“As violências, enquanto manifestam a essência da polícia, fazem emergir a arquitetura política, que captura e expulsa, inclui e exclui, na qual, em suma, a discriminação já está sempre latente. A pandemia tornou ainda mais exclusiva a imunização para quem está dentro e implacável a exposição para quem está fora. Assim, pode-se dizer que a polícia revela a imunopolítica no espaço público”, escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana, em artigo publicado por Il Manifesto, 13-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
A violência perpetrada por um policial em Vicenza, Itália, traz à memória uma série de episódios semelhantes. E suscita indignação justamente porque não parece um simples acidente, mas um gesto revelador. Fala-se de “excessos de força“, de pequenos “abusos”. A ideia generalizada é que as forças da ordem consertem as coisas. Na ação de controle, seria então inevitável uma falha, uma manobra exagerada. Mas é realmente assim? Trata-se de esporádicas anomalias dentro de um sistema correto? Ou a disfunção é sistemática e deixa entrever no fundo o próprio funcionamento de uma instituição sombria?
De um lado os negros e do outro os brancos, de um lado os pobres e de outro os ricos, de um lado os garantidos, os protegidos, os intocáveis, do outro os expostos, os excluídos, os corpos intrusivos e supérfluos. Não se trata de uma aplicação anômala, mas de um dispositivo destinado a definir a ordem política. A polícia traça limites, escolhe, discrimina, admite ao centro ou expulsa para as margens. Nesse sentido, parece enganosa aquela visão economicista que, na tarefa da polícia, vê apenas uma normalização voltada para aumentar a riqueza de poucos.
Pelo contrário, a questão da polícia inscreve-se na economia do espaço público, porque ali se decide o direito de pertencimento e de aparecimento: quem está autorizado a aceder, a circular livremente, a sentir-se em casa e quem, em vez disso, é identificado, intimidado, manado de volta à invisibilidade, se não mesmo trancado na prisão. O uso segregativo que a polícia faz do poder é inegável, uma forma de fortalecer mais ou menos brutalmente a supremacia de alguns – mas isso já não é racismo, xenofobia de Estado? – e para acentuar as diferenças, tornando-as conspícuas.
Isso não significa que a polícia seja ilegal. Mas que está legalmente autorizada a desempenhar funções extralegais. Não se limita a administrar o direito, mas estabelece seus limites a cada ocasião. Ela detém não somente o monopólio da violência interpretativa, porque redefine as normas de sua própria ação e, ao apelar para a segurança, aumenta seu domínio sobre a vida dos indivíduos.
Justamente por isso as violências da polícia não são anomalias, mas revelam o fundo escuro dessa instituição. São como instantâneos que capturam a polícia enquanto conquista espaço, adquire poder sobre os corpos, examina e experiencia uma nova legalidade, redefine os limites do possível.
A cena em Vicenza, como infelizmente outras anteriores, é desconcertante, pois é o indício de um poder autoritário, a prova de um Estado de polícia no Estado de direito. Sob este aspecto as violências, enquanto manifestam a essência da polícia, fazem emergir a arquitetura política, que captura e expulsa, inclui e exclui, na qual, em suma, a discriminação já está sempre latente. A pandemia tornou ainda mais exclusiva a imunização para quem está dentro e implacável a exposição para quem está fora. Assim, pode-se dizer que a polícia revela a imunopolítica no espaço público.