Por Cláudia Motta.
Um círculo vicioso impede que qualquer um dos processos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro avance. O número já chegou à casa dos 70 pedidos. As razões vão dos mais diversos crimes de responsabilidade contra a Constituição Federal, ao atentado contra a vida diante do descaso com a pandemia do novo coronavírus. Ainda os crimes contra os biomas da Amazônia e do Pantanal, e o genocídio da população indígena. Além de apologia à tortura, ataques à democracia, à soberania nacional, aos direitos humanos, crimes de racismo. Motivos não faltam. “Mas sem pressão das ruas é muito difícil avançar o impeachment de Bolsonaro”, avalia a jurista Tânia Oliveira, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
Com a pandemia do novo coronavírus, há quase um ano cessaram os grandes protestos que reuniam milhares de brasileiros nas ruas de todo o país em protestos contra o governo Bolsonaro. Ou seja, o círculo vicioso que mantém as pessoas em casa para não agravar as mortes por covid-19, favorece o governo responsável pela alarmante quantidade de casos da doença no Brasil. Nesta sexta-feira, segundo o Conass, em números oficiais o número de doentes havia passado dos 9,7 milhões e 237.489 vidas foram perdidas.
“E objetivamente falando: o recebimento do pedido de impeachment é feito quando o presidente da Câmara dos Deputados faz isso. O Arthur Lira (PP-AL) acabou de ser eleito com o apoio do governo Bolsonaro. Então, evidentemente, ele não tem nenhum ímpeto de aceitar pedido de impeachment, sejam 60, 70 ou 200”, afirma a advogada. “A grande questão é que o pedido de impeachment era difícil e agora está ainda mais com um apoiador do governo dirigindo a Câmara dos Deputados.”
Câmara parceira
Algumas das votações mais importantes realizadas por aquela que se auto intitula a Casa do Povo, indicam de que lado realmente está a maioria dos deputados federais no Brasil. Bolsonaro e seus projetos de retirada de direitos do povo e da soberania nacional têm vida fácil na Câmara dos Deputados.
A “reforma” da Previdência promovida por Bolsonaro é um exemplo. Apesar de dificultar a vida da população e reduzir recursos pagos aos aposentados e pensionistas, a votação deu larga vantagem ao governo federal. Realizada em dois turnos – já que se tratava de uma proposta que alterava a Constituição – contou com 379 votos a favor da reforma no primeiro turno e 370 contra. A oposição a Bolsonaro e à reforma da Previdência ficou com 131 votos no primeiro turno e 124 no segundo turno.
A eleição de Arthur Lira é outra manifestação da tranquilidade que permite a Bolsonaro fazer as lambanças que faz, sem ter de se preocupar com os pedidos de impeachment que lotam as gavetas da Mesa Diretora da Câmara. Lira foi eleitos com 302 votos. O segundo colocado, Baleia Rossi (MDB-SP), ficou com 145 votos. Os outros seis candidatos à Presidência da Câmara somaram 56 votos. Houve dois em branco.
A mais recente mostra do poder de Bolsonaro entre os deputados federais foi a votação pela autonomia do Banco Central. O projeto, polêmico por ampliar a influência do mercado financeiro sobre o BC e a economia nacional, recebeu 339 votos a favor e 114 contrários, com uma abstenção.
Difícil, mas não impossível
A jurista Tânia Oliveira, no entanto, acredita que um impeachment de Bolsonaro não é impossível. “A única resposta para isso tudo é luta. Os pedidos de impeachment contra Bolsonaro só terão andamento com pressão social. Quanto mais pressão social, mais essa possibilidade se apresenta”, diz, reforçando que a abertura de um processo de destituição do presidente dependeria da mudança da configuração da Câmara dos Deputados.
Outro que já manifestou serem as ruas lotadas de manifestantes a única forma de ver avançar o impeachment de Bolsonaro foi o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD). Em entrevista à Folha de S.Paulo, no último dia 9, ele disse que, com a pandemia, não há condições políticas para o impeachment. “Impeachment se faz com 14 milhões de pessoas na rua, não com uma carreata. Nós não temos 14 milhões de pessoas na rua – e Deus me livre, com essa pandemia. Hoje não vejo clima, não vejo condição. Vira um pandemônio o país.”
