Em áudio que circula pelo Whatsapp, um cacique do povo Marubo de uma aldeia da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, foi enfático em avisar que ninguém do local se vacinará contra o novo coronavírus.
No Acre, o cacique Txanahuya Hunikui, do povo Huni Kuin, “sentindo-se sentimental” em um post do Facebook, lamentou a morte da liderança indígena Fernando Katukina (foto acima e de um outro cacique Huni Kuin, aproveitando para repassar a seguinte desinformação:
“Ambos vítimas da vacina clonada contagiadas envenenadas com o vírus do monochip maligno infeccioso que acabaram de tomar a tal vacina!!!”.
Por causa de mensagens como essas, indígenas têm se recusado a receber a vacina contra a Covid-19.
Líderes e organizações indígenas têm se mobilizado para desfazer o caos criado pela propagação de notícias falsas nas aldeias, que eles atribuem à influência de missionários e pastores evangélicos. Mas a luta tem sido desigual e as equipes de saúde enfrentam dificuldades para imunizar um dos povos mais ameaçados na pandemia.
O coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Kenampa Marubo, explicou a situação à agência Amazônia Real:
“Foi dito que eles não iriam tomar (a vacina). A gente tentou explicar, mas eles não estão acreditando. Só acreditam no que está sendo dito pelos missionários. Dizem que essa vacina veio para acabar com a sociedade, tanto a não indígena como a indígena. Essas informações erradas ficam na cabeça dos nossos parentes, principalmente dos nossos anciãos”.
A aldeia citada por Paulo Marubo fica na cabeceira do rio Ituí, no municipio de Guajará (a 1.600 quilômetros de Manaus), já na divisa com o Acre. É uma das 56 aldeias da Terra Indígena Vale do Javari, na fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru, onde vivem cerca de 7 mil indígenas contatados das etnias Marubo, Mayoruna, Kulina Pano, Matís, Kanamari, Korubo e Tson wük Dyapah (esta, de recente contato).
O território, o segundo maior do Brasil em extensão e conhecido por concentrar o maior número de indígenas isolados do mundo, viu ameaças externas se intensificarem na pandemia da Covid-19.
Como a maior parte do território Vale do Javari abrange o município de Atalaia do Norte, Paulo Marubo relatou dificuldades para ter acesso, via fluvial ou via terreste, até esta aldeia específica do cacique que recusa vacina.
Paulo Marubo explica que a equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, que atua na região, continua em contato com o cacique, tentando convencê-lo dos benefícios da vacinação. Mas essa tarefa é difícil dada a permanente influência exercida por missionários nas aldeias.
“A gente vai passar essa informação para eles. E dizer que a gente também está tomando, para eles não ficarem com medo. Os missionários estão desinformando”. Abaixo, o vídeo que a Sesai produziu com depoimento de Paulo:
Na corrida para garantir a imunização dos povos indígenas, uma logística que implica dificuldades como enfrentar as longas distâncias e as dificuldades de acesso às aldeias, sobretudo quando se fala em Amazônia, surge agora o desafio de convencê-los de que a vacina é segura e é a única garantia contra o novo coronavírus.
Só na Amazônia brasileira eram 32.927 casos confirmados e 760 mortes em decorrência da Covid-19, de acordo com informativo atualizado até 1º de fevereiro pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab).
Até 4 de fevereiro, de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Sars-CoV-2 fez 948 vítimas fatais entre indígenas. Cerca de 47.752 casos de Covid-19 já foram confirmados em 161 povos.
NOTA DA REDAÇÃO DO CONEXÃO PLANETA: Hoje, 24 de fevereiro, quando esta reportagem da Amazônia Real está sendo editada para publicação neste site, os números aumentaram: 49.211 infectados, em 162 povos, e 971 mortos.
Butantan desmente fake news contra Coronavac
Um dia após a morte do líder indígena Fernando Rosas Katukina por parada cardíaca, o Instituto Butantan se viu obrigado a desmentir fake news em suas redes sociais. Veja o post publicado no Twitter:
Publicações vinculavam a morte de Fernando Katukina ao fato dele ter recebido, 13 dias antes, a primeira dose da vacina Coronavac, desenvolvida em São Paulo pelo Butantan, em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Há anos, ele lutava contra um quadro grave de diabetes e era hipertenso.
