Por Jacson Antônio Lopes Santana, para Desacato. info.
Há mais de trinta anos um grupo de Kaingang que estava acampado aos fundos do cemitério, no centro da cidade, migrava de Chapecó rumo ao litoral catarinense para a venda do artesanato. Segundo Mauro da Silva: “Saímos em busca de um espaço aonde pudéssemos ficar próximos do litoral, para a venda do artesanato. Em Chapecó, éramos sempre levados pela prefeitura para a terra indígena Nonoai, mas não era a nossa terra, e sempre voltamos para o centro de Chapecó, por que ali era a nossa terra”.
Passando por Mafra, resolveram acampar perto da rodoviária, era para simplesmente realizar a venda do artesanato, uma passagem pela cidade. Ali, começaram a ouvir de outros parentes, que a região era morada antiga dos Kaingang, sendo assim, firmaram nesse lugar um espaço de resistência. E nesta busca pela sobrevivência, começaram a sofrer ameaças por pessoas que representam os poderes locais e que diziam para voltarem ao lugar de onde saíram.
O processo de colonização do estado de Santa Catarina têm sido extremamente danoso para os povos indígenas. Isso porque a grande onda colonizadora ocorreu, nestas regiões, num período anterior às garantias constitucionais. Com isso, a presença de povos e comunidades indígenas nas áreas colonizadas não era respeitadas. Os indígenas foram sendo sistematicamente expulsos de suas terras e milhares de famílias, centenas de comunidades tornaram-se sem-terra. Algumas destas, acabaram sendo amontoadas em pequenos espaços reservados. A grande maioria, no entanto, não aceitou viver nesses lugares e, desde então, buscam, a sua maneira, a retomada de suas terras tradicionais, e junto a isso a migração às cidades, para a venda do artesanato, numa luta contínua pela sobrevivência.
A situação vivida por estes grupos indígenas, nesse processo de luta pelo retorno aos seus espaços originários, é marcada por condições extremamente precárias. Vivem no que denominamos de “acampamentos”. Locais com espaços muito reduzidos, desprovidos de infraestrutura na área de saneamento básico, água potável, energia. As “casas” são, na verdade, na sua imensa maioria, barracas feitas com pequenos pedaços de madeira, cobertos com lonas plásticas. Ficam, portanto, a mercê das intempéries e temperaturas extremas, como o frio, ou o forte calor.
Hoje, no acampamento em Mafra/SC, vivem 12 famílias, com mais de 40 pessoas. Não disponibilizam de espaço físico para suprirem a própria subsistência. Possuem carências de todos os tipos, inclusive alimentares. A água que utilizam para dar banho nas crianças é de um rio poluído que cruza nos fundos do acampamento. Já a água utilizada para beber e fazer comida é da rodoviária da cidade, agora restrita por pressão da prefeitura. Outra dificuldade é a distância que separa a comunidade Ven Kanér dos órgãos públicos competentes. Os Kaingang não possuem as mínimas condições econômicas para custearem despesas de viagens, seja para reuniões ou audiências com representantes desses órgãos a fim de que seus direitos sejam respeitados e efetivados pelo Estado brasileiro.
Para identificar a comunidade, assim como para serem reconhecidos, o grupo Kaingang batizou o acampamento com o nome de “Ven Kanér”, que significa: “Taquara Lisa”. A área de terra em que está instalado o acampamento, através de uma pesquisa no cartório local, é caracterizada como “Terra Devoluta”, que são áreas de terras públicas, sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse. Com isso, os Kaingang resistem, mesmo com a pressão de órgãos Públicos locais, como a Prefeitura, que insiste em remover a comunidade desse espaço e enviá-la para um outro lugar. Os Kaingang aceitam essa proposta, desde que seja um lugar que tenha a estrutura necessária para a sobrevivência física e cultural da comunidade.
Nestes locais de acampamento, estejam eles as margens de rodovias ou em espaços de contexto urbano, onde centenas de famílias indígenas estão, os órgãos públicos recusam-se, na maioria das vezes, em adotar políticas públicas visando garantir saneamento, água potável e acesso à educação escolar, por afirmar que ali não é território indígena, o que provoca uma espécie de círculo vicioso das omissões: o mesmo Estado que se omite no seu dever constitucional de demarcar Terras Indígenas, se utiliza dos efeitos da omissão como argumento para deixar de exercer a política indigenista. Com isso, milhares de indígenas que estão em territórios não demarcados, são tratados como invasores.
Diante desse cenário e agravado pelo contesto da pandemia, onde a Covid-19 provoca efeitos desiguais sobre os povos indígenas, é dever do Estado prevenir o genocídio, torna-se fundamental que os indígenas possam, com o apoio da sociedade civil, efetivamente mostrar os seus anseios e apontar os caminhos e as demandas para o enfrentamento dessa realidade, o que passa pela proteção dos territórios e pelo respeito à sua identidade.
Finalmente, é preciso reafirmar que as atrocidades contra os povos indígenas não ficaram no passado. Ela se perpetua em diversos cantos do país, onde os “parentes” são assassinados em razão da sua etnia e de seu modo de vida. Na pandemia, os problemas se multiplicam e a histórica omissão do Estado e o racismo estrutural provocam repercussões desiguais e desproporcionais.
Chapecó/SC, 13 de outubro de 2020.
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Jacson Antônio Lopes Santana é Missionário, membro do Conselho Indigenista Missionário/Regional Sul.