Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
A vida de cada um dos seres mortais apresenta uma grande fragilidade, o maior bem e dádiva não é dada pelo Senhor tempo sem limites, o fio que tece o caminho dos seres viventes é fino e frágil, qualquer momento pode ser o último. Em contrapartida, muitos sentimentos são intensos e fortes, são capazes de ligar um ser humano ao outro. Entre os sentimentos com essa força, está o sentimento de amor, para os que ainda são privilegiados diante do Senhor tempo, o amor pelo outro continua, embora o tempo tire o ser amado da presença, da vida, mas o espírito resiste, quer de volta, mas o Senhor tempo não atende, em todos espaços há busca em direção da pessoa ou das pessoas amadas que o tempo levou. Desse modo, o humano submetido a ferocidade do limite do tempo e com o desejo de ver aqueles que ama, os filhos, filhas, pais, amores sofre, pois o que está a sua volta é a lembrança, que tende misturar sentimentos de dor, devida a perda, com o sentimento de alegria, por um dia ter amado alguém tão intensamente, que se não tivesse, a vida dentro dos limites impostas pelo Senhor tempo não teria sentido.
A dor da perda é atroz, subjuga o corpo e o espírito com tamanha força que arrebata o ser para longe, retira a potência de querer, de desejar. Nesse momento, o tudo nada importa, pois o que era importante, era a vida da ou das pessoas amadas, mas os viventes continuam, às vezes não querem mais e, por uma força irreconhecível, precisam, o viajante humano levanta a cabeça, por vezes apoiado por outros, para continuar enquanto o Senhor tempo permitir.
Todos estavam tristes, lamentavam, Inaiê soube da notícia alguns minutos antes de ir em direção da irmã, o tempo não foi generoso, a perda da filha foi inevitável, as esperanças foram findadas. O Senhor tempo levou para si um ser efêmero, como diriam os gregos, afinal o humano é um ser de um dia, a campanha para salvar a vida da menina já não tinha sentido, tudo estava terminado. Deméter gritava, a dor propagava por todo corpo, seu peito estava inflamado pela dor, não tinha como consolar. Inaiê olhava para a irmã e sofria junto, na mesma medida que a indignação invadia todo o seu ser, as pessoas em sua volta buscavam consolar, uma desconhecida de Inaiê disse:
– Força, foi vontade de Deus, sobre o destino humano nada sabemos, temos que aprender aceitar.
Nesse momento um sentimento de cólera subiu pelo âmago e Inaiê gritou:
– Aceitar e acreditar que foi vontade de um ser superior que tirou a vida de uma menina?! Vocês são hipócritas, a menina teria sido salva se tivesse condições de pagar a cirurgia, nós conseguimos apenas R$ 200.000,00, não o foi suficiente, agora dizer que é vontade de Deus, a vida dessa menina não foi tirada pela vontade de um ser divino, mas pela falta de um sentimento de humanidade. Tem que ser muito hipócrita para afirmar que Deus quis assim!!!
Ulisses pegou a irmã pelo braço e a levou para fora, precisava acalmar seu o ânimo, foi quando disse a ela:
– Não leve a mal as pessoas, pois elas têm a boa vontade de buscar ajudar, talvez as razões não sejam as certas, nesse momento não há palavras adequadas, mas a intenção que está por detrás é nobre. Sobre os limites e o destino humano, muitos povos buscaram a sua maneira explicar esse fenômeno, que é natural e social, pois criamos valores, formas de tratar essa situação tão difícil, de várias maneiras. Na antiguidade grega, havia uma forma de explicar, que era através do mito de Moira, que na obra de Homero, a Ilíada, aparece como uma divindade cujas leis todos os seres, incluindo humanos e deuses estavam submetidos, poderiam ser comparados com seres divinos ligados ao próprio destino. Já na Odisseia, outra grande obra de Homero, temos a pluralidade dessa função, através das figuras das fiadeiras, passamos falar das Moiras, sendo três, elas seriam responsável pelo fio, pelo tecer da vida, muitos acreditavam que essa forma estava ligada com o próprio surgimento da vida, na sua ligação com cordão umbilical, por ser frágil e condição da vida, que em um determinado momento seria cortado. Uma das Moiras, tinha como nome de Ploto, que no grego significa fiar, ela seria responsável por segurar um fuso, utensílio usado para tecer, fiar, por isso ela era considerada como a deusa dos nascimentos e dos partos. A segunda deusa, era Láquesis, esse nome significa em grego sortear. Quando essa deusa pegava um dos fios, seria como pegar uma parte da vida de uma das pessoas, fazendo tomar rumos diferentes do que aconteceriam, podendo levar ao sucesso e aos infortúnios. A terceira Moira, era chamada de Átropos, que pode significar afastar, não voltar, sua função era temida, inculcava medo nos gregos, uma das suas representações era uma mulher segurando uma tesoura, era ela que findava, cortava o fio da vida dos seres. Através desse mito, os gregos buscavam explicar o destino, a vida, os acontecimentos e a morte, tratava-se de uma representação cultural. Do mesmo modo, temos a nossas representações na atualidade.
