Por Dr. Daud Abdullah.
O projeto de Israel de anexar cerca de 40% da Cisjordânia ocupada pende na corda bamba. Sem a tão esperada luz verde do governo Trump, permanece o impasse. Após a péssima reação e o uso político da pandemia de coronavírus e os protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), pesquisas eleitorais recentes mostram que o presidente continua atrás de seu adversário democrata Joe Biden. Um fiasco da política externa na Palestina pode rapidamente acabar com o sonho de um segundo mandato na Casa Branca. Isso explica porque Trump arrasta tantos os pés sobre tão planejada anexação.
Se os eventos nos Estados Unidos expuseram a imagem de um presidente impulsionado por forças obscuras de discriminação e desigualdade, o apoio à política de anexação israelense certamente voltará a enfatizá-la. Ao endossar o plano colonial de Israel, Trump contestou, quase involuntariamente, seus antigos slogans de campanha “America First” e “Make America Great Again” – isto é, a pauta ultranacionalista e ultraconservadora.
Como devolver um país à sua suposta excelência quando é incapaz de defender seus valores fundamentais diante de demandas absurdas de um mero protetorado?
O desafio confrontado por Trump não é particular à sua administração: trata-se de algo que incomoda sucessivos governos americanos desde o final do século XIX. Os Estados Unidos não possuíam caráter político para defender abertamente o princípio que proíbe a aquisição de terras à força. E mesmo quando o faziam, sempre fora aplicado de modo parcial e seletivo.
Quando quinze estados da América Latina adotaram este mesmo princípio, em abril de 1890, na Primeira Conferência Internacional dos Estados Americanos, os Estados Unidos votaram contra a resolução. Sem dúvida, na ocasião, as ambições hegemônicas de Washington sobre toda a região motivaram tal decisão.
Avancemos então para 1938 e a anexação da Áustria pela Alemanha, seguida por invasões a outros dez países europeus. Desta vez, conquista e anexação tornaram-se tão inaceitáveis ??que Estados Unidos e Grã-Bretanha decidiram lançar a Carta do Atlântico.
Declaravam “anseio por não ver mudanças territoriais que não correspondam aos desejos livremente expressos dos povos interessados” e “respeito ao direito de todos os povos para escolher a forma de governo sob a qual viverão, além de desejar ver os direitos soberanos e o autonomia restaurados aos povos forçosamente privados de tais valores”.
Após o derramamento de sangue da Segunda Guerra Mundial, o princípio da inadmissibilidade se tornou uma pedra angular do direito e das relações internacionais. A Organização das Nações Unidas (ONU) – para todos os efeitos, um clube vencedor – afirmou em seu estatuto:
Todos os Membros devem abster-se em suas relações internacionais da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma inconsistente com os objetivos das Nações Unidas.
Exceção israelense
Hoje, todos esses princípios são atirados pela janela diante da ameaça de Israel de anexar grande parte da Cisjordânia ocupada.
Um anúncio de página inteira publicado em jornais israelenses, em abril último, assinado por 220 generais, almirantes e líderes da reserva do Mossad, Shin Bet e Polícia de Israel até agora não conseguiu impedir Benyamin Netanyahu de avançar em seu plano de anexação.
Anteriormente em junho, 47 especialistas em direitos humanos da ONU fizeram um apelo à comunidade internacional que se opusesse ao plano. Alertaram para as lições do passado; críticas sem consequências muitas vezes podem ter consequências devastadoras. A Europa poderia ter poupado os assassinatos em massa e a destruição arbitrária se não aplacasse a anexação da Áustria pela Alemanha.
Caso os aliados ocidentais de Israel não consigam impedir a anexação iminente do restante da Palestina, o Oriente Médio poderá testemunhar uma enorme catástrofe. Michael Lynk, relator especial da ONU para direitos humanos nos territórios palestinos, não poderia ter sido mais claro quando alertou que, sob nenhuma circunstância, uma potência ocupante (incluindo Israel) pode “adquirir o direito de conquistar, anexar ou obter título de soberania sobre qualquer parte do território sob ocupação.”
Essa situação terrível reforçou a percepção palestina de que a liberdade não lhes será dada por Estados Unidos e aliados ocidentais. Terá de ser conquistada.
Em algum momento, passou pela cabeça de Macron que o povo palestino é submetido à mais longa ocupação militar da história moderna e que também tem o direito a resistir? Evidente, não. Embora certos direitos sejam inalienáveis a certas pessoas, devem ser somente seletivos e parciais, segundo outras.Onde quer que residam hoje, palestinos devem ter observado com perplexidade a visita da semana passada do Presidente da França Emmanuel Macron a Londres. O líder francês decidiu enfrentar a pandemia de coronavírus para comemorar o 80º aniversário do apelo do general Charles de Gaulle à resistência francesa para libertar o país das garras do poder ocupante. A ocupação alemã já estava em segundo mês.
Mesmo ao se aproximar a hora decisiva, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), as Nações Unidas e a União Europeia continuam a titubear sobre o que fazer com Israel. Todos estes grupos, como Netanyahu, também aguardam a luz verde de Washington. Os céticos no Oriente Médio pensam diferente: temem que os hesitantes e espectadores aguardam mais uma rodada de caos para que suas indústrias e bancos lucrem com a venda de armas e a reconstrução de países devastados. Quanto às mortes inevitáveis e ao sofrimento humano: mero efeito colateral.
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