Por Lu Sudré.
Professores e pais de alunos em Manaus (AM), primeira capital do país a retomar as aulas presenciais, desde o início de agosto, têm se organizado para defender a volta do ensino remoto na rede pública estadual. Eles denunciam o iminente risco de contaminação pelo coronavírus devido à aglomeração e à falta de estrutura para o cumprimento dos protocolos sanitários. A categoria está em greve há mais de 60 dias.
O crescimento dos números de casos de infecção pela covid-19 nas últimas semanas deixou a comunidade escolar ainda mais preocupada, colocando em xeque estudos que afirmavam que Manaus teria alcançado a imunização coletiva. Levantamento do Sindicato dos Professores e Pedagogos das Escolas Públicas do Ensino Básico de Manaus — Asprom Sindical apontou que ao menos 30 professores morreram desde a chegada do coronavírus ao estado.
As mortes foram lembradas na quinta-feira (15), Dia do Professor, quando professores fixaram cruzes no complexo turístico de Ponta Negra, em Manaus.
Segundo dados da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), dos mais de 148 mil casos de contaminação no estado, 56.222 são em Manaus. O município, que atualmente contabiliza 2.706 mortes em decorrência da covid, foi destaque na imprensa mundial nos primeiros meses da pandemia devido ao alto número de óbitos diários e enterros em valas coletivas no cemitério municipal.
As aulas foram retomadas em duas fases. As atividades presenciais no Ensino Médio, por exemplo, voltaram no dia 10 de agosto sob protestos dos professores, que desde então se mantêm em greve. Apenas 15 dias depois, a testagem em 1.064 profissionais da educação constatou que 342 docentes testaram positivo para o vírus.
Quinze dias depois do retorno das aulas presenciais, começaram as contaminações
“Foi uma coisa avassaladora. Era o que nós já prevíamos até por conta das orientações que recebemos dos cientistas do estado, que não estão de acordo com a política que o governo vem desenvolvendo. Eles afirmavam que as escolas se transformariam no principal foco de transmissão da covid-19 e que se houvesse o retorno essa contaminação seria em larga escala. E foi exatamente isso que aconteceu. Quinze dias depois do retorno das aulas presenciais, começamos a ter as contaminações”, afirma Lambert de Melo, diretor do Asprom Sindical.
Com os resultados alarmantes, o retorno das aulas presenciais no ensino fundamental foram adiadas e retornaram apenas em 1º de outubro.
Segundo Lambert, dos mais de 8 mil professores do ensino básico, 3.500 testaram positivo para a covid-19 e cinco óbitos foram registrados. Para ele, há descaso do governador Wilson Lima (PSC) para com os profissionais, refirmando a importância da paralisação como forma de protesto: “É uma greve em defesa da vida. O que nós queremos é a suspensão das aulas presenciais. Estamos há mais de 60 dias em greve e até o momento o governo não abriu nenhum diálogo com a categoria. O que estamos vivenciando agora é uma segunda onda de contágio e de mortes”, afirma.
É uma greve em defesa da vida e até o momento o governo não abriu diálogo
“Pensávamos que quando chegasse o Dia do Professor (15 de outubro) teríamos a comemorar pelo menos a vitória da vida sobre a morte. Com as suspensão das aulas e vidas preservadas. Mas, infelizmente, o governo não teve diálogo e estamos nessa condição de sermos obrigados a trabalhar, nos contaminando com a covid-19”, complementa o diretor da Asprom.
Escola sem covid
Ao lado dos professores, pais de alunos também se opõem às aulas e, para articular a mobilização, criaram o movimento Escola Sem Covid, que começa a germinar em outros estados brasileiros.
Para a socióloga Shirley Abreu, e uma das mães que integra o grupo, o protocolo de retorno às aulas presenciais apresentado pelo estado pode ser cumprido em escolas particulares, mas não leva em conta as características estruturais do ensino público.
Segundo ela, a grande maioria dos prédios das escolas é alugada, com salas pequenas e superlotadas, com cerca de 40 a 45 alunos, o que impede o distanciamento de 1,5 metro entre os estudantes, indicado pelos órgãos sanitários.
Devido ao calor intenso no município, as salas possuem ar condicionado e, portanto, janelas fechadas, que não permitem a circulação do ar. Além da ausência da testagem em massa entre os alunos, reivindicada por pais e alunos antes da retomada presencial, a higienização dos espaços é outro entrave.
Não adianta colocar álcool gel se não trabalha a higienização das escolas
“As nossas escolas tem uma pessoa só para limpar. Os banheiros são mal estruturados, não tem papel higiênico e sabonete líquido. Não adianta colocar álcool gel se não trabalha a higienização. Os nossos alunos, diferente do que ocorre nas escolas particulares, usam o transporte público. Em Manaus não foi feita nenhuma mudança no transporte, não tem nada, nenhuma higienização, não tem álcool gel e os ônibus são superlotados”, comenta Shirley Abreu.
