Por Catarina Barbosa.
Beatriz Launé tem 18 anos. A mãe era doméstica, o pai trabalhava fazendo bico. Até sexta-feira da semana passada, 1º de maio, Beatriz tinha pai e mãe, mas nessa segunda-feira (5) ela ficou órfã. O pai morreu no sábado (2) e a mãe na segunda, em decorrência da covid-19.
No Pará, a dor de Beatriz pode ser a de mais de milhares de filhas e filhos que precisarão ver a suas mães arriscarem a vida ao saírem de casa para limpar, lavar e cozinhar na casa de outra pessoa. O governador de Helder Barbalho (MDB) estabeleceu que o trabalho de empregada doméstica é considerado um serviço essencial durante o lockdown, que começou a vigorar nesta quinta-feira (7).
Sobre a determinação do governo que garante o serviço doméstico na quarentena, Beatriz lamenta, porque considera que as autoridades usam de uma fragilidade das famílias para exporem elas ao risco.
“É muito errado, porque as pessoas de classe extremamente baixa, a mamãe e o papai precisam trabalhar para comprar comida para casa, para a gente pode ser alimentar, mas eu não acho que seja necessário para as pessoas que estão tendo as casas limpas. Eu sei que assim como ela várias mães, filhas, precisam trabalhar para se sustentar, mas não correndo esse risco”, diz.
Lavar a sua própria louça, lavar roupa, limpar a casa. Para o governo do Pará é essencial que as pessoas sejam servidas mesmo durante o lockdown. O advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PA, José Maria Vieira explica que há uma incompatibilidade no decreto do governo do Estado.
“A medida provisória que regula as atividades essenciais ela não estipula a atividade doméstica como atividade essencial. O decreto do governador vem e acrescenta uma categoria de trabalho que não está prevista na MP. Então, o governador do Estado está inovando, está colocando uma coisa que não está lá do ponto de vista nacional. Isso é uma pena porque além de uma incompatibilidade com a MP é uma questão histórica e moral sobre isso, porque é impressionante como a gente ainda não se desvencilhou dessa memória escravocrata”, diz ele.
A medida do governo estadual vai contra o entendimento do governo federal. Nacionalmente o serviço doméstico não é considerado essencial. Isso quer dizer que a atividade não consta na lei federal criada em fevereiro deste ano no início da pandemia (Lei nº 13.979) e segue não constando nos decretos posteriores da União.
Segundo dados do Dieese-PA, cerca de 200 mil trabalhadores domésticos que terão que continuar indo às ruas em meio à proliferação do novo coronavírus.
A decisão foi acompanhada por 10 prefeituras incluindo a capital Belém, de acordo com o prefeito Zenaldo Coutinho (PSDB).
“A decisão de incluir alguns casos excepcionais de serviço doméstico como essencial, no decreto de lockdown, não é solitária minha. Foi tomada em conjunto pelo governo e mais 10 prefeituras do estado.
A dor da perda
Aos 47 anos, Socorro Freitas, mãe de Beatriz, trabalhava em quatro “casas de família”, uma no Tenoné, bairro em que ela mora na periferia de Belém, e em outras três casas no centro da cidade. Com a pandemia, das quatro casas onde ela fazia diária, apenas uma manteve o pagamento sem a necessidade de comparecimento ao trabalho. Nas outras, ela teve que seguir a rotina normal para garantir o sustento.
Freitas saía de casa todos os dias, por volta da seis horas da madrugada e retornava às oito horas da noite. O marido, Nazareno Launé, 48, para proteger a esposa, ia buscá-la de moto. Não foi suficiente.
Na semana passada ambos começaram a apresentar os sintomas do novo coronavírus: febre, cansaço e dor no corpo, inclusive, Beatriz.
Eles procuraram a Policlínica do Pará, localizada na Universidade Estadual do Pará (UEPA), no dia 27 de abril. Esperaram mais de quatro horas para ser atendidos. Quando receberam atendimento além de não serem testados para a covid-19, foram mandados para casa com remédios, porque os sintomas eram “leves”.
