Quem cala sobre o teu corpo, consente na tua morte

 

Imagem: Connectas

Por Marcos Ferreira.

Na formação em Psicologia trabalhamos desde muito cedo com a ideia de dupla vitimização. Em geral, no tocante às agressões sofridas por mulheres que, ao relatar algum ataque passam a ser tratadas como coautoras ou até principais responsáveis pela violência ocorrida. Dizemos: são dois ataques, o do agressor e o de quem atribui responsabilidades à vítima. Para quem sofre, resta o isolamento e o abandono, multiplicando o sofrimento.

Será que essa noção de dupla vitimização ajuda a entender o que está acontecendo com as pessoas atingidas pela COVID 19 no Brasil de hoje?

No sétimo mês da pandemia no Brasil, atingimos a insuportável e vergonhosa marca das cento e sessenta mil vidas perdidas para o vírus corona. Durante muitos dias chegamos a mais de mil perdas. Quando a média das diárias de mortes fica em torno de quinhentas perdas, há quase uma celebração. Perdemos de vista que quinhentas mortes significam mais do que duas vezes o desastre de Brumadinho. A cada dia!
Como compreender o silêncio e a aceitação dessas mortes? Por que as bandeiras não estão a meio pau? Por que não temos manifestações coletivas de luto? Por que não acontecem manifestações de reconhecimento coletivo do sofrimento vivido por centenas de milhares de famílias? Por que isso não é assunto todos os dias de nossas autoridades? Será que estamos todos sendo levados a naturalizar essas mortes e tratá-las como aceitáveis?

Devemos considerar normal que profissionais de saúde percam suas vidas por tratar, muitas vezes sem as condições necessárias para sua proteção, de pessoas acometidas pela COVID? Será que isso é o que chamam de novo normal?

A pandemia e suas mortes hoje precisam disputar espaço no debate social. Por vezes com dinheiros enfiados em cuecas. Por vezes com temas de relevância irrecusável. Nem mesmo as sequelas que vão sendo descobertas em pessoas que foram “curadas” chegam a ganhar a atenção necessária. Sequelas que se suspeita atingirem diferentes órgãos e até mesmo o sistema nervoso central.

Proponho uma forma de mostrar nosso reconhecimento para com as pessoas que perdemos e para com as famílias e amigos que foram diretamente atingidos. Em cada assunto que somos obrigados a colocar nossa atenção, apesar do inaceitável das perdas impostas, a pandemia precisa ser considerada e ser critério para nossas reflexões e escolhas.

Estamos numa eleição para prefeito? Devemos nos perguntar como cada um dos candidatos e seus partidos se comportam em relação à chegada e avanço do vírus corona. Como cada candidato e seus partidos se comportam com relação à perda de vidas e ao sofrimento dos que perdem amigos e familiares.

Foi da música Menino, de Milton Nascimento, que foram retiradas as palavras do título deste texto. Ela fala de uma morte por arma de fogo, mas o sentido é o mesmo. A morte tem um tom de coisa deliberada e o silêncio diante dela tem o tom de consentimento.

Vale lembrar do final do poema. Depois de afirmar que quem cala sobre o teu corpo, consente na tua morte, diz o poema: quem grita vive contigo!

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