Nota de repúdio à nova Política Nacional de Defesa

A América do Sul foi considerada área livre de conflitos em 2008, período em que a região experimentava ascensão das forças populares e democráticas e os esforços para a superação de um quadro de rivalidade que havia tomado conta das relações entre os países sul-americanos no início dos anos 1990.

Os últimos anos se caracterizaram por mecanismos de integração regional, de cooperação estratégica e de resolução de contenciosos, como a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). A UNASUL se constituiu um espaço importante para a resolução de contenciosos, como em várias crises regionais, como nas tensões entre Colômbia e Venezuela, na crise interna do Equador e na Bolívia, que esteve à beira de uma guerra civil em 2008. Tais mecanismos foram severamente enfraquecidos e esvaziados nos últimos anos, especialmente a partir dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

A integração da América do Sul se insere em um contexto mais amplo da América Latina e Caribe como um fundamento da Constituição Federal de 1988. O viés belicoso da nova PND contraria a Constituição brasileira, especialmente em seu artigo 4°, afrontando os princípios de autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre Estados, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos, que sempre nortearam a política externa brasileira.

Na esteira dos processos de redemocratização e superação das ditaduras dos países sul-americanos, a implantação dos Ministérios da Defesa em cada país reconheceu a natureza civil da elaboração e coordenação estratégica das Políticas de Defesa Nacional. A defesa da América do Sul está baseada no respeito às normas internacionais e tem foco na convivência pacífica e cooperativa, especialmente no que diz respeito à rejeição conjunta às armas nucleares.

No seu Capítulo “O Ambiente Internacional”, o documento, ao examinar os aspectos mais amplos do atual quadro sul-americano, afirma que o Brasil “poderá ver-se motivado a contribuir para a solução de eventuais controvérsias ou mesmo para defender seus interesses” evidenciando um grave viés belicoso. A retórica é a mesma presente em períodos de tensões regionais, como o conflito do canal de Beagle, em 1978, quando os regimes militares na Argentina e no Chile, reafirmando os chamados “interesses nacionais” quase levaram os dois países à guerra.

Em relação à Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) – bloco composto por 21 países africanos banhados pelo Oceano Atlântico e três da América do Sul – a PND se soma ao enfraquecimento sistemático da cooperação brasileira em diversas frentes, sobretudo com o fechamento de diversas embaixadas no continente africano. Um dos objetivos principais da cooperação sul-Atlântica é evitar a proliferação de armas nucleares e reduzir – ou eliminar completamente – a presença militar de forças alheias à região, algo pouco citado no documento.

Entendemos que a nova PND não é um documento que formula a política externa brasileira, apenas orienta a ação das Forças Armadas em um contexto mais amplo. A ação militar só se justifica para a defesa do país de uma agressão externa e no lastro da ação diplomática, essa sim, garantidora da paz e da cooperação internacional.

O problema é que a política externa do atual governo já mostrou por diversas vezes sua opção pelo acirramento de tensões, fruto do alinhamento automático à política imperialista de Trump.

Isto posto, o anúncio da América do Sul como área de conflitos e a disponibilidade de retaliação contida na nova Política de Defesa Nacional, ajustado ao posicionamento da belicosa política externa brasileira, se constitui em um perigo à paz e à solidariedade internacional.

Como entidade que valoriza a paz e a solidariedade entre os povos e os princípios estabelecidos pela Carta das Nações Unidas e todos os demais tratados derivados desta, o Cebrapaz vem a público condenar com veemência o precedente aberto pela nova PND, que pode resultar em um conflito bélico sem precedentes para a América do Sul, resultando em um verdadeiro desastre para a paz em âmbito regional e global.

Ademais, o Cebrapaz reafirma o repúdio à interferência do governo de Donald Trump em assuntos internos da Venezuela e se solidariza com seu povo, reafirmando o compromisso em denunciar toda e qualquer tentativa de sabotar a paz, a democracia e a convivência pacífica entre os povos.

A Direção Nacional do Cebrapaz
São Paulo, 21 de julho de 2020

 

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