José Eduardo Bernardes e Pedro Stropasolas.
Mais de 222 mil mortes registradas e 1 milhão de casos de covid-19 em menos de três semanas. Enquanto o vírus se expande e mata, o Brasil, na contramão do mundo, segue sem planejamento para vacinar a população.
Para o médico sanitarista e ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, o que coloca o país nesta condição de “extrema vulnerabilidade” é a grande dependência tecnológica externa e a omissão do governo federal em fechar contratos com laboratórios que produzem as vacinas contra o coronavírus.
“Nós poderíamos ter começado a vacinação no Brasil em dezembro, tranquilamente. Poderíamos estar hoje em um momento totalmente diferente. A responsabilidade é da omissão do governo federal”, opina Temporão em entrevista ao Brasil de Fato.
Durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2007 e o fim de 2010, o médico sanitarista foi ministro da Saúde e esteve no comando da pasta quando houve a pandemia de H1N1, em 2009.
Na época, o Brasil ficou marcado como o país que mais vacinou cidadãos contra H1N1 pelo sistema público no mundo, atingindo a marca de 80 milhões de cidadãos vacinados em apenas 3 meses.
“Nós imediatamente mobilizamos a ciência, a primeira diferença foi essa”, relata.
A condução é contrária à que o país assite hoje. Jair Bolsonaro tem se colocado como um obstáculo para a imunização da população brasileira, por meio do incentivo a tratamentos precoces sem eficácia e até contestação de vacinas certificadas, como a Coronavac. O presindente chegou a afirmar que, ele próprio não pretende se vacinar.
“Hoje você tem um presidente que desde fevereiro do ano passado trabalha para ajudar o vírus, trabalha para aumentar o número de mortes, trabalha para aumentar a ignorância, trabalha para aumentar o negacionismo”, aponta o ex-ministro.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Quais são os entraves e como você avalia o planejamento do governo federal para vacinar a população e conter o avanço da covid-19?
José Gomes Temporão: Um governo sério, um Ministério da Saúde que, de fato, cumprisse a sua missão, deveria ter lá em maio, junho, começando a sentar com os laboratórios que estavam desenvolvendo vacinas e começado a negociar as compras.
Nós não fizemos isso com a Pfizer, nós não fizemos isso com a Moderna, nós não fizemos isso com a Sputnik V. O presidente da República apostou todas as fichas apenas na vacina da Fiocruz. Na verdade, eu diria que foi a Fiocruz que convenceu o governo a assumir essa vacina como sua.
Nós poderíamos ter começado a vacinação no Brasil em dezembro, tranquilamente, poderíamos estar hoje em um momento totalmente diferente. A responsabilidade é da omissão do governo federal.
Os números que nós temos é que no final de março, se tudo correr bem, Butantan e Biomanguinhos juntos vão poder entregar 30 milhões de doses por mês ao PNI [Programa Nacional de Imunização].
Isto nos permitiria chegar no meio do ano com 120 milhões de doses, o que ainda é insuficiente. Nós teríamos que ter umas 200 milhões de doses até o meio do ano para poder atingir uma meta mínima de 70% de cobertura até julho no máximo.
É importante vacinar o maior número possível de pessoas no período mais curto possível para reduzir a circulação do vírus. Cai o número de casos, cai o número de óbitos e a gente pode virar a página desta situação horrenda que estamos vivendo.
Mas agora, a nossa grande dependência tecnológica externa, associada à omissão do governo que já poderia ter fechado contrato com outras vacinas lá atrás, nos coloca nesta extrema condição de vulnerabilidade.
Em 2010, o Brasil ficou marcado como o país que mais vacinou cidadãos contra H1N1 pelo sistema público no mundo. Como ministro, como foi enfrentar a pandemia da Gripe A? Quais foram as estratégias para a imunização?
No começo, era medo e insegurança. E nós enfrentamos de uma maneira completamente diferente da maneira como o governo federal está enfrentando a covid-19. Nós imediatamente mobilizamos a ciência, a primeira diferença foi essa.
Nós tínhamos um presidente da República que não era um ignorante e um psicopata que nós temos hoje. Tanto o ministro da Sáude, como o presidente da República que nós temos hoje são dois charlatões que deveriam ser processados por exercício ilegal da medicina, e por estarem, preescrevendo drogas que não funcionam para a populaçao brasileira.
