No Taqui pra Ti.
“As armas e os barões assinalados, / Que da ocidental praia Lusitana, (…)
Cantando espalharei por toda parte / Se a tanto me ajudar o engenho e arte”.
(Camões, Os Lusíadas, 1572)
Ele foi eleito para ser síndico, mas se acha o dono do prédio. Por isso, coloca os órgãos do Estado a serviço do seu quintal e do galinheiro particular e não dos condôminos. Dessa forma, Jair Bolsonaro anunciou a isenção do imposto de 20% sobre a importação de armas de fogo nesta quarta-feira (9), enquanto sua proposta de reforma tributária fez o caminho inverso ao taxar o livro, antes isento, com 12%. Manifesta que não quer livros, quer armas, disposto a converter o edifício Brasil num arsenal de guerra, sem bibliotecas ou qualquer resquício de inteligência. Será que são esses os interesses dos moradores? Quem ganha e quem perde, afinal, com tais medidas?
– O Brasil se converteu em um “eldorado” para a indústria de armamentos – escreveu o advogado criminal Luís F. Carvalho Filho (FSP 12/12), para quem “o engajamento da família Bolsonaro neste bilionário negócio merece ser fiscalizado por procuradores da República”.
O deputado Eduardo Bolsonaro acaba de apresentar projeto de lei (PL nº 5417/20) que autoriza publicidade de armas de fogo na mídia e nas redes sociais, justificando com os ensinamentos – pasmem! – de Jesus Cristo, segundo informa Carvalho Filho. O Zero Três vive exibindo armas em flagrantes fotográficos, dando uma de garoto propaganda e lobista das multinacionais da indústria bélica.
Esse baronato do gatilho nada tem a ver com as armas e os barões assinalados do maior poema épico da língua portuguesa – Os Lusíadas – centrado sobre a viagem “por mares nunca dantes navegados” de Vasco da Gama até as Índias no final do séc. XV. Diferem ainda do barões do 2º. Reinado (1840-1889), no Brasil, que concedeu 1.138 honrarias nobiliárquicas, 762 das quais a fazendeiros escravocratas transformados em barões – um título da “baixa nobreza”, inferior a duque, marquês, conde e visconde. Os “barões do gatilho” são na realidade tubarões que formam uma espécie de Cosa Nostra. Quem são eles?
O tubarão de Atibaia
Por ser honraria não hereditária, o fazendeiro de Campinas (SP) Joaquim Arruda não pôde legar a seus descendentes o título de barão de Atibaia, que foi recuperado agora pela Familícia Real beneficiada pela isenção de imposto sobre as armas e sobre a taxação dos livros.
O policial aposentado Fabrício Queiroz, dignificado com o título de tubarão de Atibaia, convive com outros parceiros, entre eles o ex-escrivão da Polícia Federal, Eduardo Bolsonaro, tubarão de Hambúrguer, e Flávio Bolsonaro, o tubarão de Kopenhagen, que negocia chocolate com “rachadinha”.
Se há uma forma de caracterizá-los é o deslumbramento que compartilham pelas armas de fogo e o total desconhecimento dos livros, de toda natureza, sobre os quais nunca falam, a não ser na crítica feita por Jair Bolsonaro para quem os livros didáticos “têm muita coisa escrita”. Estão condenados a ignorar um discurso como o da melhor cepa literária sobre a época em que pistolas e revólveres inexistiam:
– Sorte tiveram aqueles ditosos séculos que careceram da assustadora fúria daqueles endemoninhados instrumentos de artilharia, cujo inventor deve estar no inferno recebendo o prêmio merecido por sua diabólica invenção, com a qual um infame e covarde braço tira a vida de um valoroso cavalheiro […] e com uma bala perdida corta e acaba em um instante os pensamentos e a vida de quem merecia gozá-la.
Poderia ser o texto das mães de crianças mortas no RJ, da família de Marielle, das vítimas das inúmeras guerras que acontecem em pleno séc. XXI. No entanto, seu autor foi Cervantes, um escritor do séc. XVII, legitimado por seu lugar de soldado, que perdeu a mobilidade na mão esquerda na batalha de Lepanto e, com a mão direita, escreveu Don Quijote de la Mancha. Da mesma forma que não entenderiam sequer a palavra “arma” em Os Lusíadas, cujo autor perdeu um olho na batalha contra os mouros no norte da África.
