Por Julia Saggioratto, para Desacato.info.
Denúncia realizada por profissionais da saúde da região de Santa Maria, no RS, atenta para situação do Hospital Regional de Santa Maria construído a partir de recursos públicos e finalizado em 2016 que até o mês de abril de 2020 mantinha-se fechado para atendimento ao público. Santa Maria registrava, até o dia 5 de maio, 39 casos confirmados de Covid-19 e 1.260 suspeitos. De acordo com Sueli Barrios, enfermeira e representante do Conselho Nacional de Saúde, a falta de leitos em Santa Maria é histórica. A cidade universitária fica no centro do estado com uma população de cerca de 280 mil habitantes tendo como referência o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), um Hospital-Escola vinculado à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) para fins de ensino, pesquisa e extensão e à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) para fins de coordenação administrativa e de gestão em saúde. Segundo ela este hospital é referência para uma macrorregião que abrange cerca de 1 milhão de habitantes principalmente na área de oncologia e de transplantes além de outras patologias de maior complexidade trabalhando 100% público. “80% dos leitos ficam nos hospitais privados, tem hospital de caridade, que tem uns 50 leitos de UTI mas não atende pelo SUS, tem hospital militar que atende só militares, mas para o sistema público temos apenas 20 leitos de UTI em Santa Maria”, comenta Barrios.
A partir desta realidade de falta de leitos, principalmente de UTI, houve um movimento na região para que se construísse um hospital regional. A construção, feita 100% a partir de recursos públicos está pronta desde 2016 e apenas no final do mês de abril deste ano colocou seus leitos à disposição da população. Segundo Sueli, na época de sua finalização, em 2014, o governo do estado, à época gerido por Tarso Genro (PT), e a Secretaria Estadual de Saúde, à época representada por Sandra Fagundes, fizeram um convênio com a UFSM via HUSM/EBSERH com o intuito de que o Hospital Universitário assumisse a gestão do Hospital Regional, mantendo o Hospital público. A assinatura do convênio foi feita no Hospital Regional com a presença do reitor da UFSM, Paulo Burman, a diretora do HUSM Elaine Resener e uma representante da direção nacional da EBSERH. “Foi construído, inclusive, um projeto assistencial conjunto para a abertura gradativa dos leitos”, destaca Sueli.
No entanto, com a troca de governo, com a eleição de José Ivo Sartori (PMDB), o convênio não foi levado adiante. O governo do estado, junto ao secretário de saúde à época, João Gabbardo dos Reis, ex-secretário executivo do Ministério da Saúde do governo Bolsonaro, assinaram convênio com o Instituto de Cardiologia (IC), que pertence à Fundação Universitária de Cardiologia (FUC), que tem como missão o ensino-pesquisa-assistência na área de cardiologia e tem realizado convênios com o governo do estado do RS para administrar hospitais do interior, dentre eles o Hospital Regional de Santa Maria, Alvorada, Cachoeirinha e Viamão, instituições que atendem pelo SUS.
Em 2018 o hospital foi inaugurado parcialmente com serviços ambulatoriais para doenças crônicas e, a partir de 2019, atende doenças cardiovasculares. “A opção do governo do estado foi de entregar a gestão da instituição para uma entidade de fora de Santa Maria, uma fundação privada, em detrimento de uma instituição pública, como a UFSM-HUSM. Quem é o grande prejudicado de tudo isso? A população que pagou para a construção desse hospital e que não está tendo acesso à essa instituição. Com o decorrer do tempo já está precisando de reforma”, ressalta Sueli.
Neste ano, devido à pressão de entidades de gestores da região, profissionais de saúde, Conselho Municipal de Saúde de Santa Maria e usuários que reivindicavam a abertura do Hospital, no dia 27 de abril a Secretaria da Saúde do RS divulgou a abertura de 50 leitos de internação no Hospital Regional, 30 leitos clínicos e 10 de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) para o tratamento de pacientes com Covid-19. Sueli Barrios considera importante a abertura dos leitos, “principalmente neste momento em que estamos enfrentando um aumento da pandemia em nosso país e que no RS, com a chegada do frio, em maio e junho teremos uma explosão de casos de doenças respiratórias junto com as decorrentes da COVID 19, necessitando de muitos leitos clínicos e de UTIs, sob pena das pessoas ficarem desassistidas”, comenta. No entanto as últimas informações trazidas pelas entidades é de que os leitos de UTI ainda não estão funcionando. Ela ressalta que ter um hospital público sem disponibilizar leitos é inadmissível e considera irresponsabilidade dos gestores públicos.