Na sexta-feira (1) – mesmo fazendo toda a medicação –, por volta de uma hora da madrugada, o pai de Beatriz a acordou: – Chama teu tio, preciso de um médico. Beatriz lembra que os lábios do pai estavam roxos, o que indica uma baixa oxigenação no sangue. Essa foi a última vez que ela o viu.
Da internação no Hospital Abelardo Santos na madrugada da sexta-feira (1), só veio a notícia da sua morte no dia seguinte. Esse período foi acompanhado de um silêncio absoluto: o hospital, autoridades, ninguém deu notícias para a família.
O tio – que o levou até o hospital – só conseguiu saber, no sábado, que ele tinha morrido, porque trabalha na cozinha do Abelardo Santos. Até mesmo os enfermeiros que medicaram Seu Nazareno no dia anterior não lembravam dele tamanha é a lotação no local.
Ao saber que o pai tinha falecido, por volta das 17h, a mãe disse para Beatriz: – Me leva para o hospital, porque não estou conseguindo respirar. Foi a segunda vez, em menos de uma semana, que Beatriz olharia para um parente seu pela última vez. A mãe deu entrada no Hospital Abelardo Santos, por volta das 18h.
“Ela falou assim: – Minha filha liga para alguém vir me buscar, porque eu estou me sentindo muito cansada e eu preciso ir logo para eu ficar bem e cuidar de você. Quando ela chegou lá, tinha muita gente, não estava conseguindo ter atendimento, o que ajudou foi que a moça que levou ela, conhecia um dos médicos, que tinha estudado com ela”.
Por volta das três da manhã, Socorro Freitas conseguiu um leito e mandou um áudio para a filha dizendo que não era para ela ficar triste, porque ela estava melhorando, mas se sentia cansada e não conseguia falar muito.
“Eu fiquei sem ter notícias dela. Ficamos mais de 12 horas sem informação. De manhã eu acordei e não tinha dormido direito e falaram que ela tinha ido para a UTI. Aí eu fiquei muito desesperada, só que a minha tia, que é terapeuta ocupacional, disse que na UTI era melhor, porque ela ia ser atendida o tempo todo, só que não foi isso que aconteceu, porque se tivesse acontecido, ela não teria falecido”, diz a filha.
Na segunda, às 16h a informação de que de a mãe tinha morrido. Dona Socorro e Seu Nazareno, apesar de terem sido mandados para casa com diagnóstico de covid-19 não entram na estatística da Secretaria de Estado de Saúde (Sespa) como vítimas do novo coronavírus.
Na certidão de óbito consta que ambos falecerem de síndrome respiratória aguda. A filha afirma que ambos nunca tiveram problemas respiratórios.
O que é essencial?
Um dos argumentos utilizados tanto pelo governo do Estado quanto pelo prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB) é de que a medida trataria de cuidadores, ou seja, pessoas que trabalham no cuidado de idosos e crianças. O advogado explica que ao redigir um decreto há muito cuidado das partes envolvidas em assegurar o que está sendo dito.
“O nosso léxico, ele tem palavras para a atividade de cuidador que é: cuidador. Em nenhum momento cuidador se confunde com doméstico, não tem como. O governador, prefeito são pessoas esclarecidas são bem letrados, conhecem muito bem o português não há hipótese de confusão quanto a isso. Quando a gente escreve um decreto, uma lei, uma carta, a gente sabe muito bem o que está querendo dizer, então, não adianta ter um decreto para explicar um decreto.
Nesta quinta-feira, 7, o governador do Estado, Helder Barbalho, após críticas ao decreto, alterou o item, agora diz-se o seguinte: “serviços doméstico quando imprescindíveis aos cuidados da criança, idoso, pessoa enferma ou incapaz, caracterizada pela ausência ou impossibilidade de que os cuidados sejam assumidos por pessoa residente no domicílio, devendo tal circunstância constar em declaração a ser emitida pelo contratante, acompanhada da carteira de trabalho quando for o caso.
Ou seja, o termo serviço doméstico, mesmo após críticas, continua fazendo parte do decreto.
A proteção aos patrões
“Prezados, no intuito de ajudar os amigos, diante do decreto de lockdown, fizemos essa declaração para os funcionários de casa poderem ir e vir normalmente para o trabalho. Caso precisem, ainda indico que, se forem carteira assinada, andem com a mesma comprovando o vínculo”.
