O desamparo do trabalhador de aplicativos e a crise do Direito de Trabalho

A desregulamentação da proteção ao trabalhador deixa parcela cada vez maior da sociedade sem qualquer tipo de proteção

Durante a pandemia, ao não reconhecer vínculo empregatício de trabalhadores de app, a Justiça desampara o trabalhador e contribui para o risco do aumento de contaminação social – Mauro Pimentel/AFP

Por Lara Lorena Ferreira.

Em recente decisão, a Justiça Comum francesa reconheceu a existência de vínculo empregatício entre a empresa Uber e um motorista. Segundo a decisão, ao se conectar à plataforma digital, o condutor não pode ser considerado autônomo, já que não cabe a ele construir a própria clientela ou definir os preços das corridas. Isso, disse a Corte, gera uma relação de subordinação entre as partes. Também a Assembleia Legislativa da Califórnia aprovou uma lei que, a partir de janeiro de 2020, obriga as empresas de aplicativo a contratar seus motoristas como empregados, o que deve gerar um efeito cascata sobre outros estados estadunidenses.

No Brasil, na contramão desse amparo ao trabalhador, em decisão inédita, a 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) negou o reconhecimento do vínculo a um motorista de aplicativo por entender que o motorista tinha a possibilidade de ficar offline, com flexibilidade nos horários de trabalho e autonomia no desempenho das atividades, o que descaracterizaria o vínculo empregatício.

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Muito embora o TST reconheça que as relações de trabalho têm sofrido intensas modificações com a revolução tecnológica, ao mesmo tempo, insiste em identificar os elementos que norteiam a relação de emprego de forma conservadora, onde não é mais possível enquadrar essa nova realidade de relação de trabalho nos conceitos clássicos de empregado e empregador, e com isso, deixa parcela cada vez maior da sociedade sem qualquer tipo de proteção social.

Como exemplo oposto, em caso semelhante julgado pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT-SP), já se reconheceu que “a subordinação está na estruturação do algoritmo, meio telemático (artigo 6º, CLT), que impõe ao trabalhador a forma de execução do serviço. Vale dizer que a ordem não advém de pessoa natural, tal qual no passado (gerente, supervisor, encarregado), mas da telemática, que por meio de seus complexos cálculos dirige como o serviço deve ser efetuado para o resultado mais eficiente, bem como precifica tal serviço”. O caso, concluiu, reúne todos os requisitos para caracterização de vínculo de emprego: pessoalidade, caracterizada pela realização de cadastro pessoal e intransferível, onerosidade, não eventualidade e subordinação.

Aliado ao fato de que a inovação crescente das relações de trabalho e tecnologia não possui regulamentação, o direito de trabalho no país tem passado por uma grave crise de desregulamentação da proteção ao trabalhador. Por isso, neste momento que enfrentamos, de pandemia, duas decisões favoráveis aos trabalhadores em ações coletivas face a duas empresas de plataformas digitais, ainda que de primeira instância, contribuem para o debate da proteção do trabalhador. Nelas, não se discutiu a natureza da relação de trabalho, mas a da responsabilidade das empresas, utilizando como base a Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e condenando-as a garantir remuneração mínima a trabalhadores obrigados a se afastar do trabalho em função da covid-19.

As decisões determinaram, entre várias medidas de segurança, o pagamento pelas empresas da média do que o trabalhador ganhou nos últimos 15 dias anteriores ao afastamento, não podendo ser menor do que o salário mínimo. Infelizmente, as decisões liminares foram derrubadas pelo TRT-SP justamente por não reconhecerem o vínculo de trabalho.

Ao insistir nessa posição, fica escancarada a perversidade desse processo de precarização das garantias jurídicas que sofremos. Não só por deixar o trabalhador completamente desamparado, mas, ao mesmo tempo, por desproteger a própria sociedade, já que medidas de afastamento desse trabalhador não implicam apenas na proteção individual dele e de sua família, mas também são voltadas para o impacto da redução do risco de contaminação. Ao excluir a empresa dessa responsabilidade, a Justiça do Trabalho não fez a sua parte: desampara o trabalhador e contribui para o risco do aumento de contaminação social.

*Lara Lorena Ferreira é Advogada trabalhista e sindical, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)

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