Ela afirma ainda que é perceptível o aumento de contaminação nas casas e entre familiares de estudantes, e, exatamente por isso, a grande maioria dos pais não autorizou o retorno dos filhos ao ambiente escolar.
As unidades de ensino estariam exigindo que os pais entreguem cartas pessoalmente, apresentando as justificativas do porque os estudantes não voltaram, com laudo médico e outros documentos. A demanda, conforme Shirley, tem causado aglomerações e longas filas nas unidades de ensino.
“Eles estão tentando criar dificuldade porque nem 20% dos alunos voltaram. Ninguém acredita que em dois meses teremos reposição de conteúdo. Hoje o que importa não é conteúdo, é a vida dos nossos filhos”, afirma a socióloga, reforçando que os alunos da rede pública estadual devem ter, assim como os da privada, o direito de permanecer em casa.
A reportagem do Brasil de Fato aguarda posicionamento do governo do Amazonas sobre o assunto.
Para as mães, a decisão de retomar as aulas presenciais é uma grande irresponsabilidade do governo e coloca em risco a vida da população.
Estão querendo usar nossas crianças de cobaia para fazer um protocolo nacional
“Manaus foi cobaia. Aqui usamos todos os remédios de experimento, morreu um monte de gente e agora eles estão querendo usar nossas crianças de cobaia pra fazer um protocolo nacional, para os outros estados. Manaus não é exemplo para outros estados. Perdemos muitas vidas e continuamos perdendo”, diz Shirley.
Entre abril e maio, a capital amazonense apresentou um pico de mortes sete vezes maior do que a média de enterros antes da epidemia. Os infectados também sofreram com longas esperas pela internação em um leito de UTI.
Insegurança
Alessandra Sousa, professora do Ensino Fundamental e Médio da rede pública do Amazonas, conta que a adesão da categoria à paralisação em repúdio às aulas presenciais foi imediata, justamente porque os profissionais conhecem a realidade estrutural das escolas, e sabem que os protocolos sanitários não seriam respeitados da forma ideal.
Ela já perdeu as contas de quantas denúncias de aglomerações recebeu em seu celular nas últimas semanas.
A profissional reconhece que a dinâmica do ensino à distância é complexa. Para dar conta de todas as demandas e adaptações, a carga horária dos professores triplicou. Por outro lado, a falta de acesso à internet e aos equipamentos adequados dificultam a participação massiva dos estudantes.
Nesse momento a única saída para salvar vidas é continuar trabalhando de forma remota
Entretanto, mesmo em meio a este cenário, Alessandra defende a manutenção das aulas virtuais. “Temos muitas dificuldades mas nesse momento é a única saída para salvar vidas é continuar trabalhando de forma remota”, afirma.
De acordo com a professora, ao autorizar a retomada das aulas sem segurança, o governo transfere a responsabilidade para professores, diretores e os próprios alunos.
“Imagine uma criança adoecer e levar o covid para casa e o pior acontecer com alguém que ela ama. Como fica o emocional dessa criança? É uma luta muito difícil. Não é uma luta só contra o governo, é contra os empresários, porque a educação movimenta muito dinheiro”, destaca, citando o setor do transporte escolar e da merenda.
Subnotificação
Os professores afirmam que os dados de contaminação pela covid-19 apresentados pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS) estão longe de corresponder fielmente à realidade. A ausência de testagem massiva entre a comunidade escolar, por exemplo, é um dos fatores que compromete o registro dos casos.
Reportagem do The Intercept Brasil publicada no início de outubro mostrou que informações apresentadas pelo órgão em julho, que contabilizavam zero mortes pela covid-19 entre 4 e 5 de julho, eram falsas.
A confusão com os dados é recorrente. Do dia 1º para o dia 2 de setembro, conforme a reportagem, gráficos divulgados pela fundação registravam 164 novas mortes por covid-19 enquanto outro gráfico, no mesmo boletim, informava apenas 4 mortes.
Havia ainda um terceiro gráfico disponível no site da FVS informando seis novas mortes no estado nas mesmas 24 horas. Ou seja, sem uma base de dados confiável, a situação real da pandemia na capital segue no escuro.
“Todas essas manipulações e mentiras colocam nossos alunos e professores em uma fogueira. Se eu pudesse falar com todos os professores do país nesse momento eu diria: ‘não é hora de voltar’. Se voltarmos, muitas pessoas vão morrer”, alerta a professora Alessandra Sousa.
Edição: Rogério Jordão.