Justamente no capítulo sobre as armas e as letras, que trata do “curioso discurso de Dom Quixote”, Cervantes aborda o sofrimento dos soldados na guerra e o martírio das tropas, comparando com os suplícios dos estudantes. Faz seu personagem dizer que alguém que deseja se tornar eminente no campo das letras tem de investir tempo de estudo, noites mal dormidas, vigílias, fomes, indigestão, pobreza, penúria.
O gênio de Cervantes, ao se referir à “desmandada bala”, nos coloca diante da tragédia que mata diariamente pessoas negras, incluindo crianças, como ocorre no Rio de Janeiro. Pesquisas bem fundamentadas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Sou da Paz comprovam que quanto mais armas em circulação, maior o número de mortos. O lugar no inferno do diabólico inventor de armas será certamente compartilhado pelos covardes facilitadores de sua importação e distribuição no Brasil. Os nossos netos haverão de cobrar a nossa omissão e a nossa passividade diante de tantas mortes inocentes.
Obscurantismo
A Familícia Real não lê e não quer que outros leiam livros como os aqui citados. Et pour cause. Por essa razão, a reforma tributária propõe acabar com a lei que reduz o custo na produção de livros. Com o fim da isenção, o livro ficará muito mais caro, porque o valor do tributo cobrado vai ser repassado ao consumidor final, incluindo aí o livro didático, semente da ciência, onde se aprende que a terra é redonda e que a vacina imuniza.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, alegou que a isenção de impostos sobre os livros garantida até hoje por lei beneficia quem pode pagar mais impostos. Falou vagamente que o governo, para compensar o fim da isenção, pode “pensar em um programa de doação de livros”. Sua proposta, felizmente, encontrou resistência no Senado.
Existe até uma Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro presidida pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN), para quem a tributação de livros, além de prejudicar o segmento editorial, arruinará o país inteiro, cuja média de leitura já é muito baixa, correndo o risco de nivelar o Brasil inteiro pela Familícia Real, que coleciona armas, mas não lê.
Da mesma opinião é o senador Fabiano Contarato (Rede-ES). Ele considera que a imunidade tributária dos livros democratiza o saber, assegura a livre difusão do conhecimento e evita que o governo de plantão use os impostos para cercear obras críticas: “O obscurantismo hoje no poder tem horror à cultura e à educação”. Melhor combater à bala. As milícias, penhoradas, agradecem…
P.S. 1 – Academia Brasileira de Letras (ABL). Por falar em letras, ou melhor Letras, nesta sexta-feira (11), em cerimônia virtual, tomou posse a nova diretoria da ABL, lembrando seu programa de distribuição de livros para comunidades quilombolas, indígenas e das periferias urbanas. Por falar em armas, no seu belo e por vezes contundente discurso de posse, o presidente reeleito Marco Lucchesi, sozinho no Salão Nobre do Petit Trianon, propôs um minuto de silêncio pelo assassinato de Emily, 4 anos e Rebeca, 7 anos:
– “Enquanto não encontrarmos os culpados, somos todos réus”.
Lamentou as mais de 180 mil mortes vítimas da pandemia, a agressão ao estado laico e à democracia, os delírios golpistas, o racismo, os ataques à ciência. Relatou a passagem pela ABL dos Guarani, que, convidados pelo seu presidente, para lá levaram sua língua materna com seus cantos e saberes. Invocou os sábios Ailton Krenak e David Kopenawa, a quem se dirigiu no final do discurso. Aos interessados em acompanhar a cerimônia, deixamos aqui o link: https://youtu.be/WjuoYjRmMEg
P.S. 2 – Severiano Mário Porto –
– “Na Faculdade Nacional de Arquitetura, aprendi com meus professores. No Amazonas, quem me ensinou foram os índios e os ribeirinhos” – disse um dia Severiano Porto, o “arquiteto da floresta”. Vítima da Covid, aos 90 anos, seu sepultamento ocorreu nessa sexta (11) no cemitério Parque da Colina, em Niterói-RJ, onde vivia. Deixa saudades e uma obra premiada nacional e internacionalmente, entre outros pela revista francesa L’Architecture d’Aujourd’hui.