Por Dorvalino Rezende Neto – Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina.
Na comunidade do Papaquara, na Vargem Grande, em Florianópolis, as crianças brincam nas ruas sem calçamento, em meio ao esgoto a céu aberto e à lama que cobre as vielas, algumas com chinelos nos pés, outras descalças, e reproduzem cenas que vivenciam em seu cotidiano. Um dos menores, pouco mais de quatro anos, fazia de um martelo de brinquedo uma sorte de arma com a qual “atirava” no irmão mais velho. “Tem muita criança na rua, e como não tem creche, eles crescem já vendo as coisas”, diz uma das moradoras mais antigas daquela localidade, referindo-se à violência relacionada ao tráfico de drogas que acontece à luz do dia numa das esquinas da servidão Braulina Machado, ali perto.
Numa faixa de terreno paralela à servidão residem as 28 famílias que haviam sido ameaçadas de despejo e que foram beneficiadas pelo acordo intermediado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina com a proprietária daquela área, Marli Horn Meira, junto à 4ª Vara Cível da Comarca da Capital, numa atuação conjunta da defensora Dayana Luz, atual SubDefensora Pública-Geral, e dos defensores Marcel Mangili Laurindo e Marcelo Scherer da Silva. Pelo acordo, a proprietária fez a doação da área às famílias que lá residem, e o juízo da 4ª Vara Cível determinou a divisão dos lotes para a devida regularização fundiária.
Benfeitorias são esperadas
Enquanto isso não acontece, o poder público não pode realizar benfeitorias na comunidade do Papaquara. E as necessidades são muitas. Uma espécie de líder comunitária do Papaquara, Josinei Plácido Nascimento dos Santos, a Josi, baiana, cozinheira desempregada, faz uma lista das carências: “Chegou o verão, é falta de água direto. Hoje mesmo, a água só está chegando de noite. Mas aqui precisa fazer o saneamento, tem buraco de esgoto aberto, dia desses caiu uma criança em um deles. Não tem calçamento, tem muito lixo nas ruas. Quando chove, alaga tudo. Na minha casa a água já subiu quase meio metro. E também precisamos de uma creche, as crianças estão sem escola, ficam brincando na rua. Podia ter um parquinho para elas. Tem um terreno da Prefeitura no final da servidão, queríamos montar uma cooperativa de reciclagem lá também, para que esse povo desempregado pudesse ter uma renda. Também era um bom lugar para se ter uma horta comunitária”, afirma ela.
Assim como Josi e o marido, o barbeiro Cristiano Soledade dos Santos, a maioria dos moradores do Papaquara é composta por migrantes nordestinos, baianos principalmente, mas há famílias oriundas do Maranhão, da Paraíba, de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Em comum, todos deixaram seus estados natais em busca de emprego e de uma vida melhor na capital catarinense. A condição econômica obrigou todos a se estabelecerem na comunidade do Papaquara, onde alugaram ou compraram as casas já existentes de terceiros. Josi e Cristiano, por exemplo, moram há 14 anos na casa de alvenaria que está recebendo um segundo piso, onde num cômodo ele instalou sua barbearia.
“Numa sexta-feira, de tarde, chegou um oficial de Justiça avisando que teria uma audiência no Fórum na terça (seguinte) porque a proprietária havia entrado com uma ação (de reintegração de posse). Segunda-feira de manhã, eu já estava na porta da Defensoria Pública, esperando abrir o atendimento. E como lotamos a sala da juíza, a audiência de terça precisou ser transferida para um lugar maior. A juíza até se espantou com a quantidade de gente, não imaginava que eram tantos moradores. Graças a Deus e ao pessoal da Defensoria, que se reuniu com a comunidade, orientando a gente do que precisava ser feito, reunindo documentos, conseguimos no fim de tudo fazer o acordo”, diz Josi.
Função social da propriedade
Na contestação à ação de reintegração de posse, protocolada em 17 de maio de 2018, a defensora pública Dayana Luz solicitou que fosse declarada aos moradores (réus na ação) a usucapião coletiva prevista no artigo 10 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), e que subsidiariamente, caso fosse possível a delimitação do terreno de cada possuidor, o reconhecimento da usucapião individual a cada um nos termos do artigo 183 da Constituição Federal.
