“O presidente da Funai, sob o subterfúgio de ‘editar atos normativos internos’, decidiu, unilateralmente, revogar as garantias fundamentais dos índios previstas na Constituição Federal para chancelar títulos, posses e invasões incidentes em terras indígenas. Com isso, legitima a violência e incentiva conflitos que custam a vida dos índios. Se continuar nessa toada, a FUNAI será transformada, ao mesmo tempo, em subsede de cartório de registro de “imóveis” privados e em funerária indígena”.
Foi assim que a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), terminou artigo artigo publicado no site da organização sobre a decisão de Marcelo Augusto Xavier da Silva, ex-delegado da Polícia Federal, que preside a Fundação Nacional do Índio desde junho de 2019, por indicação do ministro Onyx Lorenzoni, com apoio de líderes da bancada ruralista.
A escolha não poderia ser mais perigosa para os indígenas. E ele é tão sórdido, que altera leis e toma medidas a seu bel prazer e de seus amiguinhos. A covardia chega ao ponto de se aproveitar de um momento como este, em que o mundo está tentando se salvar de uma pandemia e que tem colocado os povos indígenas, quilombolas e outras comunidades em risco de vida ainda maior por causa das invasões, que levam o coronavírus para dentro de suas terras.
Em 22/4, Marcelo Xavier emitiu a Instrução Normativa (IN) nº 9/2020, publicada no Diário Oficial da União no mesmo dia, que altera o procedimento de análise e emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites da Propriedade Privada, documento utilizado para garantir que imóveis rurais não avancem sobre áreas onde vivem povos indígenas – terras homologadas ou não -, cadastradas no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), gerido pelo Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que reune dados oficiais sobre os limites dos imóveis rurais.
Em março de 2019, Juliana conta que o Incra chegou a enviar minuta de IN para a Funai, sugerindo que as terras indígenas não homologadas foram tiradas do Sigef, mas o presidente da Funai na época, Franklimberg Ribeiro de Freitas, foi contra. Em contrapartida, aprovou uma informação técnica e um parecer que alertavam sobre a grave insegurança jurídica da medida. Foi demitido, quatro dias depois, claro.
Perigo real e imediato
Vale destacar que os processos de demarcação são sempre muito demorados – alguns foram iniciados em 1982 e há, entre eles, diversos que ainda nem foram abertos!! Só no que se refere à homologação por decreto, que é a última fase desse complexo sistema, o processo inclui estudos técnicos, depois tem que passar pela aprovação do presidente da Funai, aguardar contestação administrativa e análise e aprovação pelo Ministro da Justiça…
Só depois de todas essas fases, segue para homologação presidencial, o que Bolsonaro deixou claro (já em sua campanha para a eleição) que não o faria: “nem um centímetro de terra demarcada!”. Quando elegeu Marcelo Xavier, ele garantiu que sua promessa fosse cumprida. De lá pra cá, o órgão vem sendo enfraquecido e desmontado para servir aos interesses econômicos do agronegócio, de invasores, grileiros, madeireiros, enfim… de bandidos.
Considerando as terras indígenas cujas áreas já foram delimitadas e/ou declaradas, a medida torna disponível para o “mercado” 9,8 milhões de hectares em terras públicas, uma área que equivale ao estado de Pernambuco, segundo informações do site De Olho nos Ruralistas.
Como se não bastasse a MP da Grilagem…
Juliana destaca que, com a IN nº 9/2020, “os invasores poderão obter o certificado expedido pela Funai onde constará que a área invadida não é terra indígena. Depois, poderá pedir a legalização da invasão no Incra, o que se dá por intermédio de cadastro autodeclaratório, já que as regras para isso foram afrouxadas pela Medida Provisória nº 910/2019, a MP da Grilagem, em trâmite no Congresso Nacional” (veja, no final deste post, como pressionar parlamentares para que essa medida não seja aprovada).
Mas claro que Marcelo Xavier não age sozinho. Há uma figura nefasta por trás de toda essa armação: Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura e ex-presidente da UDR (União Democrática Ruralista), ligado a milícias rurais que atacaram a região do Pontal do Paranapanema (SP), de 1990 e 2000, como conta o site De Olho nos Ruralistas – Observatório do Agronegócio no Brasil.
Os dois aparecem em vídeo publicado no perfil de Xavier no Facebook (e que foi republicado no site da Funai). Nele, Nabhan é o primeiro a falar das benesses da medida, que decreta o fim da “lista suja do Sigef”.
Tendo ao fundo, um cântico Guarani como trilha sonora do encontro (vejam a cara de pau!), o ruralista acrescenta que a identificação de imóveis rurais sobrepostos a áreas em processo de demarcação é ilegal e discriminatória, e que isso faz parte de “questão ideológica e política de governos passados”, que erroneamente qualificaram como indígenas áreas sem ocupação tradicional.