A enfermeira indígena Yoka Manchineri (vive em Rio Branco, mas nasceu na Aldeia Senegal, na fronteira entre o Brasil e o Peru, às margens do Rio Laco) trabalha na Casa de Saúde Indígena (Casai) de Rio Branco (AC), e no Distrito de Saúde Indígena (Dsei) Alto Purus. Ela conhecia de perto a situação delicada de Fernando Katukina, que vivia na aldeia Kamanawá, no Vale do Juruá, no Acre.
Yoka foi a primeira indígena e profissional de saúde do Alto Rio Purus a ser vacinada. Yoka conta que também tem ouvido muitos relatos de indígenas que se recusam a ser vacinados quando as equipes da Sesai chegam às aldeias do Acre.
“Estão inventando muita coisa sobre a vacina. Alguns parentes dizem que ouviram de evangélicos que ela tem um chip e que, dentro de dois anos de vacinada, a pessoa morre. Mas nós não vamos desistir, estamos lutando para que nossos parentes não acreditem nessas mentiras”, conta.
Assista ao vídeo que a Sesai gravou com depoimento de Yoka:
A mentira da vacina que vem com chip
Distante quase 3 mil quilômetros de Yoka Manchineri e sem conhecê-la, Léo Xipaia repete angustiado quase que literalmente a queixa da enfermeira:
“Os parentes recebem via ‘zap’ (Whatsapp) essas histórias de que a vacina vem com um chip dentro e que mata em vez de curar”.
Léo é presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) de Altamira e cacique da aldeia Cujubim do povo Xipaia, localizada às margens do Rio Iriri, principal afluente do Rio Xingu, no sudoeste do Pará.
Primeiro indígena do Médio Xingu a ser vacinado “para dar exemplo aos parentes”, ele explica que tem se mobilizado junto aos membros e técnicos do Dsei, além de outras lideranças, para incentivar os indígenas a se vacinarem e explicar com mais detalhes a importância da vacinação, além dos riscos da Covid-19.
Léo Xipaia contou à Amazônia Real que a intenção das equipes de vacinação é retornar às aldeias e fazer novas tentativas onde houve a recusa num primeiro momento.
“A gente tem usado como método manter as equipes de saúde dentro das aldeias para trabalhar a informação com esses parentes até que eles se sintam seguros com a vacina”, explica.
No Médio Xingu, a meta é vacinar cerca de 4 mil indígenas de diferentes povos, entre os quais Arara, Xikrin, Xipaia, Curuaya, Parakanã e Kayapó.
No início de janeiro, os números de infecções registradas nos boletins chamaram a atenção do Dsei-Altamira.
O boletim epidemiológico emitido pelo órgão, em 4 de janeiro, indicava que 145 indígenas do Médio Xingu estavam infectados pelo novo coronavírus, 128 deles somente na TI Apyterewa dos Parakanã. A etnia vive sob constante ameaça de invasões por garimpeiros, madeireiros, grileiros e pecuaristas.
O cacique Xipaia explica que, na maioria das vezes, os indígenas justificam a negativa da vacinação, citando orientações que receberam via WhatsApp de membros de igrejas evangélicas que atuam nas aldeias em missões religiosas.
“A gente tem feito vídeos para tranquilizar e estimular os parentes a se vacinarem, mas os pastores dizem que eles já estão curados, que eles já pegaram Covid e isso acaba criando esse impasse com os povos indígenas aqui do Xingu”.
Movimento pode ser ação orquestrada
Há muitos anos, discute-se a presença de missionários e pastores evangélicos em terras indígenas, muitas vezes procurando mudar as visões de mundo dos povos originários.
Dinaman Tuxá, advogado e coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), chama as mensagens conspiratórias e antivacina difundidas nas aldeias de “propaganda em desserviço da vida dos indígenas”.
Para ele, esse tipo de desinformação difundida por missionários evangélicos nas aldeias é proposital, orquestrada e produto de um projeto político conectado ao presidente da República, Jair Bolsonaro.
“Infelizmente, temos indígenas que seguem orientações, principalmente, de pastores evangélicos que fazem um trabalho persuasivo muito forte na cabeça de alguns e, com isso, eles acabam seguindo orientações totalmente contrárias à ciência, ao conhecimento empenhado para se desenvolver essa vacina”, afirma Dinaman, em entrevista à Amazônia Real.
