Por Fabiana Reinholz.
Transformado pela realidade trazida pela pandemia de covid-19, que já vitimou mais de 2 milhões de pessoas no mundo, o Fórum Social Mundial, no seu 20º aniversário, é realizado totalmente de forma virtual. Após o início marcado por uma marcha virtual pelo mundo, o evento deu seu pontapé oficial no último sábado (23/01), com o painel global de abertura intitulado “Qual o mundo que queremos hoje e amanhã? – Não é o mundo de Davos!”, que teve a participação de líderes mundiais que lutam contra a desigualdade e em defesa dos direitos humanos.
“Iniciamos este Fórum com uma marcha virtual pelo mundo, da Oceania ao Havaí! E com um painel de debate político com alguns protagonistas importantes do mundo atual, um mundo em crise, de saúde, ecológica e social, com conflitos, desigualdades crescentes, fascismo emergente e cada dia mais repressão e violência. Existem alternativas. O Fórum Social Mundial é uma das alternativas, de redes de movimentos sociais que se organizam, cooperam entre si e promovem a solidariedade”, afirma a organização do fórum.
O painel de abertura teve a participação da escritora e ex-ministra do Mali Aminata Dramane Traoré; da indígena hondurenha Miriam Miranda; do economista e um dos criadores da Internacional Progressista Yanis Varoufakis; do ambientalista indiano Ashish Kothari; e de Melike Yasar, do movimento das mulheres do Curdistão. Também teve a participação dos membros do Conselho Internacional do FSM, como Hamouda Soubhi, Rosy Zuñiga, Oded Grajew, Boaventura de Sousa Santos, Carminda Mc Lorin e de diversos representantes dos movimentos sociais pelo mundo.
Os participantes expuseram sobre a luta de seus países, o desrespeito dos direitos civis, a destruição ambiental no planeta e o agravamento das desigualdades. A moderação do debate ficou a cargo de Francine Mestrum e Carlos Tibúrcio, integrantes do Conselho Internacional do FSM.
Pandemia e desigualdades
Idealizador do FSM e presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam, Oded Grajew destacou na abertura do evento o surgimento do Fórum. Relembrou que o espaço nasceu para contrapor o Fórum Econômico de Davos, espaço que promove a excelência do neoliberalismo pelo mundo, baseado em uma visão de mundo competitiva, de eliminação do outro e da maximização do lucro de qualquer maneira. “Esse modelo tem causado uma enorme desigualdade no mundo, cada vez mais crescente, uma enorme devastação ambiental e uma enorme crise política da democracia, extermínio do que pensa diferente”, destacou.
Para mostrar que outro mundo é possível, ressaltou Oded, é preciso mostrar que existem alternativas, que não se deve conformar com essa situação. “Para reagir temos que ser diferentes do modelo neoliberal. O que significa que nossa luta não se fará através de uma liderança, de uma pessoa, mas da nossa força, da nossa colaboração, da nossa solidariedade. O Fórum veio para oferecer um espaço de encontro, de articulação, para que todos possam se juntar e crescer juntos e poder ter uma potência política para realizar a mudança. A nossa diferença é a diferença da solidariedade, da colaboração, da parceria, da coletividade”, afirmou.
Por sua vez o sociólogo, jurista e professor português Boaventura de Souza Santos disse que o Fórum hoje é um sinal de esperança do mundo e que a marcha há comprovado muito bem isso. Contudo, ressalvou que para se manter a esperança é preciso fazer algumas mudanças e análises.
“Sabemos que o Fórum tem todo esse potencial, mas não há realizado de fato. O FSM, hoje, não tem mais a força que tinha em 2001, há que reconstruir e para isso é preciso com que se lute contra o capitalismo e que o Fórum tem que ser anti-capitalista, feminista, antirracista, antissexista e impulsionado por uma vontade de cuidar da gente e da mãe terra. Ele também precisa se renovar e adaptar as condições de 2021. Dessa maneira poderemos nos liberar e ter um papel importante”, disse.
O jornalista Carlos Tibúrcio, co-fundador do FSM, explicou a ausência do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva que estaria presente no painel de abertura. Lula deixou um recado. “O mundo pós pandemia está em disputa política. O Fórum Social Mundial é uma voz de esperança para a humanidade para que tenha um mundo melhor”.
Capitalismo
Aminata Traoré iniciou sua fala recordando que o FSM de 2001 foi um grande momento de reencontro entre os povos que têm vivido a maior parte das situações que caracterizam a ordem atual do mundo.
“Juntos temos lutado por um mundo mais justo, mais plural. Denunciar a gravidade da situação, ligada não só a pandemia, que veio para jogar uma dura luz sobre as disfunções, as desigualdades e os fatores de destruição da sociedade, dos laços sociais, do meio ambiente e da biodiversidade”, pontuou.
Conforme destacou a escritora, em Mali, desde 2013, tem havido enfrentamento civil, que tem por obrigação fazer frente às consequências dramáticas de décadas de liberalismo mafioso e de programas de ajuste estrutural em nome do crescimento.
“Somos um país isolado que já foi vítima da seca, que temos passado pela crise sanitária, econômica e política”, frisou, afirmando que não estamos preparados para fazer frente às consequências catastróficas das políticas neoliberais que são impostas.
“Quando, atualmente, alguns países dizem que a África é o futuro, sabemos o que isso quer dizer, aproveitar-se dos africanos. Fica a África como laboratório, e pátio dos fundos da Europa, com todas as consequências catastróficas ecológicas, sociais, políticas e culturais. Temos consciência disso.” Para ela é preciso proceder a desconstrução do discurso dominante sobre a África. “Reeducar nossos olhares sobre nós mesmos, reeducar o olhar”, finalizou.
