Em 1986, tivemos no Brasil uma coisa que se chamou Plano Cruzado. Foi uma coisa estupenda: com uma penada, o governo acabou com a inflação, tirou três zeros da nossa moeda e mudou o nome dela. Só isso não foi estupendo: estupenda foi a reação do nosso povo, que acreditou que seus problemas tinham terminado, e embarcou de cabeça no sonho de que “ia dar certo”. Como milhões e milhões de outros brasileiros, eu também acreditei, e fiquei fula da vida quando ouvi a única voz que se levantou contra o plano: com horário político reservado para aqueles primeiros dias, o Leonel Brizola deitou e rolou em cima do entusiasmo do brasileiro, afirmando que inflação não se acaba por decreto, que o plano era furado e tinha vida curta. Fiquei cheia de rancor para com o Brizola, advogado do diabo dos nossos mais caros sonhos e, rapidinho, passei a admirá-lo, quando plano escorreu pelo ralo e nós embarcamos numa ciranda financeira que chegou a gerar 84% de inflação em um só mês.
Pois bem, mas a estupenda reação do nosso povo a favor do plano fez coisas dignas de nota: não dá para esquecer como pessoas comuns se sentiam indignadas a ponto de fechar supermercados, em nome do povo brasileiro, e outras coisas assim, como denunciar pequenos negociantes porque haviam subido o preço de alguma quinquilharia, indo um monte de gente parar na cadeia, levados pela deusa da época, uma tal de SUNAB.
O plano tinha sido em fevereiro: resistiu até a metade do ano. Lá por agosto, setembro, começaram a faltar coisas: carne, feijão, arroz, leite. O que mais doía na alma do brasileiro era a falta de carne – frango havia à vontade, e peixe também, mas carne, para o brasileiro, é a de gado, e aqueles sucedâneos não contavam. Eu era daquelas que acreditavam que, se todos nos uníssemos, o plano acabaria dando certo. Assim, quando a carne faltou (conseguia-se carne com ágio, secretamente), decidi que não me rebaixaria a pagar ágio, e que tudo faria para o sucesso do plano. Assim, se não havia carne, eu comeria sardinha – e durante semanas, fiz incontáveis tortas picantes, lindas, bem decoradas, recheadas com sardinha de lata, e me alimentei de torta picante até não poder mais nem olhar para uma.
E o plano foi para o brejo, bem como Brizola havia falado. Houve outras coisas estupendas antes que nos déssemos por vencidos, como a SUNAB, de helicóptero, reunindo no campo, gado que os donos se negavam a vender, tudo devidamente filmado e assistido no Jornal Nacional, e importação de carne da Europa, que chegou aqui com fama de ser carne contaminada pelo recente desastre nuclear de Chernobyl, carne que os europeus não queriam, coisa boa só para gente de Terceiro Mundo. Apesar da fama de contaminada, tal carne européia causou toda uma disputa: políticos de esquerda do Vale do Itajaí foram ao porto, exigir que a carne ficasse no Vale, e não fosse enviada para Curitiba, segundo constava que seria. Houve pega entre a polícia e os políticos, e eles foram em cana lá em Itajaí, bem como as coisas eram num país que recém saíra de uma ditadura e ainda não sabia como agir. Outro dia ouvi uma conversa de que tal carne, vinte e quatro anos depois, ainda está estocada em algum frigorífico, para que se decida se está ou não contaminada pelo desastre de Chernobyl. Nossos políticos de esquerda, porém, tiveram que amargar a cana e responder a processos pela sua defesa do Vale, coisa que também considerei estupenda, por eles terem tido a coragem de dar a cara para bater em defesa do que acreditavam.
Na festa de fim de ano do meu emprego, naquele ano, havia toda uma fartura de coisas: camarão, pernil, peixe, frango, mas estávamos todos tão obcecados com a falta de carne, que quando o garçom apareceu com uma grande travessa de carne de gado e deu um pedacinho para cada um, só um pedacinho, para que não faltasse para ninguém, houve uma ovação no salão, e o camarão, e o pernil, e tudo o mais, deixaram de ter importância. Só que aí eu já não estava achando a coisa estupenda – já houvera incidentes demais por causa do plano, e eu passara a dar razão a Brizola, de que inflação a gente não acaba por decreto.
Mas que foi um tempo divertido, foi. Há tantas histórias engraçadas devido à falta de carne, que daria para escrever um livro!