Naquela época, a gente pôde rapidamente produzir uma vacina, porque nós já tínhamos a vacina da gripe. Era um vírus da mesma família Influenza. Então não foi tão complexo você introduzir esta cepa mutante na vacina que todo ano a gente toma, entre março e maio.
Em 2010, o Brasil vacinou 100 milhões de pessoas. Foi o país que mais vacinou proporcionalmente no mundo. Então desde o começo, nós trabalhamos articulados por cientistas, desde o começo trabalhamos articulados com estados e municípios. Tivemos um presidente que deu suporte e bancou todas as decisões que nós tivemos que bancar.
Por exemplo, este medicamento que era usado nos primeiros sintomas, houve uma grande pressão para que ele fosse vendido nas farmácias. E eu fui totalmente contra. Ora, se eu colocar o medicamento na farmácia, quem tem dinheiro vai estocar e vai comprar, e pode faltar medicamento para quem não tem.
Então que decisão foi tomada? A gente manteve a distribuição do medicamento apenas sob prescrição médica na rede pública. Quem bancou essa decisão: o presidente Lula.
E hoje você tem um presidente que desde fevereiro do ano passado trabalha para ajudar o vírus, trabalha para aumentar o número de mortes, trabalha para aumentar a ignorância, trabalha para aumentar o negacionismo.
Quais fatores explicam o sufocamento do sistema de saúde observado em Manaus?
Manaus é uma síntese deste desgoverno. Primeiro porque você tem uma oferta de serviços muito menor do que proporcionalmente a outras regiões. Médicos, especialistas, leitos, respiradores, etc. Segundo, porque houve uma grave omissão das autoridades em relação às medidas de distanciamento.
Nós assistimos em Manaus no final do ano grandes mobilizações. Houve até uma mobilização por lá contra as medidas de contenção, contra o uso de máscaras. Aliás, o governador é cúmplice do presidente da República nestas questões.
Você soma isso à conduta da população, completamente alienada e estimulada por estas posturas todas, e à mutação do vírus, chamada de mutação P1, que tem uma capacidade de disseminação muito maior do que a cepa original, que circulava em Manaus no ano passado.
Aglomeração, falta de qualquer medida de contenção, não usar máscara, precariedade do sistema de saúde, omissão das autoridades, o resultado foi o que nós vimos. E isso está acontecendo em todo o país, com raras exceções.
Uma questão que é grave é a disseminação permanente durante todo o ano de 2020 de que nós temos um tratamento precoce.
Isto é um fator indutor de comportamento de risco, porque se eu escuto o ministro da Saúde recomendar, o presidente da República recomendar, que nos primeiros sintomas eu tome Hidroxicloroquina e outros, isso me passa uma sensação de segurança. “Oras, se tem remédio porque eu vou usar a máscara, ficar em casa, manter isolamento e a higiene das mãos com frequência?”. Então esse é um dos fatores que está por trás do que está acontecendo no Brasil Inteiro.
O começo da vacinação contra coronavírus no Brasil é tido como uma conquista do Sistema Único de Saúde (SUS). Como você avalia o atual momento do SUS e sua importância histórica no combate à epidemias e enfermidades?
O SUS foi a mais importante reforma estrutural, social, administrativa e política que o país já construiu em toda sua história. Não tem nenhuma experiência semelhante. Nós saímos dos anos 80 de um sistema fragmentado, privatizado, onde só as pessoas formalmente inseridas no mercado de trabalho tinham acesso ao cuidado.
O SUS está vivo, pulsante, e nesse contexto que estamos vivendo de grande dramaticidade, ficou bastante evidente a importância do SUS para a sociedade brasileira.
A grande maioria da população brasileira era objeto dos precários serviços de saúde dos municípios ou eram objeto da filantropia e da caridade. Então, o SUS ele significou uma revolução na atenção à saúde. Quando a gente escreveu no artigo 196 da Constituição, a saúde é um direito de todos e dever do estado, e ainda mais, que se conquista através de políticas econômicas sociais.
