Para quem escreve, o primeiro leitor almejado é o próprio autor. Algumas vezes para externar a si mesmo a indignação sentida, outras para confirmar emoções, muitas para buscar explicações.
É o que tentarei aqui: buscar explicação para algo que me ficou absolutamente incompreensível nestas últimas semanas. Resta saber em que poderá interessar ao leitor o que não compreendo sobre algo que tenha me ocorrido.
Por trás do que é incompreensível, geralmente existe uma explicação do interesse de todos. Afirmo isso pelas experiências adquiridas nos anos que atuei como profissional de comunicação. Ao longo desse tempo aprendi que quanto mais incompreensível a atitude de um indivíduo, mais provável que tenha sido motivada por fatores relacionados a sociedade à qual pertence, ou a toda a espécie humana.
A Maldição de Cunhambebe, por exemplo, evocada pelos munícipes de Ubatuba quando alguém se sente traído ou enganado por motivos mesquinhos, aparenta-se uma crença individual. Pois exatamente a individualização dessas crenças é o que impede a percepção de suas consequências coletivas.
Claro que existem questões exclusivas que variam pelo histórico das relações familiares, os traumas pessoais, as formações e deformações de caráter motivadas por experiências únicas, intransferíveis. Mas no caso da Maldição de Cunhambebe, os que a evocam conferem a má sorte do que lhes ocorre a uma cidade.
Na verdade, como em todo lugar, há pessoas excelentes em Ubatuba. Algumas delas foram as que voluntariamente me ajudaram sem ser necessário pedir-lhes algum socorro. Por que então, num segundo momento, duas dessas pessoas precipitaram um dos piores momentos de minha vida, apenas comparável aos que vivi durante a ditadura militar?
Mas, então, minha responsabilidade e risco eram apenas sobre mim mesmo. E agora, pela primeira vez, outro dependia de meu controle sobre uma situação da qual não tinha nenhum. E isso me foi o mais desesperador.
Outra coisa a considerar é se o ocorrido em Ubatuba se restringe apenas àquela cidade ou a todo o estado de São Paulo. Quem assistiu ao filme “Invasões Bárbaras” sabe que a questão do atendimento à saúde pública se tornou um problema mundial, atingindo inclusive países outrora considerados modelares no setor, como o Canadá. Mas não tenho experiências e conhecimentos que me permitam tecer considerações a respeito.
Por isso mesmo e pela preocupação com a situação de meu pai, não respondi nem dei atenção às quantas vezes minha amiga fisioterapeuta exaltou a administração de José Serra no que diz respeito a saúde pública. Sequer percebi se ela se referia ao ministro da saúde ou ao governador, mas conforme a farta e inquestionável documentação exposta por Amaury Ribeiro Jr. no livro “A Privataria Tucana”, a quadrilha da família Serra lesou tanto o povo paulista e brasileiro que o mínimo a esperar seria mesmo ter retribuído em alguma coisa. Não sendo da área não tenho como confirmar ou avaliar as conclusões e opiniões da amiga, mas esses seus comentários me possibilitaram um caminho de investigação na tentativa de compreensão das causas do que me ocorreu entre os dias 6 e 19 de abril.
Otimista com as informações telefônicas dessa mesma amiga sobre a evolução de meu pai ao longo dos 13 dias que em Florianópolis dei andamento a algumas das obrigações deixadas para trás, surpreendo-me quando torno a encontrá-lo afundado numa poltrona modelo “cadeira do papai”, da instituição de recolhimento de idosos onde o deixei em 21 de março. Era o mesmo celofane amassado de um mês antes, no hospital.
A diretora da instituição explica que tiveram de colocá-lo ali por ter caído da cama três vezes. Concluindo que sonhara estar nadando, mostra o machucado em um cotovelo provocado pela queda. Avalia a sorte de não ter se ferido em nenhuma outra parte e torna a reclamar de seu peso. Pergunto do enfermeiro pelo qual acrescera o valor da mensalidade e informa que o rapaz se demitiu logo depois e o outro, o único homem do quadro de funcionários da instituição, se recusa a atender meu pai.
