível discutir as questões “reais” através destas narrativas imaginárias. Nota-se que a partir da compreensão de que as histórias em quadrinhos tornaram-se um método interessante de debates na sala de aula, e que há a necessidade de descontruir narrativas coloniais sobre a África, porque não utilizar as Histórias em quadrinhos como abordagem de desconstrução desta África imaginada?
A leitura dos quadrinhos pode instigar os jovens a compreenderem as diferentes fases do continente africano, a partir deste contexto, pode-se guiar o aluno a compreensão da relevância de se estudar o continente africano, posicionando a África em novos locais de representações e desconstruindo estereótipos imutáveis. Uma das possibilidades desta postura seria a opção de se trabalhar com os super-heróis, e especificamente o Pantera Negra, que funciona como um ícone importante para os alunos negros, que mal conhecem personagens negros importantes. Levando assim o aluno a compreender que o Pantera Negra é um super-herói da África, e que além disso torna-se rei e monarca, ou seja, existe uma série de significações que se apresentam como reais para o universo do aluno. Novos saberes a partir do Continente Africano e novas leituras a partir das histórias em quadrinhos, acredito que não haveria parceria mais adequada para se trabalhar com o ambiente escolar.
Nota de Rodapé:
²A edição que está sendo analisada foi publicada em 2015 em português, entretanto, trata-se de uma edição comemorativa que reapresenta a edição publicada em 1966 em que o personagem Pantera Negra aparece pela primeira vez no universo dos quadrinhos.
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