Subscritor de dois dos 70 pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro, o advogado Mauro Menezes avalia a mudança de cenário. “É preciso aguardar o momento apropriado para que se desencadeie uma pressão perante o novo presidente da Câmara.” O jurista revela que há perspectivas e estudos sendo elaborados para provocar novas manifestações a respeito. “Não vamos arrefecer nossas iniciativas. Mas convém fazer com que isso se dê em harmonia com algum outro fato que também gere um ambiente para esse tipo de iniciativa perante o presidente da Câmara.”
De Maia para Lira
Responsável por dois anos recebendo pedidos de impeachment de Bolsonaro, sem jamais serem apresentados para votação dos deputados federais, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) disse que será “inevitável” discutir o impeachment de Bolsonaro. “Eu acho que esse tema, de forma inevitável, será discutido pela Casa no futuro. Temos de focar no principal, que agora é salvar o maior número de vidas, mesmo sabendo que há uma desorganização e uma falta de comando por parte do ministério da Saúde”, afirmou 15 dias antes de deixar o cargo. A coletiva de imprensa de Maia ocorreu em 15 de janeiro, no Palácio dos Bandeirantes, ao lado do governador de São Paulo, João Doria. Sob Maia, a Câmara recebeu 66 pedidos de impeachment.
Arthur Lira assumiu em 1º de fevereiro com o pedido de impeachment de número 67, movido pela deputada Joenia Wapichana (Rede-RR). Nesse caso, o motivo apontado foi crimes contra a população indígena. No dia 2, um novo pedido, do cidadão Alexandre Ferraz de Moraes, volta a mencionar os crimes de responsabilidade cometidos pelo atual presidente da República.
Coordenado pelo médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, oito cientistas foram os responsáveis pelo 69º pedido de impeachment de Bolsonaro. E assim como outras dezenas de processos, esse também pede o afastamento do presidente pela condução do governo brasileiro diante da pandemia do novo coronavírus. A epidemiologista e presidente da rede brasileira de pesquisas em tuberculose, Ethel Maciel, está entre esses cientistas. Em entrevista à Pública, ela contou que o que motivou todos esses autores a se unirem para protocolar o pedido de impeachment foram os ataques do presidente à vacinação. “Foi a gota d’água em um balde que já estava lotado.”
Nunca antes houve tantos
Segundo o 69º entre os pedidos de impeachment de Bolsonaro, o presidente “não age por erro ou por desinformação; ele não é um líder que erra querendo acertar. Do ponto de vista médico e epidemiológico, ele erra e sabe que erra. Seu comportamento decorre de um cálculo político no qual a saúde dos brasileiros foi derrotada”. O texto é assinado, ainda pelo ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão (2007 a 2011) e pelo médico sanitarista e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) Gonzalo Vecina Neto.
O até agora último pedido de impeachment contra Bolsonaro, de número 70, foi apresentado pelo deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP). Além dos crimes de responsabilidade contra a vida diante da pandemia, o processo alega que o atual presidente da República incita a destituição dos demais poderes da República. O ator, ex-apoiador de Bolsonaro, é responsável ainda por outros três pedidos, todos movidos por crimes de responsabilidade.
O primeiro deles, o de número 14, ingressado em 19 de março de 2020, menciona também as recorrentes agressões à imprensa. Meses depois, em 6 de maio do mesmo ano, o processo de número 38 pede o impeachment do presidente também pela conduta incompatível com a dignidade, honra e decoro que o cargo exige. O de número 61 data de 14 de janeiro deste ano e denuncia também a ilicitude da campanha eleitoral de Bolsonaro beneficiada pelo ilegal disparo de mensagem em massa via aplicativo WhatsApp.
O caminho do impeachment
Todo cidadão tem o poder de apresentar um pedido de impeachment de um presidente da República por crime de responsabilidade à Câmara dos Deputados. O presidente da Casa Legislativa é quem avalia se o pedido cumpre os requisitos mínimos de autoria e materialidade previstos na Lei 1079/1950. Assim, o processo pode ser encaminhado para julgamento dos deputados federais. Se a denúncia é aceita é feita a leitura da acusação no plenário da Câmara. A partir daí tem início a análise do pedido pelos parlamentares.
Pesquisa PoderData publicada em 4 de fevereiro revela que 46% dos brasileiros acham que Jair Bolsonaro deve deixar a Presidência da República. A proporção dos que acham que Bolsonaro deve continuar no cargo é de 47%.