Indago a razão e confidencia ter ocorrido uma discussão entre a amiga fisioterapeuta e o técnico de enfermagem, por motivos que desconhece, mas conclui relativos ao meu pai. Revela ter notado que o desinteresse do profissional ocorreu depois da visita ao meu pai por um inconsequente. Mas o mais preocupante foi o retorno da febre que provocou nova internação na Santa Casa, onde passara aquela noite de 06 a 7 de abril; e a recomendação da médica que atende aos idosos para que meu pai fosse transferido a um hospital capacitado para atendê-lo nas profundas debilidades que o acometem: baixo nível de plaquetas, inchaço do coração e infecção urinária.
A médica teria alertado que ele não suportaria as mais de 10 horas de viagem para Florianópolis, mas, como funcionário público aposentado, imprescindível sua transferência para o Hospital do Servidor em São Paulo, enquanto ainda lhe restava alguma resistência.
Exponho a preocupação de que se repita o mesmo que ocorrera quando lhe deram alta na Santa Casa e não tinha para onde levá-lo. Também explico que todas as pessoas da família da esposa de quem meu pai ficou viúvo trabalham, e não há ninguém disponível para acompanhá-lo diuturnamente como seu caso exige.
Informo que Sônia, a enteada, esta em negociação com uma clínica de repouso, mas que antes dessa confirmação temo a insegurança de não ter para onde levá-lo. A amiga garante que para normalização de sua condição de saúde, o Hospital do Servidor o manteria internado no mínimo duas semanas.
Foi a informação que transmiti no sábado a tarde quando chegam Sônia, suas filhas e netos. Todos muito chocados com o estado do pai e avô, além da grosseria de alguém que reclamou de sua permanência naquela instituição, questionando-as duramente sobre quando o levariam embora. Imaginei que tiveram a má sorte de se deparar com algum funcionário mais tosco e mal humorado, como há alguns anos vêm se tornando bastante comum na outrora simpática Ubatuba dos antigos caiçaras.
O que terá tornado os de Ubatuba tão grosseiros e irascíveis? Não sei responder, mas pude sentir no dia seguinte.
No anterior, preocupado com a informação de que a indisposição do técnico de enfermagem contaminara os demais funcionários, retornei com um ovo de chocolate para a atendente plantonista. Não tive pejo de imitar o Paulo Maluf, mas não me reverteu a mesma admiração de que o demagogo gozava na cidade quando ali vivi, pois desde que adentrei o portão a diretora minha amiga e uma mulher que até então não conhecia seguiram-me por cerca de 30 metros até o alojamento de meu pai. Uma de cada lado me acusaram pelo trabalho que o pai lhes dava e continuaram falando ao mesmo tempo e me inquirindo como policiais mesmo quando sentei ao lado da poltrona onde meu pai se afundava, mas dessa vez estava desperto. Percebi ter me reconhecido pela primeira vez desde que fora acometido pelo AVC e tentou falar-me alguma coisa, mas assim como nas delegacias as torturantes mulheres não paravam de falar e quando tentava responder a uma, a outra interrompia repetindo a mesma pergunta ou a mesma acusação. Recusaram-se a escutar o que eu tivesse a dizer, numa fiel reprodução da dupla de delegado do DOPS e tenente do exército que me interrogou em Recife nos anos 70. Dessa vez não tinha porque deixar que me intimidassem e num tom acima disse algo que calou a matraca da desconhecida que empinou o nariz e saiu pisando duro, além de recompor a diretora à normalidade sadia.
Só então pude ouvir o fio de voz de meu pai em meio a um sorriso: “- Palpiteira!” A amiga concordou que a outra não deveria ter se metido, mas retornou a importância da imediata transferência de meu pai ao Hospital do Servidor, antes que seu debilitado estado de saúde se agravasse, novamente enumerando condições que o levariam a morte. Um quadro tão desesperador que sai dali para telefonar à Sônia já de retorno a São Paulo, interando-a da eminência da morte de nosso pai se não conseguimos tirá-lo dali o mais rápido possível.
Na segunda-feira cedo encontrei a diretora e a amiga fisioterapeuta que relatou a razão de sua discussão com o técnico de enfermagem, quando ele o acusou de estar recebendo por fora, baseado em informação do visitante inconsequente. A informação era de que meu pai teria pequena fortuna em poupança.
Hoje me pergunto se terá sido essa razão de, em menos de duas semanas, minhas amigas terem mudado radicalmente de comportamento. Mas ainda me é difícil aceitar que tenham acreditado numa informação que, por todas as evidências, sabiam que apenas eu poderia possuir. Inclusive uma delas é testemunha na procuração que a mim transferiu o poder de inteirar-me do saldo de meu pai.