Inaiê olhou para o irmão, estava inconformada e disse para ele:
– O que estamos vendo aqui não é o desfecho de uma obra do destino ou da vontade de Deus, mas sim, o fato das pessoas não se esforçarem para saírem do seu próprio umbigo, aprendemos não ser solidários, vejo que aqui tem uma demonstração de como o poder pode acalmar e fazer as pessoas silenciarem, ficando dóceis.
Ulisses – Como? O que uma coisa tem a ver com a outra?
Inaiê – Para você entender é importante lembrar de um filósofo chamado Michel Foucault (1926-1984).
Ulisses- Nessa situação você vai querer falar de filosofia?
Inaiê – E você? Nessa situação vai querer me dar explicações reducionistas sobre a vontade ou o destino?
Ulisses- Verdade! Sendo assim, continue!
Inaiê – Esse pensador trouxe várias discussões bem interessantes sobre a lógica do poder. Para entender, devemos buscar definir o que é, de modo sucinto, seria possível afirmar que é a capacidade de imputar a nossa vontade sobre outro ou ser capaz de produzir determinados efeitos, quando temos a competência de influenciar muitos dizemos que temos poder. O Estado exerce uma forma de poder sobre os indivíduos, se é uma democracia dizemos que o poder é legítimo se representar a vontade das pessoas, o que pode ser questionável na medida que elas podem ser influenciadas, o que ocorre não só por parte do estadista, mas nas relações dos indivíduos na sociedade. A partir disso, o poder pode ser repressivo, nesse caso, trata-se da força que o estado, uma empresa ou alguém exerce sobre outro obrigando. No entanto, o poder pode ser produtivo.
Ulisses – Como? Não entendi!
Inaiê – Através do discurso, temos uma construção de verdade, nessa se revela no cotidiano das pessoas uma relação de poder, todo discurso tem uma organização, uma forma de influenciar os outros, trata-se de um processo argumentativo, onde a verdade passa ser produzida. Dessa forma, quando vemos no discurso mitológico, nele está posta uma produção de verdade, que fazia parte do cotidiano das pessoas, tendo uma forma produtiva de poder, uma capacidade de influenciar os outros. Por isso, não posso aceitar a ideia que a vontade de Deus que determinou o destino da vida da minha sobrinha, independente da fé, a escolha de conceder o tratamento é consequente de uma relação social, implicada de poder, o discurso só legitima uma forma de organizar e me deixar mais dócil para a sociedade.
Ulisses – Nossa! Isso é complicado, se pensar dessa forma, grande parte do meu discurso implica em uma relação de poder.
Inaiê – Sim, sem dúvida. Aliás, para Foucault o poder também tem uma técnica própria de controle, que não ocorre apenas com a ameaça da prisão ou da tortura, mas ocorre em vários espaços sociais, como a escola, o exército, a fábrica. Em todos esses lugares, encontramos formas de organização, que ocorre pela disciplina, tornando os corpos dos indivíduos dóceis e obedientes, temos, também, um processo de individualização, classificação. É importante destacar que o poder disciplinar, não precisa necessariamente de ambientes fechados, é necessário fazer mecanismo de vigilâncias e uma burocracia para ensinar as pessoas a organizar o tempo, são estabelecidas formas de organização.
Ulisses- Nesse sentido, a vigilância parece ser uma forma muito importante de manutenção de controle, uma empresa não precisa que o funcionário vá até o seu local, pode buscar outros mecanismos para disciplinar a produção, submeter a uma ordem, a uma organização.
Inaiê- Nesse universo temos uma ação sobre o corpo, adestrando os gestos, o comportamento, a normalização ocorre até mesmo em relação ao prazer, temos formas de avaliar desempenho, de marcar presença. Não é preciso estar no cárcere para sofrer a influência do poder! O discurso e a produção de verdade me incomodam, pois fazem aceitar as injustiças que estão a minha volta, minha sobrinha é apenas uma vítima. O que é visto como normal tende ser uma forma muito constante de disciplina e de poder, quem foge da normalidade sofre com as consequências, com repressão de até mesmo dos seus pares, não necessitando somente do Estado.
Roberto – Tenho minhas dúvidas se você entendeu Foucault!
Nesse momento, Inaiê ouviu um grito enorme de alegria, que era tão forte que invadiu seu pesadelo, seu sonho, e então, acordou. Ela estava trêmula, pois sonhara com a morte da sobrinha. Deméter percebeu o estado de Inaiê, mas não se conteve e falou:
– A Moira, a dona do supermercado conseguiu ajuda jurídica e ganhamos uma liminar, Perséfone fará a cirurgia, no final do mês, o fio da vida da minha filha não será cortado, temos esperança.
Nesse momento, as duas irmãs se abraçaram com uma alegria intensa, era um dos dias mais felizes das duas.
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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.