“Nós, indígenas, já estávamos enfrentando um cenário de muitas incertezas, de muitas infecções e de uma luta pela garantia de vacinas e, mesmo assim, pessoas que não são favoráveis aos indígenas, que não gostam dos povos indígenas, vão até suas terras para macular a verdade sobre a eficácia dessas vacinas”, lamenta.
A luta pela hashtag #VacinaParente
Diante do quadro alarmante e crescente de recusa da vacina, no último dia 26, a APIB lançou uma ação coletiva para garantir a vacinação em terras indígenas brasileiras com a hashtag #VacinaParente.
Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da APIB, publicou em seu perfil no Instagram, em 2 de fevereiro, uma charge (abaixo) de autoria de Ibraim Nascimento, em que ela aparece de cocar e vestido vermelho, segurando um arco e no lugar da flecha uma seringa apontada em direção ao novo coronavírus. O post trazia o seguinte recado: “(…) Não tenha medo, não tenha dúvidas, não se deixe levar por mensagens negativas e mentirosas. Somente a vacina vai conseguir acabar com essa pandemia”.
Lideranças como Katatakalu Yawalapiti, Dinaman Tuxá, Chirley Pankará, Geovanni Krenak ,O-É-Kaiapo, Célia Xakriabá, Kretã Kaygang e Eloy Terena também foram retratados por Nascimento para essa campanha.
Dinaman Tuxá explica que a APIB desenvolve um trabalho de orientação e de informação, inclusive com pareceres técnicos, trazendo a fala de especialistas, com informação concreta e segura a respeito da vacina.
O líder explica que este é agora um novo enfrentamento, diante de tantos outros já existentes e necessários aos povos originários. “Vamos continuar combatendo a mentira e o projeto de extermínio de nossos povos”.
Em nível regional, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), junto com a APIB, vem lutando para levar informações aos indígenas da Amazônia, participando também da campanha #VacinaParente.
Em suas redes sociais e nos contatos com as organizações de base, a entidade tem repercutido os vídeos produzidos de forma autônoma por lideranças locais, que visam estimular a população a aderir à vacinação.
A campanha é uma resposta à cruzada antivacina que tem levado muitos indígenas a evitarem a imunização. Entre os participantes do vídeo que está circulando desde 3 de fevereiro estão a técnica em enfermagem Vanda Ortega, do povo Witoto, e o antropólogo João Paulo Barreto, do povo Tukano, ambos do Amazonas.
“A vacina é importante para todos os povos e quero pedir a vocês, meus parentes: não tenham medo de tomar a vacina, não acreditem nessas fake news”, diz Vanda, no vídeo. Assista abaixo:
Léo Xipaia explica que os vídeos servem “para os parentes verem que a gente não morreu e nem virou jacaré” (ele também gravou vídeo para a Sesai).
Bolsonaro afirmou, em mais uma fala criminosa contra a imunização, que não era responsabilidade dele se alguém tomasse a vacina Pfizer/BioNtec e virasse “jacaré”. foi em 17 de dezembro e o Brasil contabilizava quase 185 mil mortes por Covid-19. Menos de dois meses depois, o País já se aproximava de 228 mil mortes.
NOTA DA REDAÇÃO DO CONEXÃO PLANETA: Em 23 de fevereiro, o consórcio de veículos de imprensa contabilizou 10.260.621 casos e 248.646 óbitos.
Paulo Marubo explica que o objetivo agora é mostrar aos indígenas que existe uma corrida mundial para se ter acesso às vacinas e que o acesso prioritário dado a a elas é fruto de uma luta constante das lideranças e organizações indígenas do Brasil.
Até 4 de fevereiro, apenas 2,76 milhões de brasileiros foram vacinados contra a Covid. Até 24 de fevereiro, 6,1 milhões de pessoas haviam sido imunizadas.
Nas palavras de Paulo, a vacina prioritária para os indígenas é “conquista” que não pode ser desperdiçada.
*Esta reportagem foi publicada originalmente no site da agencia Amazônia Real, em 4 de fevereiro, e faz parte do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”, realizado com apoio da Open Society Foundations
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