Também sabem de meus restritos recursos de sobrevivência aferidos nesta pequena pousada procurada apenas nos curtos períodos de temporada desta capital sulista. Não me é possível imaginar que, apesar de toda admiração que tenham pelo José Serra, sejam ingênuas o bastante para acreditar no obus em que transformaram uma bolinha de papel. Não posso acreditar que as fantasias da campanha de Serra tenham influenciado as amigas a tal ponto de acreditar em qualquer delirante que apareça.
Adolf Hitler transformou o povo de Beethoven, Schopenhauer e Goethe, entre tantos outros sensíveis artistas e pensadores, em celerados genocidas. Terá José Serra transformado mulheres que sempre admirei, inclusive pela inteligência, em idiotas?
Não apenas por serem minhas amigas, isso não me parece provável, mas também porque conheceram a casa de meu pai: uma construção inacabada e abandonada à beira do mangue no final da praia mais popular de Ubatuba, com dois quartos, sala e cozinha conjugada e ampla dispensa para seu naturalismo amador. Sabem de seu Chevette 93 de lataria podre, ainda que nem tanto quanto a mesquinha avidez do enfermeiro iludido por um inconsequente que delirou uma informação que não possuía.
Decididamente minhas amigas não são idiotas como o técnico de enfermagem, mas também não consigo imaginar que tanto trabalho pode ter dado uma pessoa impossibilitada de se mover e voz quase inaudível. Daí só poderia concluir que realmente havia uma sincera preocupação com meu pai.
A estimativa para recuperação do estado agudo e terminal em que meu pai se encontrava ampliou-se para mais de 20 dias e o desespero que me infundiram, transmiti por telefone à Sônia. Uma de suas filha matou o trabalho para naquela mesma segunda-feira, 9 de abril, comover a assistente social do Hospital do Servidor público que me ligou confirmando a vaga, dependendo somente da solicitação de um dos médicos que atenderam meu pai, na Santa Casa ou na instituição de acolhimento de idosos.
Já era noite quando consegui localizar a amiga fisioterapeuta, informando essa última condição e lamentando a conhecida inacessibilidade dos médicos de Ubatuba. Reiterando recomendações de estrito sigilo, forneceu o telefone de ambos: o da Santa Casa e o da médica que atendia meu pai no lar de idosos.
Também minha conhecida, aquela médica se espantou quando lhe comuniquei que atendendo sua orientação, obtivera meios de internação em São Paulo. Confirmou ter considerado temerária uma viagem, mesmo em ambulância, de mais de 10 horas, mas disse já ter informado às minhas amigas que hospital algum aceitaria meu pai, pelo simples fato de que ele não apresentava qualquer indício de motivo para internação hospitalar, estando em perfeita recuperação dentro das condições de seus 87 anos e do AVC que o acometera.
Estupefato, retorno à amiga que desqualifica ferozmente o diagnóstico da médica. Demais atordoado no momento, não me ocorreu a comparação com as acusações de Mônica Serra à adversária de seu marido na campanha das últimas eleições à presidência, mas confesso que depois cogitei a possibilidade daquele tipo de comportamento ter se tornado um exemplo seguido pelo eleitorado feminino paulista. Um modismo comportamental.
Hoje refuto tal consideração, lembrando que minha maior admiração àquela amiga sempre foi exatamente por sua sinceridade, para muitos até desconcertante. De forma alguma! Jamais ela cometeria semelhante hipocrisia!
No entanto, assim como os eleitores do nordeste foram ameaçados de afogamento pela estudante paulista de direito e eleitora do Serra, a amiga estimulou-me ao complexo de culpa pelo que viesse a ocorrer ao meu pai, duramente exortando-me a procurar o outro médico, o do hospital, impondo a necessidade da transferência.
Desliguei o telefone atarantado: em quem acreditar? A médica inclusive me garantira que seu colega da Santa Casa corroborava com as mesmas conclusões. Mas e se o diagnóstico de ambos resultasse da inconsequência acusada pela amiga? Não é médica, mas além da larga experiência, acompanhava diariamente ao meu pai. E é amiga!
De um lado a confiança na amizade e de outro tentava imaginar como impor diagnóstico a um médico. Da forma que José Serra se impôs ao Heródoto Barbeiro quando o jornalista questionou a exorbitância cobrada nos pedágios do estado?
