Diário Liberdade – O homem fez pose de fenomenal grandeur, como neoimperial Libertador da Líbia – poucos anos depois de o coronel Colonel Muammar Gaddafi ter ajudado a financiar sua campanha eleitoral, com nada menos que límpidos 65 milhões de dólares.
Servindo-se de um misterioso pacto entre o Espírito Santo e uma camareira africana em New York, ele livrou-se do adversário que já o desafiava e muito provavelmente o derrotaria na reeleição, o ex-diretor-geral do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Khan, libertino assumido.
E mesmo assim, os franceses, no próximo domingo – nova tomada da Bastilha em estilo Facebook remix – lá estarão, aos gritos de “cortem a cabeça dele!”.
Por quê? Pela arrogância. Pela húbris. O presidente francês Nicolas Sarkozy, também conhecido como Rei Sarkô, o Neonapoleônico; ex-rei do chacoalhar de correntes de ouro e diamantes de pescoço [bling bling]; “Chuchu”, para a primeira dama, a italiana Carla Bruni [1], é o pior inimigo dele mesmo.
Estilo Ritz de viver
Bashir Saleh é ex-chefe de gabinete de Gaddafi e ex-presidente do Fundo Soberano Líbio. Foi o encarregado de ir e vir, quando Gaddafi decidiu financiar a campanha eleitoral de Sarkozy, em 2007.
O Rei Sarkô, como seria de prever, negou tudo e disse que processaria Mediapart, website francês que revelou o que, para muitos, nem foi novidade. Seja como for, na 5ª-feira, 3 de abril, o ex-primeiro-ministro líbio Baghdadi Ali al-Mahmoudi confirmou tudo, outra vez. E disse exatamente o que o filho de Gaddafi e ex-aluno de prestígio da London School of Economics, Saif al-Islam, já dissera antes, em março de 2011: “Sarkozy que devolva todo o dinheiro que aceitou da Líbia, para pagar sua campanha presidencial.”
Saleh está na lista de procurados da Interpol, mas permanece na França, autorizado pelo regime rebelde da OTAN na Líbia, o qual, simultaneamente, também diz estar à procura dele. Guarda com ele confortáveis US$5,2 milhões, bem próximo da fronteira suíça, com vista para o Mont Blanc.
Tudo isso protegido pela polícia do Rei Sarkô, que disse que o negócio todo é feito com “pleno conhecimento e acordo do presidente [do Conselho Líbio de Transição] Abdel Jalil”. A vida é bela. Essa semana, Saleh foi visto badalando no Ritz, em Paris [2].
Meu voto é da Carla
A campanha presidencial na França passou pelo proverbial anticlímax, depois de debate de quase três horas de duração entre o Rei Sarkô e o desafiante, François Hollande, do Partido Socialista. Consumiram-se trilhões de bytes nas telinhas, para descrever o debate como essencialmente “tenso”. Sem nocaute. Sarkô mexeu-se mais que coelho movido a pilhas Duracell, enquanto Hollande – carismático como linguiça seca – mostrou-se, de fato, sólido e relativamente preciso.
A mentira rolou solta. Sarkô defendeu um seu recorde de empregos criados. Em abril de 2007, prometia 5% de desemprego ao final de cinco anos de governo. A França já chegou aos 9,4% de desempregados na população urbana ativa. Depois de cinco anos de Sarkô, há hoje um milhão de franceses desempregados, a mais.
Como a broinha que completa o café, o centrista Francois Bayrou – que recebeu 9,1% dos votos no primeiro turno – manifestou sua repulsa pelo que fez a campanha de Sarkô, que tentou seduzir a extrema direita; e anunciou que votará em Hollande.
Vale lembrar que nada menos que 33% dos franceses mantiveram-se longe das urnas no primeiro turno; preferiram concentrar-se nas ramificações geopolíticas da franja de Carla Bruni, visão absoluta de top model [3].
Realmente vitoriosa no primeiro turno – embora opere como míssil político Hellfire tóxico, sem tirar nem por – foi a extrema direita francesa, com a Frente Nacional (18% dos votos) “normalizada” por Marine Le Pen, empresária espertíssima e filha do fundador do partido e conhecido fascista Jean-Marie Le Pen.