Dentro do processo civilizatório brasileiro, o SUS é a grande marca. E ao longo destas décadas, nós tivemos por um lado, uma grande expansão da cobertura, do acesso, implantação de programas importantíssimos, o próprio programa nacional de imunizações, política de transplantes, de Aids, controle do tabagismo, atenção primária.
O Brasil é o país que tem o maior programa de atenção primária do mundo. São praticamente 150 milhões de pessoas cobertas pela estratégia de saúde da família. O SUS está vivo, pulsante, e nesse contexto que estamos vivendo de grande dramaticidade, ficou bastante evidente a importância do SUS para a sociedade brasileira.
E hoje, o que ameaça os pilares que sustentam o Sistema Único de Saúde?
O sistema tem muitas fragilidades. A primeira delas é que na Constituição nós apostamos que iríamos fazer uma progressiva redução da presença do setor privado na prestação de serviços de saúde e o que nós temos hoje é exatamente o contrário.
Ao longo deste período, nós tivemos uma ampliação da presença do setor privado, de planos de seguros de saúde, e que hoje cobrem em torno de 30% da população brasileira. Evidentemente muito concentrados em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas, e nos estados do Sul.
E isso através de uma política de subsídios e renúncia fiscal onde você retira recursos do sistema público, e subsidia o mercado, principalmente as famílias de classe média que podem abater seus gastos com médicos, internações, exames, consultas, odontologia e outros, do imposto de renda devido.
Mas também das pessoas jurídicas, que abatem os gastos de seus funcionários do imposto de renda devido. Essa é uma distorção grave. E o outro problema é o do financiamento. Nós nunca conseguimos ao longo desta trajetória equacionar o financiamento do SUS, isso se agravou a partir da 2016 com a aprovação da emenda 95, que retirou recursos reais do SUS nos últimos anos.
O terceiro, diria que é o problema do nosso modelo de assistência ainda muito centrado na assistência médica do hospital, da tecnologia, e deveríamos ter enfatizado mais a questão da atenção primária, da saúde da família, do vínculo, do cuidado na comunidade.
E uma outra fragilidade e vulnerabilidade, que nós chamamos da sustentabilidade tecnológica. Ficou muito evidente nesse momento de pandemia a grande dependência brasileira da tecnologia desenvolvida fora. Está todo mundo esperando os insumos da China, para que a gente possa de fato, no Butantan e na Fiocruz, passar a produzir as vacinas brasileiras. E por fim , o SUS não pode cumprir todo o seu objetivo, toda a sua missão, por uma questão política.
Ao longo destas décadas, o que a gente viu foi a grande mídia e a opinião pública e o empresariado, principalmente, vendendo a ideia de que o SUS é sim muito importante, mas apenas para os pobres.
Isso é uma falácia. O SUS foi construído como sistema universal para todos os brasileiros. Tem toda essa parte ideológica, que é essa permanente venda para a sociedade que a medicina privada é melhor, que o estado é incompetente, que o estado é inerentemente corrupto. “Tudo que é público não funciona”. Isso se radicalizou de 2016 para cá, a partir do governo Temer.
Tem a dinâmica do capital da saúde, que é uma das áreas mais importantes, em termos de lucratividade. Indústria farmacêutica, equipamentos, grandes complexos hospitalares, planos de saúde, seguradoras, toda essa dinâmica do capital que busca se expandir.
E de outro lado gestores públicos, não só do campo da saúde, ministros da Saúde do governo Temer para cá, praticamente todos eles, mas também burocratas da área da fazenda, da área da economia, da área do planejamento do Estado.
Veja a contradição. Nós temos um sistema universal para todos, mas todo o funcionalismo público dispõe de planos de segundos para o seu atendimento cotidiano, subsidiados em parte pelos impostos. Os mesmos profissionais que trabalham no SUS usam planos de segundos. Isso se dá pela questão do financiamento. Na Inglaterra, por exemplo, 80% do gasto total com saúde é público.
No Brasil é 46%. Ou seja, 54% do gasto em saúde no Brasil é privado. É gasto pelas famílias diretamente comprando medicamentos, pagando por procedimentos, consultas, exames. Isso afeta proporcionalmente os mais pobres. Quanto mais baixa a renda, maior o peso deste gasto. Isso é totalmente inadequado. O Brasil deveria ter pelo menos 70% do gasto total sendo público.