Amanheci a terça-feira no portão da entrada da Santa Casa que a amiga indicou ser a utilizada pelo médico, pois sabia que uma vez lá dentro teria de contar com a eventualidade de encontrá-lo no fumódromo e não sabia dos hábitos tabagistas daquele que acompanhara as internações de meu pai.
Dei a incrível sorte de naquele dia encontrar um porteiro solidário que, por interesse humano praticamente extinto em Ubatuba e restrito às raríssimas almas caiçaras que ali ainda insistem em sobreviver, às 9 horas me acenou de dentro do vidro da guarita para avisar que às terças-feiras aquele médico dá plantão em uma cidade vizinha.
Eu estava perdido. Meu pai morreria!
Pelo telefone minha irmã (nessas alturas assumira em Sônia a irmã que nunca tive) me tranquiliza e pede que aguarde a ligação da assistente social do Hospital do Servidor. Não preciso esperar muito e a moça informa que uma ambulância já está a caminho para resgatar meu pai. Mas explicando que será levado para exames clínicos num laboratório conveniado, informa que se os resultados não justificarem internação será devolvido para à instituição de onde seria retirado.
Recordo as palavras da médica, mas impossível não confiar na experiência das amigas, afinal foram elas que me ajudaram desde o começo, há duas semanas. Por qual razão me enganariam? Jamais agiriam como políticos que pegam carona na popularidade daqueles a quem se opuseram. Isso foi um maneirismo de José Serra ao usar a imagem do bem sucedido mandado de Lula, mas minhas amigas não são demagogas.
Embarcamos na ambulância por volta das 20 horas. Mais tarde o vizinho e amigo também José, mas pessoa simples e honesta, contará que naquela sua última visita enquanto aguardávamos a ambulância meu pai sussurrou-lhe que fugiríamos num trem.
Durante toda a viagem ele falou incongruências engraçadas e infantis, obrigando a me curvar sobre sua boca para escutá-lo e manter um diálogo que o fizesse esquecer as correias que o prendiam à maca: “- Alguém fez coisa muito errada em meu nome.” “- Por que pai?” “- Se não, não me levariam nesse trem amarrado desse jeito!”
Era 1 hora da manhã do dia 11 de abril quando demos entrada à Clínica Clemford, em Santos. Na recepção, o enfermeiro que nos acompanhara na viagem relatou que encontrara meu pai colocado numa poltrona totalmente inapropriada. Tentei explicar que fora para evitar que caísse e retrucou afirmando ser muito simples e fácil improvisar uma grade em qualquer cama convencional.
Cansado, retornei à entrada da clínica na tentativa de reconhecer em que ponto da cidade de Santos estava. Periferia, à margem da saída para São Paulo. O porteiro me contou que na noite anterior mataram um policial na esquina, em frente à uma casa de shows funk. Comentei qualquer coisa sobre a possibilidade de guerra entre as policias civil e militar, conforme uma séria de reportagens da TV BAND. O rapaz comentou algo sobre o PCC e lembrei o sequestro do estado mais risco da federação no governo anterior de Geraldo Alckmin. Consequentemente também lembrei do seu apoio político a um líder da mesma facção, conforme documentado nestas imagens: www.youtube.com/watch?v=EjQu-ouQZOc
Impossível dormir naquela noite. Aguardando a confirmação da transferência de meu pai ao Hospital do Servidor, passei o tempo lucubrando sobre a inconsequência de um eleitorado que insiste em manter os mesmo podres poderes apesar do escândalo dos sanguessugas, da máfia das ambulâncias, do Daniel e da Verônica Dantas, da privataria, do Cachoeira, da Vila Pinheirinho, do Naji Nahas, da invasão da USP pela PM, etc., etc., etc…
Sem dúvida tem razão o amigo que me escreve lembrando que a situação vivida por meu pai reflete um sistema de saúde pública em degradação muito antes do governo tucano, mas o que ora me espanta não são as progressões e os retrocessos dos atendimentos às inúmeras mazelas promovidas ao longo de décadas de governos de políticos inconsequentes. No momento o que mais me preocupa são as consequências, as influências do péssimo comportamento desses políticos na degradação do comportamento do cidadão brasileiro, do ser humano de nacionalidade brasileira.
