Por Arnaldo Franco Junior*
Comentário sobe a crônica “As crianças chatas” e o livro “A hora da estrela”
“Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, […] mas quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago.” (Clarice Lispector, A hora da estrela).
Um dos procedimentos artísticos fundamentais na literatura de Clarice Lispector é a construção de um narrador que submete as histórias que narra a uma dupla perspectivação. Com grande acuidade crítica, Nádia Battella Gotlib sintetizou as características desse narrador, que se constitui a partir de uma dupla focalização articulada em quiasmo (estrutura em X em que os planos da história narrada e da narração dialogam tensa e especularmente): “O que o discurso narrativo traz é […] uma prova de resistência de levar às últimas consequências o fio da experiência – até o ponto máximo, vértice de um sistema especular, um X em que ocorre o encontro de opostos, a partir do qual cada um dos polos continua seu percurso, ao contrário, no reflexo”.[i]
Eis, aí, uma chave-de-leitura fundamental para ler a obra de Lispector, cujos textos tendem a contar uma história e, simultaneamente, discutir o próprio narrar/escrever a história narrada. Vejamos, por exemplo, “As crianças chatas”, crônica que abre o livro A descoberta do mundo, publicada originalmente em 19 de agosto de 1967 na coluna que a escritora produzia para o Jornal do Brasil:
As crianças chatas
“Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma. Ele diz: não posso, estou com fome. Ela repete exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? – pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar. Na noite negra os dois estão despertos. Até que, de dor e cansaço, ambos cochilam no ninho da resignação. E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta” (LISPECTOR, 1984, p. 9).
Este texto articula duas narrativas: a história do diálogo entre mãe e filho e a história da narração-criação dessa cena (uma história sobre fome) pelo narrador que, ao ficcionalizá-la, toma partido do que dela “é real” e “devora com fome e prazer a revolta” que esse dado de realidade lhe causa. Note-se que as histórias cumprem a função de moldura narrativa uma da outra, caracterizando uma narrativa enquadrada. É no jogo entre elas que se constrói a crítica em relação ao que ambas as narrativas, com seus respectivos clichês de gênero literário, implicam – crítica que dialoga com a literatura e a sociedade brasileiras. Observe-se que:
(a) No jogo de narrativas que se emolduram reciprocamente, a cena nuclear é caracterizada como ocorrendo “na noite negra” de um dia qualquer, circunstância que, aliada ao estado de “dor de fome” e à insistência do filho, acaba por desencadear a irritação da mãe: “O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe”. A cena é dramática porque o conflito entre ambos tem como causa uma fome que só se abranda momentaneamente devido ao cochilo resignado que sobrevém, na criança, como efeito da repreensão sofrida e, na mãe, como efeito de sua própria dor. Esta cena apresenta elementos folhetinescos condensados: a gradativa irritação da mãe revela a sua dor de, provavelmente, não ter o que dar para o filho comer,[ii] a insistência e o silêncio amedrontado da criança apontam para a irremediabilidade da situação e a permanência da fome, acrescida, no final, de medo e dor. Embora o conflito dramático seja universalizável devido à ausência de dados precisos de espaço e tempo, a cena descortina, enquanto metonímia, a miséria que historicamente atinge parte da população brasileira. Desse modo, os elementos folhetinescos prestam-se à construção de um drama social que denuncia a má condição de vida dos desfavorecidos;
(b) O contar do narrador-escritor, que no final assume protagonismo ao expor-se em 1ª pessoa, também tem um tom candente, mas de indignação: a cena por ele visualizada é real,incomoda e aciona uma carência não resignada: a sua fome de revolta.
Contrastam, pois, a indigência daqueles que têm de se resignar à sua situação de fome ea indignação daquele que, com prazer,se satisfaz, devorando ‘com fome’ a sua revolta. Por força do indiciamento das diferenças de classe social entre o narrador que cria/narra e as personagens por ele criadas, a indignação e a revolta restringem-se àquele que se constitui, via escrita, em porta-voz dos desfavorecidos.