Essa mensagem circula em diversos grupos de Whatsapp de Belém do Pará. O texto foi enviado junto com o documento que contém dados da empregada doméstica e do patrão a fim de resguardar o empregador.
Redigido pelo escritório de advocacia Potiguar e Lobato, o documento reforça a cultura de servidão do estado do Pará. O Brasil de Fato entrou em contato com o escritório por telefone e e-mail para obter uma resposta sobre o documento, mas não fomos respondidos.
Danila Cal, é doutora em comunicação e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). A autora do livro “Comunicação e Trabalho Infantil Doméstico: política, poder, resistências” (EDUFBA, 2016) ela afirma que, infelizmente, o decreto é coerente com costumes sociais e heranças culturais do estado do Pará.
Ela explica que além da herança escravocrata, o Pará tem um costume, que é a circulação de crianças, principalmente, crianças pobres. Essas crianças são trazidas para a capital para realizar trabalho doméstico na casa de outras pessoas. O fato está ligado a uma cultura da servidão e esse trabalho chamado de trabalho infantil doméstico, é executado em troca de benefícios como alimentação, moradia, acesso ao estudo.
Ao longo do tempo essa cultura de trazer crianças do interior para trabalhar como domésticos na capital vem mudando, mas as pessoas não abrem mão de ter alguém para cuidar da sua casa e dos seus filhos. Eu não estou querendo dizer que o trabalho doméstico profissional, realizado por mulheres adultas, ele não é um trabalho digno, não é isso, é um trabalho e precisa ter todas as suas normal respeitadas. Recentemente a gente teve uma mudança em relação a legislação, ao trabalho doméstico, que buscou equiparar alguns direitos com o de outros trabalhadores. Antes nem isso. Não havia direito a hora extra, nem regulamentação sobre os limites da jornada de trabalho, o pagamento de impostos, direitos trabalhistas.
Em primeiro de junho de 2015, a presidente Dilma Roussef regulamentou a emenda constitucional, conhecida como “PEC das Domésticas”, projeto que igualou os direitos dos trabalhadores domésticos aos dos demais trabalhadores urbanos e rurais.
Ainda assim, no Pará, há muitas brechas na forma como as empregadas domésticas são tratadas. Daniela afirma que o fato de o Pará ser o único estado em que o trabalho doméstico é considerado uma atividade essencial é a, justamente, o reflexo dessa cultura de servidão.
“O costume de sermos servidos que remonta não só a escravidão, mas também a um desdobramento dela, de certa forma, que é essa circulação de crianças pobres para realizar trabalho doméstico na casa de outras pessoas. Esse costume vem se transformando, mas hoje, aqui no Pará, muitas famílias fazem questão de ter a sua trabalhadora doméstica. Muitas vezes ela não é colocada nem como uma trabalhadora, ela é colocada uma propriedade daquela família e isso é muito complicado. A gente precisa encarar o trabalho doméstico como um trabalho, que tem sua legislação específica, que tem dignidade, que precisa ser realizado com todos os direitos das trabalhadoras domésticas respeitados”, diz.
A professora afirma que em um contexto de lockdown, o correto seria as trabalhadoras domésticas poderem realizar a quarentena com as suas famílias, isoladas e para isso elas precisam de recursos e que garantir a renda delas em suas casas é obrigação do governo estadual, federal, municipal.
“É muito incoerente isso. Do ponto de vista do patrão, do ponto de vista dos trabalhadores, principalmente, das trabalhadoras, as mulheres são as principais realizadoras deste tipo de trabalho, e do ponto de vista dos governos. Que incentivo é esse que o governo está dando? A gente pode ver pela arquitetura aqui em Belém, normalmente, os apartamentos, um pouco maiores ou as casas têm quarto de empregada, quando não têm o quarto tem banheiro, tudo isso entre aspas, de empregada, porque? Porque existe essa cultura da servidão e essa cultura, ela inferioriza as pessoas que realizam esse tipo de serviço, é como se elas fossem de um valor menor para a sociedade e isso é muito cruel”, diz ela.