Segundo a defensora pública, a propriedade não cumpria a sua função social e havia sido abandonada pela proprietária. “De um lado temos dezenas de famílias em situação de pobreza extrema que usam a terra para a sua moradia, de outro temos uma rica proprietária de 52.150,37m² que apenas aguarda especulação imobiliária. A imagens juntadas com a inicial comprovam que hoje a autora não utiliza nenhuma área do grande lote. Aquilo que é moradia para centenas, é supérfluo para outros. (…) A posse permite a moradia, a alimentação e o trabalho do ser humano. Ter um lugar para se abrigar faz toda a diferença no contexto social dos réus. Só com essa salvaguarda mínima se pode preservar a dignidade da pessoa humana”, afirmou Dayana.
Desemprego com a pandemia
O desemprego provocado pela pandemia do novo coronavírus atingiu boa parte dos moradores da comunidade. Numa placa de madeira sobre o portão da residência do catador Antônio Cesar Silva dos Santos, também baiano, há 14 anos do Papaquara, ele entalhou a frase: “Sejam bem vindos a este local, sinta se em”, finalizando com o desenho entalhado de uma casa. Pai que cria sozinho uma filha adolescente, “a única coisa a quem dedico toda a minha vida”, ele faz ao lado do pequeno casebre de madeira a reciclagem do que consegue catar nas ruas do Norte da Ilha de Santa Catarina.
Outro baiano, Luis Claudio Araújo Silva, o Lula, há 17 anos em Florianópolis, trabalhou durante muitos anos como servente de pedreiro. Hoje é ambulante, vendendo picolé e milho nas praias do Norte da Ilha, durante a temporada, e panos de prato, doces e balas nos semáforos da cidade nos demais meses. “Não posso deixar os meninos passarem fome. Vim para cá porque tinha emprego, e sempre consegui me virar, agora na pandemia é que parou tudo”, explica Lula, que se queixa do esgoto correndo nas ruas e do rio que volta e meia transborda atrás de sua casa. “Quando fecham o Papaquara lá em Canasvieiras, por causa dos veranistas, enche tudo aqui”, conta.
Moradora há 20 anos na comunidade, a gaúcha Carlas Soares Rodrigues, faxineira, atualmente desempregada, cuida de três dos oito netos enquanto seu marido, Fernando Rodrigues, como ela oriundo de Porto Alegre, trabalha como vendedor ambulante. “Moramos muito tempo de aluguel, até que um conhecido do meu marido nos cedeu essa casa. O problema aqui é a nossa rua, que cada vez que chove fica um lamaçal que não se consegue nem caminhar. Mas de nada adianta arrumar se o povo não cuidar do lixo que entope tudo”, reclama.
Valéria Kelli de Abreu veio há três anos da periferia de São Paulo para o Papaquara junto com o marido Edson Ribeiro dos Santos, que trabalha na construção civil. Enquanto cozinhava uma panela de arroz, mostrou a casa que necessita de reformas onde reside a família, que tem três filhos. “A minha menina de oito anos tem alopecia causada pela depressão, cai pedaços do cabelo dela. Ela precisa de tratamento. E agora sem aulas piorou. Precisava ao menos um parquinho para as crianças”, diz.
O avô de Vânia Fátima Simões da Costa, seu Laudelino Simões, já falecido, catarinense da região Oeste, foi um dos primeiros moradores do Papaquara. “Ele veio para Florianópolis acho que nos anos 80, depois veio a minha avó com os filhos. Não tinha quase ninguém aqui”, diz Vânia, também desempregada, que se queixa da frequente falta de água na localidade. “Tem que aproveitar e reservar o que chega à noite para fazer comida, lavar a louça e tomar banho. Também aqui precisa de uma creche, são muitas crianças na rua”, afirma.
Nesse período da pandemia, muitas famílias têm sobrevivido apenas com as cestas básicas recebidas pela Assistência Social do município. “Mas é só arroz, farinha, fubá e feijão. Seria bom se fizessem uma campanha para doação de frango e carne para a nossa comunidade, esse povo precisa de uma proteína também”, diz Josi Plácido.
Fotos interiores: Defensoria Pública de Santa Catarina
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