O mundo do trabalho no Brasil em 2020: retrospecto funesto. Por José Raimundo Trindade.

Encerramos 2020, um dos mais difíceis períodos da história recente brasileira e latino-americana. Segundo análise da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina) a economia dos países latino-americanos teve um dos mais expressivos declínios econômicos e sociais, segundo o estudo publicado pela organização vinculada a ONU no contexto da pandemia ao “se comparar diferentes indicadores sanitários, econômicos, sociais e de desigualdade, a América Latina e o Caribe foram as regiões mais atingidas” pela crise econômica e ambiental ao nível mundial (conferir: https://www.cepal.org/es/publicaciones/46501-balance-preliminar-economias-america-latina-caribe-2020).

As estatísticas da CEPAL mostram que o impacto da crise sanitária foi devastador sobre o mercado de trabalho e, principalmente, estamos somente no início de uma crise que tende a continuar seus reflexos nos próximos meses, talvez anos. Em “um grupo de 14 países a taxa de ocupação caiu 10 pontos percentuais em relação ao mesmo período (segundo trimestre de 2020) do ano anterior, ou seja, passou de 57,4% para 47,4%, uma destruição de aproximadamente 47 milhões de postos de trabalho” (CEPAL, 2020).

Dois aspectos devem ser fortalecidos em termos analíticos: i) a crise sanitária veio reforçar um quadro que já era ruim, considerando elementos que serão brevemente tratados a seguir; ii) a crise sanitária desloca das relações de trabalho o chamado setor informal, o que repercute na taxa de participação da força de trabalho que declina e que leva a uma taxa de desocupação aberta menor, as repercussões deste aspecto e suas consequências para 2021 também serão tratados.

No caos brasileiro a pandemia do Covid-19 se alastrou de forma descontrolada. Sendo que chegamos neste início de 2021 com mais de 200 mil mortos e aproximadamente 8,0 milhões de contágios, considerando a ausência de efetivo planejamento para vacinação da população e uma grande desinformação plantada e consolidada na forma de negação da própria vacinação.

Vale reforçar que o predomínio de relações de trabalho que não se estabelece em bases contratuais regulares ou fixas, definindo mecanismo de superexploração correspondente a uma lógica de crescente flexibilização no uso e gestão da força de trabalho que leva ao domínio do próprio tempo privado dos trabalhadores pelo capital, formas manifestas em ocupações do tipo PJ (Pessoa Jurídica), revendedoras de cosméticos, Uber e tantos outros. Assim a ultra flexibilidade estabelecida na própria legislação parece não fazer efeito frente uma realidade em que as condições estruturais de informalidade se impuseram e ao mesmo tempo não se observa a degradação da estrutura antes formal de emprego imposta pelas novas “não regras” advindas da “modernização trabalhista”. O quadro de reorganização e degradação das relações de trabalho já era parte deste longo ciclo de crise estrutural do capitalismo mundial que como notou, entre outros, Streeck ([2013], 2018, p.10), seria somente “etapa de uma sequência histórica”.[1]

As alterações estabelecidas a partir da Lei Complementar 13.467/17, que os segmentos da burguesia brasileira e da tecnocracia hoje estabelecida chamam de “modernização trabalhista”, nos levaram a um mercado de trabalho que intensificou as condições de fragilidade e vulnerabilidade dos trabalhadores, fortalecendo as figuras do trabalho autônomo, intermitente, parcial, temporário e da terceirização, fatores que levam a um mercado de trabalho crescentemente precário, notáveis nos números referentes aos dados de subutilização, conta-própria e informalidade registrados nos dados da última PNAD coletada antes da atual crise sanitária e também do “Novo Caged”, como exporemos.