Segundo Sueli, o Hospital Universitário, que normalmente tem uma taxa de ocupação de mais de 90% de seus leitos de UTI, organizou mais dez leitos específicos para Covid-19, dos quais, nove já estão dendo ocupados. Ela comenta que o Hospital Regional tem capacidade para ter de 180 a 200 leitos: “Precisamos investir no isolamento social para achatar a curva de transmissão do coronavírus para que nem todos adoeçam ao mesmo tempo, mas ao longo dos meses. Existe pressão dos empresários para que o comércio volte ao normal, mas se isto acontecer não teremos como atender todos as pessoas que serão infectadas. Se conseguirmos que o período se alongue e as pessoas adoeçam ao longo de 6 meses, e considerando que 20% da população seja infectada, e destes 80% sejam assintomáticos ou tenham sintomas leves, os outros 20% precisarão ser hospitalizados e, destes, 5% necessitarão de leitos de UTI. Isso significa que para atender as pessoas em seis meses o número necessário aproximado de leitos para UTI seria de 112”.
Sueli ainda ressalta: “a preocupação enquanto profissionais de saúde é que não tenhamos onde internar as pessoas e ter que, de fato, escolher como na Itália. Fazer a escolha de quem morre e quem não morre, quem tu salva e tu não salva. É isso que não queremos, mas é isso que estamos vislumbrando que possa acontecer”.
Ela ainda destaca que ficarão atentos para que a capacidade máxima do Hospital seja coloca em funcionamento o mais rápido possível. “Inicialmente para acolher as pessoas infectadas pelo Coronavírus e, que após a pandemia, este hospital se reorganize para atender aquilo que é demanda e necessidade epidemiológica da população da região centro”, comenta Sueli. A Conselheira Nacional de Saúde enfatiza que o processo deve ser construído coletivamente com os gestores dos municípios da região, assim como com os Conselhos de Saúde, que têm a prerrogativa legal de definir as políticas de saúde.
Luta por saúde pública
Em meio à pandemia causada pelo novo Coronavírus Covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil, considerado mundialmente como um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde, se vê em meio ao colapso. Desde sua criação, em 1988 pela Constituição Federal Brasileira, durante a redemocratização do país, o SUS vem sendo desfinanciado. A partir de seus princípios da universalidade, a integralidade e a equidade o SUS unificou o atendimento à população brasileira. O Conselho Nacional de Saúde, órgão criado na perspectiva da participação social na construção do SUS, é quem define e delibera a política geral de saúde para o país. Segundo Sueli, uma das/os 48 Conselheiras/os Nacionais de Saúde, o CNS tem discutido que os recursos para garantir o funcionamento do SUS atualmente são insuficientes. Grande parte do desinvestimento é referente à Emenda Constitucional 95, aprovada em 2017, que congelou os gatos por 20 anos. Segundo o CNS, o valor que deixou de ser repassado à saúde com a implementação da EC, junto a restos a pagar de projetos e compras que não foram finalizadas, somam cerca de R$ 20 bilhões. Uma das pautas defendidas pelo CNS para solucionar a falta de investimentos no SUS é relativa à taxação de grandes fortunas. Existe, atualmente, quatro propostas no Senado Federal.
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Segundo Sueli a lógica neoliberal é de transformar a saúde em mercadoria: “entregar para que o privado tenha lucro, então a próxima reforma vinha nesse sentido, de transformar a saúde numa mercadoria para o mercado ter lucro”. Para ela a expectativa é que o povo possa refletir sobre o modelo de sociedade em que queremos viver. “Se é esse modelo de sociedade do privado, do capital, do lucro, privilegiando banqueiros, rentistas, grandes empresários, com estado mínimo, ou queremos uma sociedade onde a prioridade do governo seja o ser humano, sejam as pessoas, e não o capital. Que possamos ter no nosso país políticas públicas, políticas sociais que diminuam as desigualdades, e que possamos construir essa sociedade mais solidária, uma sociedade em que a riqueza do país não fique na mão de uma minoria, que ela seja distribuída. Que todos possam ter acesso a bens e serviços, e não uma minoria”, finaliza.