Por Viegas Fernandes da Costa.*
Nesta quinta-feira (08/10) foi anunciado o Prêmio Nobel de Literatura de 2020 para a poeta estadunidense Louise Glück, cuja obra ainda é inédita no Brasil.
Não sei se o prêmio foi justo ou não, nunca li nenhum poema da autora e tampouco me deparei com críticas literárias sobre sua obra. Portanto, parto do princípio de que sim, a Academia Sueca provavelmente contemplou uma escritora cujos poemas merecem ser conhecidos.
Entretanto, é preciso colocar o Prêmio Nobel de Literatura no seu devido lugar. Primeiramente, compreender que não se trata de reconhecer e premiar o que de melhor se produz na literatura mundial, mas aquilo que se apresenta mais conveniente para os interesses da geopolítica internacional. Não seria nenhum exagero dizer que o Nobel de Literatura funciona quase que como uma extensão do Nobel da Paz (que tem lá seus méritos, mas também já reconheceu nomes e instituições como Jimmy Carter, Gorbatchev, Barack Obama – que manteve as ações militares dos Estados Unidos em conflitos na Ásia e não desativou a Base de Guantánamo – e a União Europeia).
Em segundo lugar, reconhecer que o Nobel de Literatura é uma premiação eurocêntrica e que reproduz as lógicas da hegemonia masculina, branca e capitalista na literatura. Basta observarmos que do total de 117 escritores laureados com o Nobel, apenas 16 são mulheres (boa parte delas obteve o prêmio apenas neste século XXI, a saber: Elfriede Jelinek, Doris Lessing, Herta Müller, Alice Munro, Svetlana Alexijevich, Olga Tokarczuk e, agora, Louise Glück). Deste total de laureados ao longo da história do prêmio, 114 são brancos; apenas uma mulher negra (Toni Morrison, também estadunidense) e dois homens negros (Wole Soyinka, da Nigéria, e Derek Walcott, de Santa Lúcia) receberam o prêmio. E, via de regra, quando premiados autores africanos, asiáticos e latinoamericanos, suas principais obras foram escritas originalmente em idiomas europeus, especialmente em francês, inglês, alemão e espanhol. Da língua portuguesa, o quinto idioma em número de falantes nativos no mundo, apenas José Saramago recebeu o prêmio. A França viu 11 dos seus escritores laureados, os Estados Unidos, 10. Quantos foram os escritores premiados com o Nobel de Literatura que efetivamente produzem a partir das periferias econômicas e políticas do mundo? Porque é importante que se observe que muitos destes autores ditos das periferias, produzem sua existência intelectual morando e lecionando em países europeus ou da América Anglo-Saxônica, como é o caso, para citarmos apenas um, do trinitário-tobagense V. S. Naipaul. É curioso e surpreendente que nesta lista de 117 premiados, não conste nenhum brasileiro, considerando a diversidade, qualidade, abrangência e profundidade da literatura produzida no Brasil que é, também, um dos maiores países do mundo e que publica muito, apesar do governo que possui.
Como disse, não se trata de diminuir a importância do Prêmio Nobel de Literatura, tampouco de contestar a qualidade do trabalho da poeta Louise Glück, mas de questionar, afinal, qual o propósito da Academia Sueca quando escolhe e confere o prêmio a um autor em detrimento de outros. O que move esta escolha e qual o tipo de literatura que a Academia Sueca reconhece? O que faz, por exemplo, que o estadunidense Bob Dylan seja pinçado no vasto mundo dos letristas e poetas, e Chico Buarque não? Ou que se anuncie Louise Glück e não a nigeriana Chimamanda Adichie? Que se tenha optado pelo sul-africano Coetzee e desconsiderado até este momento a obra do moçambicano Mia Couto? As obras de Dylan e Coetzee são excepcionais, mas as de Chico Buarque (e aqui me refiro às canções, não aos romances), Chimamanda Adichie e Mia Couto também o são. O que move o Comitê da Academia Sueca?
Em 1964, quando soube que receberia o Nobel de Literatura, o francês Jean-Paul Sartre escreveu uma carta à Academia Sueca na qual rejeitava respeitosamente a premiação. Dentre seus argumentos, disse que o Nobel de Literatura era “uma distinção reservada aos escritores do Ocidente ou aos rebeldes de leste”. Mais de meio século depois, as palavras de Sartre continuam atuais.
* Viegas Fernandes da Costa é Historiador e Escritor, autor de “Sob a Sombra da Tabacaria” e professor do Instituto Federal de Santa Catarina.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
Muito oportuna a reflexão – parabéns