Por Marco Vasques, para Desacato.info.
Ao primeiro respiro no mundo, emitimos um choro permeado por grunhidos que identificam o sucesso de nossa chegada. Choramos e articulamos sons ao sair do aconchegante corpo de nossas mães. Desse berro inicial ao domínio da palavra, balbuciamos, choramos, rimos, demonstramos espanto, fome, medo, felicidade, enfim, nos comunicamos sem o pleno domínio verbal.
Com o domínio verbal, sentimos o mundo e podemos verbalizar nossos sentimentos com outros contornos e tonalidades. Em um determinado momento, passamos a dominar nossas emoções ao ponto de termos a capacidade de expressarmos – em verbo e corpo – o oposto do que sentimos. É verdade que existiram comunidades que prescindiram da palavra como eixo central da comunicabilidade; no entanto, sons, gestos e sinais eram usados para intermediar a comunicação necessária, ou seja, a linguagem se constituía em outras formulações simbólicas.
O filósofo francês Roland Barthes disse que “o objetivo em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana, é a linguagem”. Ainda sobre o poder, importante lembrar que Michel Foucault, outro filósofo francês, percebeu que a soma de instituições e saberes específicos de uma sociedade, isto é, a medicina, os hospitais, a escola, os clubes, a psiquiatria, o sistema carcerário, as organizações partidárias, por exemplo, exercem sobre nós algum tipo de poder. É daí que surge o conceito de microfísica do poder, que espraia a ideia de que o poder está centrado em um único lugar. Então, como já se pode intuir, o domínio da linguagem, não apenas a linguagem verbal, determinará nossas relações em todas as instâncias.
Quero voltar à questão inicial do texto, ou seja, à questão do domínio da palavra e suas implicações no cotidiano. Por quê? Primeiro porque o uso da palavra atravessa praticamente todas as outras linguagens. E também porque, hoje, no Brasil, o poder da palavra está a serviço da morte, da mentira e do embrutecimento. Não há pronunciamento inocente, já que a palavra tem reverberação própria. Alcunhar o enunciado de um presidente de brincadeira ou blague é, no mínimo, desconsiderar o poder e o simbolismo do cargo que ocupa.
Na Grécia, os filósofos, os sofistas, os poetas e os rapsodos construíram, por meio da palavra, a base do que chamamos de pensamento ocidental. Um pouco depois, na virada da era cristã, é a palavra, por meio das escrituras, que dominará o campo do saber e da política. Depois vêm as universidades e é com a palavra que os professores lecionam e comunicam saberes e sabores. No núcleo familiar, é por meio do verbo que costumamos atenuar nossos conflitos. No campo amoroso, é com a palavra que iniciamos o desejo dos corpos. Nas igrejas, nas praças, nas escolas, nos bares, na balada, no teatro, no cinema, em nossas profissões, em nossas amizades e desafetos. A palavra é uma ponte poderosa, uma potência ilimitada de possibilidades.
A palavra é um explosivo. Pode corroer o interior de uma pessoa, de um grupo de pessoas e de toda uma sociedade. Pessoas já tiraram a própria vida por serem constantemente oprimidas verbalmente. Guerras já foram travadas pela disputa da palavra. Quem não lembra como eram chamados os povos dominados pelos romanos e que não falavam latim. Eram os bárbaros. Nosso ethos é determinado pelo uso do verbo. O domínio da palavra e o seu uso publicamente, portanto, exigem responsabilidade.
E aqui chegamos no cerne de uma questão importante, pois estamos no auge de uma pandemia. Passamos por um dos momentos mais críticos. Somos o país com o maior número de mortes diárias de todo o planeta. Estamos às portas de amargar a marca de 300 mil mortes. A bomba Little Boy, jogada sobre Hiroshima, matou 100 mil pessoas. Qualquer pessoa minimamente equilibrada, com esses números, pode dimensionar o tamanho da tragédia em que vivemos. A segunda bomba, nominada de Fat Man, que devassou Nagasaki, destruiu 80 mil vidas. Nossos hospitais estão saturados. Há centenas de pessoas por corredores e outras centenas esperando por uma vaga numa Unidade de Tratamento Intensivo. O cenário é de guerra, mas há quem insista em manter o ar de normalidade.
E o mais desesperador disso é que não precisava ser assim. Especialistas, fazendo o uso constante da razão e da palavra, avisaram. Vacinas foram oferecidas ao governo brasileiro, que se negou a comprar. Não bastasse os descasos flagrantes de um governo infestado de abutres, pulhas e estrumes, ainda temos um desvairado no poder que usa do púlpito para professar a morte.
O estrume, travestido de presidente, zomba da vacina publicamente, defende o uso de medicamentos que são sabidamente ineficazes; incentiva a aglomeração; é contra o uso de máscara, que, segundo especialistas do mundo inteiro, é uma das formas mais eficazes de proteção; fecha os olhos para países – veja a Austrália e a Nova Zelândia, por exemplo, que controlaram a pandemia ordenando o fechamento total das atividades e restringindo a circulação de pessoas; vai a público ameaçar governadores e prefeitos que ousarem tomar medidas restritivas; chama as pessoas que tentam proteger seus amados de medrosos, de maricas; diz que ter medo da doença é frescura, enfim, um estrume ressoa a palavra-estrume.
Suas falas desencadeiam outro problema gigantesco, pois a palavra-estrume se aninha com a morte e não se pode ignorar que existe uma parcela considerável de nossa população que se alimenta da palavra-estrume, que saboreia a morte com um sorriso tétrico e que se guia pelos pronunciamentos e pelas ações deste que ocupa o cargo máximo de nossa nação. Por isso, cada vez que ele vem a público defender suas teses obscurantistas e assassinas, mais vidas são ceifadas, porque seus asseclas vão seguir suas indicações, vão tomar vermífugo, vão prescindir de máscara, vão aglomerar, vão ironizar a doença, vão menosprezar todos os esforços que pesquisadores, cientistas e profissionais da saúde têm empreendido para estancar nossas mortes.
O filósofo Bertrand Russel já dissera que “não há atalho para uma vida virtuosa, seja ela individual ou social. Para construir uma vida virtuosa, precisamos erigir a inteligência, o autocontrole e a solidariedade”. Infelizmente a palavra-estrume tem ojeriza à inteligência, desconsidera a necessidade de, num momento tão crítico, praticar o autocontrole e, por fim, espraia seu hálito da morte sobre a palavra solidariedade.
Por quanto tempo continuaremos a amargar esse miasma pestilento que se abateu sobre nossas vidas? O que será necessário acontecer para que possamos gozar do uso da palavra com inteligência e solidariedade? Há que se frear a palavra-estrume, antes que ela nos soterre no charco e se torne impossível se desvencilhar desse lamaçal de podridão!
—
Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.