Naquela noite conclui que muitas vezes a inconsequência é tão inocente, tão desprovida de maus propósitos ou intenções que o próprio inconsequente recorre a um mito, como o da Maldição de Cunhambebe, para explicar o que não consegue admitir em si. Durante anos desculpei minhas inconsequências alegando um pretenso atavismo italiano: “deu os cinco minutos!”. Foi a sabedoria de uma japonesa que me alertou de que consumiria toda minha vida em sucessivos 5 minutos de inconsequências.
Quando se trata de política, inocente ou não, o inconsequente sempre será a vítima de si próprio. Mas não o único, conforme pude constatar no início da tarde do dia seguinte, 12 de abril, quando após uma bateria de exames o diretor da clínica adentra o quarto em que nos alojaram para anunciar que de acordo com os resultados daqueles exames, como já anunciado pelos médicos de Ubatuba, não havia qualquer motivo para meu pai ser encaminhado a internação.
Balbuciei perguntando sobre as plaquetas e estranhou. Problema algum com plaquestas, apenas leve anemia provocada por recente insuficiência alimentar, provavelmente devido ao estado de semi-inconsciência. Insisti: “- E o coração inchado? A severa infecção urinária?”
Olhou-me desconfiado e interpretando erroneamente minha ansiedade explicou que a clínica seria ressarcida pelo transporte e exames de meu pai independente de indicação para internação ou não. E que seria falta de ética pretender expor uma pessoa saudável aos riscos de contaminação hospitalar. O coração estava em dimensão naturalmente diferente de quando tinha 50 anos, como então já teria sido diferente de quando tivera 25. A progressão do tratamento à infecção foi considerado satisfatória e podendo ter continuidade em qualquer ambiente em que o acomodasse. Por fim, encaminharia meu pai para o lugar de onde veio.
Apesar de envergonhado, pergunto pela possibilidade de aguardarmos mais quatro dias, explicando que então minha irmã confirmaria a internação de meu pai numa clínica geriátrica em Guarulhos e evitaríamos submetê-lo a outra viagem. Concordou com apenas mais uma noite, lembrando que pela natureza daquele estabelecimento não tinham sequer como me oferecer um lugar para tomar banho. Só então me dei conta que deveria estar fedendo ao suor do calor de Santos por tantas caminhadas até o telefone público na distante esquina da quadra, aonde novamente me dirigi ligando a cobrar para a Sônia, pedindo que avisasse ao pessoal do lar de idosos de Ubatuba sobre nosso retorno.
Fiquei de confirmar depois e retornei ao quarto. Num momento meu pai faz menção de levantar da cama e o contenho: “- Mas quero ir ao banheiro, filho!” Expliquei que não podia, Não compreendeu o motivo e tive de lembrá-lo que não podia andar. Perguntou a razão e contei que estava provido de fralda geriátrica. Espantou-se: “- Então estou assim?” Como desde então nunca mais tentou sair da cama, conclui que não caíra por sonhar que nadava, mas apenas por não saber que não podia andar.
Foi quando comecei a tentar imaginar o que ocorrera com minhas amigas. Precipitação? Falta de percepção? Excesso de zelo? Ausência? Descontrole?
Percebendo-me preocupado e sem saber o real motivo, o pai informa ter um dinheirinho guardado no banco de sua poupança. Expliquei-lhe todas as providências que tomara por suas pequenas economias. Comentou e concordou com tudo, me agradecendo.
A caminho do telefone público para confirmar a transmissão da notícia de nosso retorno, é que me dei conta de sua vertiginosa recuperação intelectual e até mesmo da voz. Apesar de não terem lhe administrado nenhum remédio, em menos de 24 horas já não tinha aquela expressão abobada, sua voz era firme e até lembrava o banco onde mantinha conta poupança!
Surpresa ainda maior me deu Sônia pelo telefone: a instituição de Ubatuba dizia que a vaga fora ocupada.
Depois de imaginar as primeiras providências a serem tomadas para acomodar meu pai na sala de sua casa, de onde poderia melhor vigiá-lo estando na cozinha, pretendi ligar à Sônia para que telefonasse ao vizinho Zé. Ele ficou com as chaves da casa e queria dizer à Sônia que lhe telefonasse pedindo o favor de retirar os móveis, pois dependeríamos da disponibilidade de ambulância e não havia como prever se chegaríamos de dia ou já noite. Eram cerca de 17:30 quando quis sair para esse telefonema e estranhei a prematura posição de meia porta a encobrir a passagem que me foi impedida com a advertência de toque de recolher ordenado pelos traficantes, em represália à represália da polícia por aquela morte que o porteiro relatou na noite anterior.
