Por Ligia Guimarães.
Em novembro do ano passado, quatro homens armados invadiram, na madrugada, o Fórum da pequena cidade de Alagoa Grande, cidade do interior da Paraíba onde vivem 28 mil habitantes.
O crime movimentou o pacato noticiário local: eles renderam o único vigia do prédio, que trabalhava desarmado, e até o juiz da cidade, que fazia serão justamente naquela noite.
Saíram de lá com 61 armas apreendidas em operações policiais que estavam armazenadas no fórum e seriam destruídas pelo Exército.
Os criminosos foram perseguidos pela polícia e, depois de uma troca de tiros que deixou uma pessoa ferida, as armas foram recuperadas, de acordo com a imprensa local.
A quase 3 mil quilômetros dali, no Estado de Goiás, um crime parecido ocorrera meses antes, em fevereiro. Em Mineiros, município de 66 mil habitantes, a polícia prendeu um estagiário do fórum que se aproveitava do trabalho para roubar armas do armazém da vara criminal e vendê-las no mercado clandestino.
As investigações apontaram que oito armas teriam sido desviadas: seis revólveres calibre 38 e duas pistolas. Em Montes Claros de Goiás, um homem foi preso em fevereiro de 2020, suspeito de furtar 30 armas de dentro da delegacia, simplesmente arrombando a porta da cozinha.
Esses casos ilustram um problema antigo: o roubo de armas que, depois de apreendidas e retiradas do crime, ficam armazenadas em condições de segurança precária e são alvos fáceis para ladrões, voltando ao crime e desperdiçando recursos públicos e o trabalho dos policiais.
Menor patamar desde 2014
Contra esse tipo de crime, o estatuto do Desarmamento determina, desde 2003, que armas de fogo, acessórios ou munições apreendidos sejam, após elaboração do laudo pericial e sua juntada aos autos, destruídas pelo Exército ou doadas para órgãos de segurança pública.
Mas um levantamento recente indica que, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, as destruições de armas caíram ao menor patamar desde 2014. A BBC News Brasil questionou o governo e o Exército sobre a queda mas não obteve resposta.
Dados do Exército reunidos pelo Instituto Sou da Paz a partir da Lei de Acesso à Informação apontam que, em 2019, foram destruídas 125.860 armas, menor número desde 2014, quando foram 81.375 armas destruídas. Na comparação com 2018, houve uma queda de 34% na destruição de armas apreendidas.
Quedas mais expressivas foram observadas na 4ª Região Militar, que envolve parte de Minas Gerais. Lá, o volume caiu para quase um terço do que era antes, de 44.204 para 15.856. Na 11ª Região Militar (Goiás, Distrito Federal, Tocantins e outra parte de MG), o volume de armas destruídas caiu de 33.528 mil para 10.609.
Na 12ª Região Militar (Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre), caiu pela metade: de 8.830, em 2018, para 4.701, em 2019.
Poucas regiões registraram aumento: de 6.389 para 7.199 na 8ª RM, (Pará, Amapá e Maranhão), e de 11.796 para 26.991 na 1ª RM (Rio de Janeiro e Espírito Santo). Tudo de 2018 para 2019.
As destruições de armas atingiram um pico em 2017, quando 279.587 armas foram inutilizadas depois de uma série de roubos a armazéns.
À época, as operações eram uma bandeira da então presidente do Conselho Nacional de Justiça, a ministra do Supremo Tribunal Federal Carmen Lúcia, que chegou a participar de várias cerimônias de destruição de armas pelo país.
‘Alvos fáceis para bandidos’
Natália Pollachi, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, explica que essa política tem se mostrado fundamental para evitar que estoques de armas clandestinas fiquem “esquecidos” e se tornem alvos fáceis para criminosos.
“Claro que a gente não espera que o pico seja mantido todos os anos, mas dado o reconhecimento de que o problema é grave, é um problema disseminado no país inteiro, que esses estoques continuam acontecendo, é importante que a gente mantenha um nível alto de destruição. Precisamos todos os anos destruir muito mais do que a gente apreende para diminuir o estoque”, afirma.
Outra pesquisa do Sou da Paz, de 2015, apontava que, no ritmo da época, o estoque total de armas apreendidas pela polícia e armazenadas em depósitos de órgãos de segurança e do Poder Judiciário levaria até 24 anos para ser destruído.
A demora, na análise da ONG, se devia à lentidão nas investigações da polícia, à falta de peritos para analisar armamentos, e até à cultura do Judiciário, que mantinha armas armazenadas até o fim de cada processo.
Desde 2017, a intenção do poder público vinha sendo justamente acelerar essas destruições. Embora existisse na prática desde 2003, em 2017 foi assinado um acordo de cooperação técnica pela própria ministra Carmen Lúcia, então presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), e o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército Brasileiro, para dar mais agilidade à destruição de armas de fogo e munições sob a guarda do Judiciário.
Em 2017, o tema ganhou atenção nacional depois que bandidos invadiram o Fórum de Diadema (SP), renderam três vigilantes e roubaram quase 400 armas, entre revólveres, garruchas e submetralhadoras.
Dois meses antes, 150 armas haviam sido levadas do Fórum de Serra, no Espírito Santo. Em 2017, pelo menos sete casos como estes ocorreram em diversas regiões do país. Com isso, armas apreendidas ao longo dos anos em operações policiais, e sob custódia da Justiça, acabaram retornando para o crime.
Por que o processo é lento?
Na ocasião, tanto o CNJ e quanto o Comando do Exército comprometeram-se a adotar medidas que tornem os processos de destruição e doação de armas de fogo mais ágeis.
Pelo acordo, ainda vigente, cabe ao CNJ estabelecer parcerias com os tribunais, para que enviem ao Exército, para destruição ou doação, armas de fogo e munições apreendidas que estejam sob sua guarda e sejam desnecessárias à conclusão do processo penal.
Já o Exército deve indicar ao Judiciário as unidades responsáveis pelo recebimento das armas de fogo e munições, bem como garantir a celeridade da destruição ou doação. No Exército, as armas são inutilizadas por um rolo compressor e, em seguida, o material reutilizável da sucata é separado para derretimento em uma siderúrgica.
São destruídas apenas armas consideradas desnecessárias por juízes para a continuidade dos processos judiciais, de acordo com o CNJ. Apenas uma pequena parte do armamento que está nos fóruns pode ser doado para a polícia, em função das suas condições de uso. O acordo não envolve pagamentos entre as instituições — cabe às partes arcar com eventuais despesas necessárias para seu cumprimento.
No levantamento de 2019, a pesquisa do Sou da Paz não identificou quais as causas para tamanha queda nos números de destruições.
Em resposta à BBC News Brasil, o CNJ, que recomenda que os tribunais devem manter apenas as armas imprescindíveis para julgamentos, disse que não tem um levantamento sobre as razões da redução da destruição das armas.
O CNJ reiterou que assinou em 2017 um termo de acordo com o Exército para aumentar a segurança de magistrados, servidores e colaboradores. De acordo com o CNJ, o acordo continua vigente, conforme aditivo assinado pelo ministro Dias Toffoli, atual presidente do STF.
Se a regra continua valendo, por que o número de destruições caiu tanto? A BBC News Brasil não obteve uma resposta do Comando Nacional do Exército.