O crescimento da influência da Frente Nacional desde os anos 1980s em todos os círculos da extrema direita europeia é simplesmente espantoso. O câncer espalhou-se por toda parte, da França à Itália, Grã-Bretanha, Bélgica, Países Baixos, Áustria, Hungria, Suécia, Dinamarca, Finlândia e até Grécia.
A xenofobia e a islamofobia estão vivas e fortes, por toda uma Europa paralisada de medo, afundada em crise. Na Áustria, a extrema direita, depois de anos de liderança do carismático Jorg Haider, já está hoje completamente normalizada e legitimada.
Nos Países Baixos, liderado pelo hiper-islamófobo Geert Wilders, o PVV (Partij voor de Vrijheid, Partido pela Liberdade) obteve 24% dos votos nas eleições de 2010 e fez parte da coalizão conservadora no poder, a qual acabou por rachar por causa, mais uma vez, de Wilders.
Na Escandinávia, a extrema direita é rampante; na Suécia, por exemplo, os Democratas Suecos (belo toque orwelliano), pela primeira vez puseram os pés no Parlamento.
Quem faça campanha a favor da extrema direita na Europa praticamente jamais erra; basta por-se contra a globalização e os imigrantes “marrons” e “pretos”; denunciar elites corruptas; demonizar o Islã; alertar sobre os perigos que ameaçam a identidade nacional, por culpa do multiculturalismo; e, essencialmente, apresentar-se como “contra o sistema”. É como se o espectro da Alemanha Nazista flutuasse nos céus, do sul da França às montanhas dos Cárpatos.
Não surpreende que, se um partido de extrema direita tem 15% dos votos dos franceses, os partidos conservadores ponham-se a abraçar as políticas de direita. Foi exatamente o que fez o Rei Sarkô; perdido o primeiro turno, ele logo declarou que Marine Le Pen era “compatível com a República”. Pouco funcionou – porque milhões de eleitores alimentavam neles mesmos, de fato, outra espécie de fúria: a própria eurofobia.
Eurófobos, uni-vos
A crise da eurozona, países falidos, ortodoxia de “austeridade” por todos os lados, desemprego, a mão de ferro das agências de avaliação de riscos e dos tecnocratas do orçamento, e horror econômico generalizado; milhões de franceses, como outros europeus, culpam Bruxelas. E acontece que o Rei Sarkô é parte dessa mesma elite odiada – vale 50% do par “Merkozy” (com a chanceler alemã Angela Merkel) que, em teoria, está tentando “salvar” a Europa.
Assim, um problema extra para o rei Sarkô do chacoalhar de correntes de ouro e diamantes de pescoço [bling bling] é que ele não é nem jamais foi capaz de vender qualquer projeto político, cultural e social, uma visão sua para a Europa. Ou, que fosse, apontar algum modo de recriar alguma Europa pós-crise (supondo-se que a atual crise suma logo, o que não acontecerá).
Hollande é um pepino frio, e tudo que diz talvez seja mesmo “superado” – acusações que ouviu do Rei Sarkô e de The Economist; mas, pelo menos, o retorno dos socialistas ao poder na França tem alguma chance de sacudir o tabuleiro trôpego.
A União Europeia terá forçosamente de reexaminar o eixo franco-germânico nesse momento “pós-Merkozy”; esse, afinal, é o eixo que realmente governa a Europa. Já se fala muito, em Paris e Berlim, sobre “continuidade”. Aconteceu também antes, entre Giscard d’Estaing e Helmut Schmidt, e entre Francois Mitterrand e Helmut Kohl.
Mas a verdadeira incógnita é o que algum governo de Hollande conseguirá fazer a favor de uma Europa mais social e mais igualitária. The Economist – quer dizer, os interesses financeiros da City de Londres – já lamenta o destino do Rei Sarkô, que tentava “salvar” não só a França mas também a Europa. Bobagens.
Bye bye, Rei Sarkô – e já vai tarde!
O artigo original se encontra em Asia Times Online.