Sem dormir mais uma noite, ouvia os plantonistas contabilizando “- Já morreram 3!”. Logo depois: “- Mais dois em tal rua”. “- Outro em tal lugar”. Quando chegaram a 6 consegui encontrar um tapa-ouvido.
Em outro momento confiro os laudos dos exames médicos da Santa Casa e que me foram entregues ao sairmos do lar de idosos de Ubatuba. Não pretendia entendê-los, mas precisava passar o tempo de alguma forma e descubro que ao lado da coluna das porcentagens e medidas aferidas, há outra de valores de referência.
Posso imaginar que se cruzadas as pequenas diferenças dos resultados de alguns poucos exames aos valores de referência para indivíduos do sexo masculino da idade de meu pai, possam significar alguma apreensão, mas no tão alardeado item das plaquetas em todos os laudos a correspondência se mantém na média indicada. Comecei a desconfiar que pela forma que manipulou esta informação, minha amiga tem forte talento para jornalista dos órgãos de imprensa que apoiam os políticos tucanos.
Enfim, quando chegou a hora apropriada para ligar para a Sônia, minha irmã já havia conseguido uma casa de acolhimento de pessoas idosas no seu bairro. O valor da mensalidade acima dos rendimentos de meu pai, mas a única solução para o momento.
Chegamos ali cerca de 9 horas da noite. Antes de entrarmos Sônia me alertou da simplicidade do lugar que em verdade me pareceu soturno para não dizer tenebroso. Despedimo-nos de meu pai e mesmo confessando à irmã a má impressão que me provocou, considerei que talvez fosse preconceito, pois o importante mesmo seria as pessoas serem carinhosas ou ao menos não serem grosseiras.
Na visita do dia seguinte logo cedo, a alegria dos demais anciãos ali alojados me deixou mais tranquilizado, mas voltei à Ubatuba amargurado, triste. De uma tristeza que ainda me acompanhará por muito tempo e tento amenizar com este relato e análise.
Não estou triste por meu pai. Sônia lamentou por termos sido obrigados a despender mais do dobro do dinheiro com que pagaríamos a internação de meu pai em Guarulhos, na segunda-feira, 16 de abril. Não conheci, mas ela se empolgou com as instalações e equipamentos daquela instituição que nos cobraria uma mensalidade correspondente a 70% da pensão previdenciária recebida pelo pai. Sem dúvida será bastante difícil e complicado mantê-lo onde está, mas na volta de Ubatuba fui entregar que lá fui buscar e então tive oportunidade de conhecer melhor o pessoal que ali trabalha e administra: duas irmãs enfermeiras. O marido de uma das enfermeiras, enorme e forte, é técnico de enfermagem. Todos trabalham em hospitais e se revezam ali na casa.
É a casa da família da irmã casada, com seus filhos e outra irmã responsável pela cozinha. Todos maranhenses. Há também a participação diária de outra enfermeira: uma baiana.
Recebem orientações de uma nutricionista e visitas periódicas de médicos. Um dos médicos solicitou tomografia da cabeça de meu pai, pois sua acelerada recuperação desde que ali chegou dá a impressão de que não foi acometido por AVC. Afora a impossibilidade de movimentação e sustentação de seus quadris, não há qualquer outra sequela. Fala normalmente, tem força e precisão no movimento dos braços e das pernas. Por vezes a memória se confunde como sempre lhe foi comum acontecer, mas se dá conta e ri de si próprio. Durante o dia aboliu as fraldas geriátricas, pedindo para ser levado ao banheiro sempre quando sente necessidade.
Ali, é o “seô Delcio”, mas naquele gostoso sotaque nordestino.
Talvez estivesse triste pelas minhas amigas, mas as conheço e sei que não seriam inconsequentes e mesquinhas ao ponto de não considerarem, sequer, que paguei para meu pai permanecer ali na instituição que uma delas dirige, até o dia 20 de Abril. Se nos expulsaram dez dias antes, algum motivo muito maior deve ter havido e não acredito que seja a Maldição de Cunhambebe.
Estou convencido de que Anchieta ou Serra, a maldição partiu mesmo foi de um José.