No chamado contrato de trabalho intermitente, o empregado terá o prazo de vinte e quatro horas para responder ao chamado e o período de inatividade não será considerado como tempo de serviço à disposição do empregador. O trabalhador intermitente somente receberá pelas horas efetivamente ocupadas, o que concretamente estabelecerá salários abaixo do mínimo e formas de subemprego enquanto dinâmica legal. Por sua vez o Contrato de Trabalho temporário, será de cento e oitenta dias, consecutivos ou não, prorrogáveis por mais noventa dias, consecutivos ou não, ou seja, será de até 270 dias, bem acima da rotatividade média no Brasil (que é de 6 meses). O resultante desta lógica nos leva ao uso do trabalho temporário enquanto forma definitiva, impondo a definitiva precarização do trabalhador.

Os dados fornecidos pelo “Novo Caged” mostram um pequeno número de postos de trabalho criados com base nessas novas modalidades: em novembro de 2020, houve 20.429 admissões e 9.340 desligamentos na modalidade de trabalho intermitente, gerando saldo de 11.089 empregos, a maior parte no setor de Serviços ( 4.309 postos) e Comércio ( 3.656 postos). Quanto aos contratos temporários, ou por tempo parcial, foi registrado um saldo de 4.683 empregos, sendo também concentrados em Serviços ( 2.843 postos) e Comércio ( 1.717 postos).

A explicação para o completo insucesso da chamada “modernização trabalhista” é diversa, mesmo desconsiderando os efeitos da pandemia, vale notar que a crise de desocupação e sub ocupação dos trabalhadores já era anterior ao Covid-19. Assim, a taxa de desocupação no último trimestre de 2019, divulgado em janeiro de 2020, apresenta uma inflexão muito pequena em relação a observada no mesmo período do ano anterior, a ausência de políticas anticíclicas dada pela lógica neoliberal, a baixa capacidade de geração de postos de trabalho próprios da atual configuração macroeconômica do país e o a pandemia agravaram o quadro.

Gráfico 1 – Taxa de Desocupação Total (2018/2019/2020)


Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – contínua trimestral (2020). Acesso em: https://sidra.ibge.gov.br/Tabela/6381#resultado

A rigidez da desocupação se dá em função da própria lógica neoliberal da atual dinâmica econômica brasileira, somente agravada neste ano pela pandemia. Esses dados revelam um cenário de forte rigidez nas condições macroeconômicas referentes ao mercado de trabalho, não se observando a recuperação econômica na velocidade necessária e intensamente agravada pela pandemia. Uma primeira consideração em relação a crise sanitária deve-se interpor frente este quadro de rigidez da desocupação. A destruição de postos de trabalho foi expressiva, mas parcialmente controlada pelas políticas de transferência de renda (Renda Emergencial), porém agravando radicalmente as condições de desocupação, precariedade do emprego e o aspecto próprio da pandemia que foi a redução da taxa de informalidade, pois com o isolamento social parcela considerável destes trabalhadores não tiveram como exercer suas ocupações.

O saldo de geração de postos de trabalho formais, mesmo já sob as novas regras da LC 13.467/17 se mantém risível desde 2018, sendo notável o impacto da crise sanitária que reduz expressivamente o número de postos formais como observado abaixo, porém convém reforçar temos uma tendência mantida de pequena capacidade de geração de postos formais de trabalho, mesmo com as alterações imputadas pela legislação neoliberal.

Tabela 1 – Admitidos, Desligados e Saldo (por Setor IBGE) (Acumulado novembro 2018/2019/2020)

Fontes: Nov/2018 e Nov/ 2019 (CAGED/MTb); Nov/2020 (Novo CAGED/ME) (Acesso em: http://pdet.mte.gov.br/caged/caged-2019/caged-novembro-2019)