Deste modo, portanto, a narrativa protagonizada pelo narrador, que é escritor, não se reduz à função de moldura da cena dramática. Por meio do contraste estabelecido entre as duas narrativas, esta história da invenção de uma história “que é real” acaba sendo, ela também, emoldurada pela outra. O contraste presente no espelhamento estabelecido entre as duas narrativas (e os respectivos gêneros aos quais elas remetem: o folhetim/drama social e a narrativa moderna) cumpre uma função metalinguística crítica em que tanto os códigos literários que as caracterizam como os temas que elas abordam e a posição daquele que escreve/cria são problematizados. Deste modo, Clarice Lispector chama a nossa atenção para a posição (des)confortável daquele que faz a denúncia, mas não soluciona o problema concreto que dá origem a ela.
O que Lispector tematiza, via metalinguagem, nesta crônica, é o mesmo que ela tematiza em A hora da estrela, o romance de “fatos sem literatura” dos quais “não há como fugir”.[iii] o dramático e complexo abismo que, no Brasil, separa “os que têm [dos] que não têm”.[iv] A recusa em propor soluções cumpre a função de manter o leitor incomodado com as questões que o texto problematiza, instando-o a enfrentar a angústia por elas causada. É assim, portanto, que Clarice atinge o leitor nos muitos textos em que explora os conflitos eu X outro, centro X margem, identidade X diferença.[v]
Em “As crianças chatas”, como já dito, o conflito entre as duas narrativas articuladas discute criticamente os gêneros literários aos quais elas se vinculam: de um lado, o folhetim (melo)dramático que se converte em drama social; de outro, a narrativa metalinguística moderna. A ironia é a figura de linguagem que se destaca no texto, já que se dirige tanto para um como para outros gêneros e para seus possíveis representantes na sociedade brasileira: o intelectual/artista e o pobre – além, é claro, de visar o próprio leitor
A percepção dessa ironia passa, porém, pelo reconhecimento de que tais gêneros e seus traços característicos são tratados por Lispector como recursos retóricos e, sob certo ângulo, como clichês. Segundo Linda Hutcheon: “[…] faz parte da estratégia particular tanto da paródia como da ironia que os seus actos de comunicação não possam ser considerados completos, a não ser que a intenção codificadora precisa seja realizada no reconhecimento do receptor. […] a ironia requer do seu leitor uma competência tripla: linguística, retórica ou genérica e ideológica. […]o leitor tem de entender o que está implícito, bem como aquilo que é realmente afirmado. […]. A competência genérica ou retórica do leitor pressupõe um conhecimento das normas retóricas e literárias que permitem o reconhecimento do desvio a essas normas que constituem o cânone, a herança institucionalizada da língua e da literatura”.[vi]
Os procedimentos de escrita aqui abordados revelam, por fim, algo que me parece central na singularíssima poética de Clarice Lispector: o amor à ironia e ao paradoxo e às consternações que eles são capazes de produzir. A estrutura em abismo que constitui A hora da estrela já estava presente em germe nesta crônica aparentemente despretensiosa de 1967. O soco desferido por Lispector em seus textos é também duplo porque nos perturba tanto pelas histórias narradas quanto pela narração que as enforma, gerando mal-estar ao abrir-se às nossas imaginações, “porventura até malsãs e sem piedade”.[vii]
*Arnaldo Franco Junior é professor de Teoria da Literatura na Unesp-São José do Rio Preto.
Notas:
[i] Cf. GOTLIB, N. B. “Um fio de voz – histórias de Clarice”. In: LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. (Ed. Crítica e Coord. Benedito Nunes). Paris: Association Archives de La littérature latino-américaine, dês Caraibes et Africaine Du XXe. siècle, Brasília, DF: CNPq, 1988. p. 170.
[ii] O conflito mãe X filho pode, também, ser interpretado pelo leitor como representação de uma situação doméstica comum na qual a função de mãe é problematizada – o que pode não ter nada a ver com miséria. Não será este, porém, o viés interpretativo aqui privilegiado.
[iii] Cf. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 6. Ed., 1981, p. 21.
[iv] Cf. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 6. Ed., 1981, p. 32.
[v] Leia-se, p. ex., os contos: “A menor mulher do mundo”; “Feliz aniversário” e “O crime do professor de matemática” – exemplares quanto à articulação da dupla perspectivação do narrador com o quiasmo e o espelhamento.
[vi] Cf. HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia. Lisboa, Edições 70, 1989, p. 118 – 120.
[vii] Cf. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 6. Ed., 1981, p. 17.