Nesta semana, milhares de pessoas se reuniram nas ruas do Haiti pedindo a renúncia do presidente Jovenel Moise, alegando que o país estaria à beira de uma nova ditadura.
Os manifestantes recorreram à queima de pneus (pèlebren, em criolo) e saques (dechoukaj) para demandar a saída do presidente.
A crise política haitiana se estende desde 2018, mas a recusa de Moise de finalizar seu mandato no início de fevereiro gerou nova onda de protestos.
De acordo com a oposição, o mandato de Moise teria expirado no dia 7 de fevereiro. O governo, por sua vez, alega que o mandato deve se estender até 2022. O debate gira em torno do artigo 134 da Constituição haitiana.
“Mas os protestos atuais não se reduzem a uma crise constitucional. São um conflito político-jurídico sem precedentes”, disse Handerson Joseph, professor de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, à Sputnik Brasil.
O mandato presidencial no Haiti tem duração de cinco anos, mas uma emenda à Constituição permite uma interpretação diferente sobre o mandato de cargos eleitos em 2016, tornando-os mais curtos.
O presidente Moise utilizou essa interpretação para destituir dois terços do parlamento em 2020. Contudo, agora não estaria interessado em aplicar essa interpretação em relação a seu próprio mandato, explicou Joseph.
“Se o presidente usou esse argumento para destituir dois terços do Senado e da Câmara dos Deputados, isso deveria valer para ele também”, disse Joseph.
No dia 6 de fevereiro, o Conselho Superior do Poder Judiciário do Haiti, equivalente ao Supremo Tribunal Federal brasileiro, declarou que o mandato de Moise deveria terminar em 7 de fevereiro de 2021.
“No mesmo dia começam as manifestações e [o presidente] fez a acusação que teria sofrido uma tentativa de assassinato e de golpe”, contou Joseph.
Nesse fatídico dia 7, um juiz do Conselho Superior foi preso e três foram aposentados compulsoriamente.
Nesta segunda-feira (15), juízes de todo o país entraram em greve, demandando que o presidente Moise respeite a Constituição e se retire do poder ainda neste ano.
Papel dos EUA
O presidente haitiano conta com o apoio de um ator de peso na história país: o Departamento de Estado dos EUA.
“Ele tomou posse no dia 7 de fevereiro de 2017 para um mandato de cinco anos que, portanto, está previsto para terminar no dia 7 de fevereiro de 2022”, declarou o Departamento de Estado dos EUA.
“De acordo com a posição da OEA sobre a necessidade de se continuar a transição democrática do poder executivo, um governo eleito deve suceder ao presidente Moise quando o mandato dele terminar, em 7 de fevereiro de 2022”, continua a chancelaria norte-americana.
No entanto, “essa não é a posição dos órgãos jurídicos haitianos, principalmente do Conselho Superior do Poder Judiciário. Não é o entendimento da sociedade civil, dos partidos de oposição e de boa parte dos intelectuais e acadêmicos do Haiti”, notou Joseph.
Segundo ele, o apoio norte-americano a Moise não é novidade, uma vez que “OEA, a ONU e a própria administração Trump já haviam declarado apoio ao governo atual, inclusive ajudando-o a se eleger”.
O debate sobre o Haiti nos EUA segue polêmico. Deputados norte-americanos, sobretudo do Partido Republicano, pediram para que a administração Biden reveja sua posição, alegando que o presidente Moise toma medidas autoritárias com vistas a se perpetuar no poder.
“Quando o governo dos EUA faz sua própria interpretação da Constituição haitiana, não sendo um especialista em direito haitiano, isso realmente compromete a soberania do Haiti e a habilidade do sistema jurídico haitiano interpretar sua própria Constituição”, disse Nicole Phillips, da Haitian Bridge Alliance, uma organização de apoio à imigração baseada nos EUA, conforme reportou a Foreign Policy.
A atenção dada pelas diferentes estruturas de poder norte-americanas aos protestos no Haiti revela o grau de interesses que Washington nutre pelo país caribenho.
“Os EUA têm interferido nos assuntos que dizem respeito ao Haiti por muitos anos, inclusive houve uma ocupação norte-americana do Haiti, entre 1915 a 1934, e outra na década de noventa. A última foi através da Missão de Paz para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH)”, relatou Joseph.
Além disso, os “EUA são um dos maiores polos da diáspora haitiana”.
“De acordo com os dados oficiais do Ministério do Interior do Haiti, entre três a quatro milhões de haitianos vivem fora do país, sendo que um milhão deles – nos EUA”, disse Joseph.
Os interesses estratégicos e econômicos também explicariam o alto grau de interferência de atores estrangeiros, sejam países ou organizações internacionais, nos assuntos internos do Haiti.
“Eu costumo dizer que o Haiti não é um país pobre, é um país empobrecido. Basta olhar a história do país, que já respondeu […] por um terço da economia da França”, disse Joseph.
História silenciada
Fundado por uma das revoluções sociais mais bem-sucedidas da história mundial, o Haiti obteve sua independência da França após quinze anos de guerra (1791-1804) e instituiu a primeira república negra do mundo.
“A revolução haitiana era o impensável”, disse Joseph. “Não havia interesse de mostrar para o mundo o que aconteceu no Haiti.”
Na época, a revolução liderada por Toussaint Louverture espalhou calafrios entre as elites escravocratas do continente americano, que iniciaram uma longa campanha para isolar o país recém-criado.
A notícia da revolta do Haiti chegou no Brasil, o que levou os negros a constituírem os quilombos, inspirados na Revolução haitiana”, contou o antropólogo.
Segundo ele, “para evitar essa influência, mantiveram o Haiti no silenciamento, não falavam sobre a importância do Haiti e da Revolução, que coincidentemente foi uma revolução negra”.
“No Brasil […] até hoje a história da revolução haitiana não é estudada. Por que estudam a Revolução Francesa, que foi lá do outro lado do mundo, e não estudam a Revolução Haitiana, que aconteceu bem aqui e influenciou diretamente o Brasil?”, questionou Joseph.
“No meu entender, esse silenciamento foi proposital, para que esses negros não se tornassem referência, para silenciar a Revolução e a grandiosidade da história e manter o isolamento internacional do Haiti”, acredita Joseph.
Nesse sentido, “a interferência na política do Haiti tem a intenção de mostrar que uma revolução feita por negros não poderia dar certo”, disse o antropólogo.
No entanto, protestos como os que pedem a renúncia de Moise tem o condão de unir haitianos da ilha e da diáspora, resgatando sua autoestima e força política.
“Nós sabemos o que queremos, de onde viemos e para onde queremos ir”, concluiu o especialista.
Desde 7 de fevereiro, nova onda de protestos tomou o Haiti, nos quais manifestantes demandam a renúncia do presidente Jovenel Moise. Crise econômica, denúncias de corrupção e embate jurídico acerca da duração do mandato de Moise levam manifestantes a questionar a legitimidade do governo central.