A indígena hondurenha Miriam Miranda recordou que há alguns anos ao participar de uma edição do FSM, no Brasil, se deu conta da importância de criar redes entre os movimentos sociais, organizações e pessoas que querem mudança.
Para ela é importante destacar o cenário que estamos vivendo e analisá-lo, o que, na sua avaliação, não tem sido feito. “Essas crises que estamos vivendo nesse momento são crises que vêm se repetindo por um lado, e se aperfeiçoando de alguma outra forma. Falo de um país que foi destruída totalmente a institucionalidade, um país com sucessivos golpes de Estado e golpes bem planejados para destruir a institucionalidade, o Estado de direito”, expôs.
De acordo com ela, Honduras é atualmente um narcoestado, pais onde mais se assassina defensores e defensoras de direitos humanos, e o país com o maior índice de vulnerabilidade social na América Central.
“Os hondurenhos estão abandonando o país em caravanas. Há um plano de esvaziamento do território”, reforçou Miriam.
A indígena frisou que Honduras se converteu em um laboratório político. Para ela, os movimentos sociais não dimensionaram sobre o golpe de Estado em Honduras e o que significa a instrução da institucionalidade pelos sucessivos golpes de Estado. Miriam pontuou que após o golpe de Honduras vieram os golpes de Estado no Paraguai e no Brasil.
De acordo com ela, está se aperfeiçoando o golpe de Estado dentro da institucionalidade. “É o poder que o golpe dá a outro poder. Temos que fazer uma análise, como movimento social, do que significa o laboratório que se converteu Honduras, porque ao fazer esse laboratório e implementá-lo, abre-se portas para que se possa implementar em outro país. Creio que seja importante para o Fórum discutir o que significa a instrução da institucionalidade, os golpes de Estado, o que significa a destruição do tecido social.”
Em sua fala Melike Yasar, do Movimento de Mulheres Curdas, ressaltou que as mulheres são as primeiras a sofrerem com as opressões. Ela também destacou que em meio a pandemia as potências capitalistas tentam aproveitar o momento para reformar ou formar novos mecanismos de controle sobre os povos.
“Os povos estão em uma busca, tentando através da vanguarda das mulheres, construir um sistema, uma alternativa. Porque lamentavelmente estamos vendo que muitos estados, nações, governos estão tentando praticar os projetos do sistema capitalista.”
Para Melike é preciso uma nova definição dos objetivos e utopias. “O Fórum deu uma nova esperança para os povos, vimos nos últimos anos como ele apoiava a todas as lutas de todo mundo. O FSM tem que tomar uma decisão de construir uma forma organizativa, de construir uma luta em comum para esse sistema capitalista e o seu subproduto, o patriarcado. Porque o patriarcado e o sistema está nos atacando com suas distintas organizações e suas formas em comum”, explicou. Ainda segundo ela, é necessário construir alternativas ao sexismo, o militarismo, o fundamentalismo e o cientificismo.
“Se deixarmos esse vazio, o sistema capitalista vai preenchê-lo, vai tomar conta do debate. Como nós mulheres curdas dizemos, para recuperar a liberação da sociedade, a liberação da mulher, é fundamental que as mulheres sejam fator principal de todas as lutas. Porque as mulheres foram as primeiras a serem oprimidas, através das mulheres se iniciou todas as colonizações. A colonização das mulheres significa a colonização da terra, sobre nossos territórios e sobre os povos”, reforçou. Lembrou que na Turquia, na área política, muitas deputadas, prefeitas estão presas porque estão levando a ideologia, a construção de uma nova sociedade com o olhar feminino, e que há um ataque todos os dias contra as mulheres.
Alternativa
O economista Yanis Varoufakis reforçou que a pandemia não criou, mas acelerou a crise que começou em 2008. “O nosso 2008 foi o 1929 da nossa geração, ninguém se recuperou totalmente. Não temos mais um capitalismo, temos agora um tecno-feudalismo. Pela primeira vez na história do capitalismo vimos uma desconexão do dinheiro, não tem mais lucro ao redor do mundo, nunca houve uma queda tão grande de lucro”, pontuou, ressalvando que apesar disso o modelo mantém o domínio total.
Segundo ele, apesar de prever o que ia acontecer, os movimentos sociais falharam por não conseguir criar o poder político para poder fazer a mudança. “O mesmo grupo de pessoas continuam retornando ao poder. Por que falhamos? Porque não temos um plano comum. Precisamos fazer um plano em comum, de ação, precisamos acordar, criar uma coligação.”
De acordo com o ambientalista indiano Ashish Kothari a pandemia expôs questões profundas entre a humanidade e a natureza. “Vimos que a crise ecológica continua, que as formas de fascismo estão crescendo no mundo e a desigualdade se aprofundando. Uma crise da vida no planeta como um todo”, pontuou. Também destacou que ao mesmo tempo tem surgido diferentes tipos de respostas. Uma delas é a resposta vinda da resistência, de forças que lutam contra a injustiça e a não sustentabilidade.
O outro tipo de resposta, completou, é o da construção de alternativas nas áreas de agroecologia, soberania sobre a água, uma democracia radical e a governança local. Para ele é preciso que essa luta esteja baseada na defesa da ética, de valores como solidariedade, diversidade, respeito, coletividade e igualdade.
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