A Taxa Composta da subutilização da Força de Trabalho é crescente, quando se compara os diferentes períodos verifica-se sua particular expansão, atingindo aproximadamente 30 milhões de brasileiros no trimestre móvel ago-set-out de 2020. A análise desses dados é importante para se perceber a evolução futura próxima do mercado de trabalho. Dois aspectos ainda devem ser denotados: i) com o fim da renda emergencial do Governo Federal, teremos grande número de trabalhadores que serão acrescidos a informalidade e a procura do emprego, elevando a taxa de desocupação e, consequentemente, mantendo a expansão dessa taxa composta; ii) deve-se notar que essa taxa abstrai um percentual da população que se encontra no desalento, ou seja, desistiu de procurar qualquer ocupação. Os dados mostram que no período tratado (ago-set-out de 2020) o percentual de desalentados na população acima de 14 anos alcança o valor histórico máximo de 5,2%, ou seja, aproximadamente 9 milhões de brasileiros.

Gráfico 2

Taxa Composta de Subutilização da Força de Trabalho

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – contínua trimestral (2020). Acesso em: https://sidra.ibge.gov.br/Tabela/6441#resultado

Por fim temos que observar a taxa de informalidade, ou seja, a maior parte da população brasileira (aproximadamente 70 milhões da População em Idade Ativa) que não está inserida regularmente no mercado de trabalho, muitas vezes tendo que suportar altas jornadas de trabalho em situações insalubres e, além disso, baixo rendimento médio se comparado com os trabalhadores que possuem carteira assinada ou trabalhadores estatutários. A taxa de informalidade resulta da razão entre a soma de formas precárias ou não formais de ocupação (empregado no setor privado sem carteira de trabalho assinada; trabalhador doméstico sem carteira de trabalho assinada; empregado no setor público sem carteira de trabalho assinada; conta própria e trabalhador familiar auxiliar) e população ocupada total. Vale observar que as alterações legais ocorridas fortaleceram os padrões informais do mercado de trabalho, o que torna ainda mais complexa a gestão da crise sanitária e o impacto sobre a população brasileira.

Deve-se observar que a redução na taxa de informalidade no período de auge da primeira onda de Covid deveu-se a política de isolamento social, o que retornará paulatinamente conforme se normalize a situação. Aspecto crítico a ser denotado é que uma segunda onda de Covid e a demora de política de vacinação em massa que equacione definitivamente a pandemia terá um custo ainda mais elevado de vidas e de sufocamento econômico e social desta população.

Gráfico 3 – Evolução da proxy da taxa de informalidade das pessoas ocupadas (Brasil)

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – contínua trimestral (2020). Acesso em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pnadct/brasil

Este quadro reflete a tripla crise econômica neoliberal, sanitária e política em que estamos inseridos, evidenciando uma conjuntura de desocupação e precariedade do emprego onde os indivíduos buscam tentar garantir sua subsistência em atividades sem vínculo formal, nos levando a crer que neste ano de 2021 se aprofundará a desocupação, a sub ocupação e as formas informais de ocupação. O quadro todo poderá se agravar exponencialmente, sendo necessárias profundas alterações econômicas e sociais, como a revogação da EC 95/16, regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, estabelecimento de uma pauta de investimentos públicos em infraestrutura urbana, sanitária e de logística capaz de aquecer a construção civil e uma nova política industrial capaz de recompor as bases produtivas, tudo isso num quadro de reorganização macroeconômica e de vacinação planejada de toda população brasileira. Estas alterações parecem um sonho de verão na atual conjuntura e a tendência mais realista nos parece a maior decomposição do tecido social nos próximos meses e talvez anos, mas o horizonte da resistência é fundamental.

José Raimundo Trindade é Professor do Programa de Pós-graduação em Economia da UFPa, autor, entre outros livros, de ”Crítica da Economia Política da Dívida Pública e do Sistema de Crédito Capitalista: uma abordagem marxista” (CRV) e Coordenador do Observatório Paraense do Mercado de Trabalho

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[1] Wolfgang Streeck. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Boitempo, 2018.

Leia mais:

Conquista e Reconquista. Por Paulo Nogueira Batista Jr.

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