Com a morte de nove indígenas, sendo dois na aldeia Sapotal, no município de Tabatinga (AM), as lideranças do povo Kokama estão apreensivas quanto à velocidade com que o número de casos aumenta. Somente nas aldeias Sapotal e São José existem 30 casos confirmados, de acordo com informação de um servidor da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
“Nós estamos aqui perdendo vários Kokama, estamos sofrendo muito com tantas perdas. Nenhum órgão estava preparado para essa pandemia”, aponta Edney Samias, cacique geral dos Kokama do Alto Solimões. Somente na família dele, dois tios foram a óbito na última semana de abril em decorrência de infecção por coronavírus. A alta taxa de mortalidade entre o povo motivou uma carta pública de alerta (leia no final).
“Tio Anselmo morreu e a família só foi saber depois de dois dias. Ele foi registrado como “pardo” porque os funcionários do hospital em Tabatinga não sabem quem é indígena ou não”, diz Edney. “Eles não avisaram a família, mesmo com os filhos diariamente esperando notícias. A Sesai não destacou assistente social para acompanhar esses casos”, acrescenta o cacique Kokama.
Outra preocupação para as lideranças daquele povo é o fluxo intenso de indígenas entre as aldeias e as cidades. Em Tabatinga existem pequenas comunidades Kokama, como Guadalupe e Luís Ferreira, onde as pessoas plantam verduras e frutas e vendem na feira da cidade para obter recursos para sobrevivência.
“Existem recomendações do Gabinete de Gestão Integrada de Fronteira (GGI-FRON – formado por órgãos dos governo Federal, Estadual e Municipal), acatadas pela Prefeitura Municipal de Tabatinga, proibindo a entrada de pessoas nas aldeias. Mesmo assim, eles entram para comprar banana, artesanato, farinha e outros produtos dos indígenas”, relata Edney Samias.
Além disso, muitos têm se deslocado para a cidade para receber o auxílio emergencial, formando aglomerações, em contato com não indígenas. “É assustador porque lá não tem ninguém controlando o espaço. Não tem ninguém acompanhando os indígenas. Muito descaso que está acontecendo aqui”, protesta Samias. Até sábado, o município de Tabatinga apresentava oficialmente 113 pessoas infectadas.
Espaço reservado no cemitério
Após diálogo com autoridades municipais de Tabatinga, representantes do povo Kokama conseguiram que uma ala do cemitério criado para sepultar as vítimas do covid-19 fosse destinada aos indígenas. No dia 30 de abril foi protocolado no Ministério Público Federal (MPF) uma solicitação para que o órgão e a Fundação Nacional do Índio (Funai) atuassem no sentido de assegurar a disponibilização de uma ala no cemitério para a realização dos funerais indígenas de acordo com a tradição de cada povo.
Edney Samias explica que “com muita luta conseguimos assegurar no cemitério uma área onde fosse respeitada a nossa privacidade, os nossos costumes. A gente quer acender uma vela, quer colocar um prato de comida em cima da tumba e ficar rindo, segundo nosso costume e, para isso, precisamos de privacidade”. Para os Kokama, uma forma de enterrar os mortos com dignidade.
Comparando com os não indígenas, eles apontam que os “brancos” têm carros para levar os familiares falecidos. Eles dizem que encontram dificuldade maior quando precisam fazer os sepultamentos. “É longe para levar para enterrar, o caminho é cheio de lama e nenhum desses órgãos (Sesai, Funai, Secretaria Municipal) dá os carros para levar alguém da família para se despedir. É muito dolorido”, explica Edney.
Com a pandemia do novo coronavírus, os Kokama passaram a ter medo de ir para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou para o hospital e morrer longe dos familiares. Muitos estão dizendo que querem morrer em casa. “Meu tio Idelfonso Tananta morreu na casa dele porque ele não quis ir para a UPA, ele se recusou. Morreu perto da família. Por volta de uma hora conseguiram levar o corpo para congelar e esperar a hora de ser enterrado”, relata Edney Samias.
Na região do Alto Solimões, formada por oito municípios, os Kokama vivem em 120 aldeias e sua população é de aproximadamente 16 mil indígenas morando nas aldeias e 30 mil nas cidades, conforme levantamento da Sesai.