E continuou: “Estamos inclusive trabalhando junto com o Congresso pra trazer uma nova legislação de segurança jurídica”, destacando o desejo de Bolsonaro congelar as demarcações. “O índio é um cidadão brasileiro como todos nós”, parafraseando o amigo presidente. O interesse de Nabhan pelas terras indígenas vem dos anos 80, como revelou uma reportagem de 2018, publicada pelo Observatório. Ele é incansável e poderá, finalmente, conseguir o que quer, se a medida proposta por Marcelo Xavier não for barrada.
Com a IN nº 9/2020, qualquer um pode ocupar áreas em terras indígenas e licenciar qualquer tipo de atividade nela como, por exemplo, desmatamento e venda ilegal de madeira. Ricardo Salles, ministro do meio ambiente, vai agradecer. E claro que tudo “à revelia e sem a participação dos índios“, posto que essas terras não estarão na base de dados do Incra (o Sigef) e “o interessado terá um documento expedido pela Funai garantindo que os limites de seu ‘imóvel’ não está em terra indígena homologada”, relata Juliana.
A advogada do ISA ressalta que a gravidade da IN nº 9/2020 é tanta que a Declaração de Reconhecimento de Limites da Propriedade Privada poderá ser emitida até mesmo em terras onde vivem índios isolados, “já que algumas contam apenas com portaria de interdição da Funai, cuja finalidade é restringir o uso de terceiros e garantir o direito de não contato dos indígenas”.
“Não há índio sem terra”
É importante salientar que a definição de Terra Indígena (TI) não depende de processo de demarcação para ser considerada como tal. Não é necessário um decreto de homologação ou qualquer outro ato para se “criar” uma terra indígena. “O processo apenas confirma uma situação fática preexistente” porque o que define uma TI é a existência de indígenas já que é isso que faz da terra “a base material para sua sobrevivência física e cultural“.
Em seu artigo muito esclarecedor, Juliana lembra que “o falecido ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Menezes Direito, responsável pela elaboração das condicionantes que nortearam o julgamento do famoso caso TI Raposa Serra do Sol, afirmou: ‘não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição”.
A advogada ainda destaca o que determina o Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973) e que já foi reconhecido pelo STF: o direito à terra independe de demarcação. Mas, com a nova medida do órgão criado para proteger os indígenas ignora tudo isso. Refuta um dos artigos que diz que não cabe à FUNAI restringir a posse de imóveis privados devido à identificação ou delimitação de terras indígenas: “Ora, o que não cabe à Funai é ignorar os direitos indígenas previstos na Constituição!”.
A Funai de Bolsonaro
Mas esta é a Funai de Bolsonaro, e ele quer que as terras ocupadas pelos indígenas sejam exploradas economicamente, mesmo que se tornem um imenso deserto. Esta é a Funai que não respeita a Constituição, o documento que garante aos índios os “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como a posse permanente e o usufruto exclusivo das terras, rios e lagos nelas existentes”.
Esta Funai ignora que as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis e que compete à União “demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens existentes nas terras indígenas e classifica como nulos e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras”. Agora, nas mãos de Marcelo Xavier e a parceria do ruralista Nabhan Garcia, é justamente atos contra tudo isso que o órgão pretende autorizar com a IN nº 9/2020.
Marcelo Xavier relata sobre essa destruição com outras palavras, emprestando novos significados para o direito de propriedade, a dignidade dos indígenas e conflitos no campo, veja: “O papel da Funai enquanto instituição defensora da legalidade e dos interesses indígenas é do cumprimento da Constituição Federal, do direito de propriedade e dar dignidade aos indígenas. Com essa norma, vamos tentar minimizar a conflituosidade no campo. É uma forma de pacificação entre os indígenas e não-indígenas”. Criminoso!
Funerária indígena
Com essa visão torpe, Xavier inventa uma outra atribuição para “defesa do direito de propriedade”, inexistente no estatuto da Funai, e maquia a realidade sobre os conflitos no campo apresentados pela Comissão Pastoral da Terra. Está mais do que provado que a demora nos processos de demarcação só aumenta a violência, com a presença de invasores e grileiros. No ano passado, a cada três famílias vitimas de conflitos no campo, uma era indígena.
Para Juliana, do ISA, o presidente da Funai decidiu revogar as garantias fundamentais previstas na Constituição para chancelar títulos, posses e invasões incidentes em terras indígenas e, “se continuar nessa toada, a Funai será transformada ao mesmo tempo em subsede de cartório de registro de ‘imóveis’ privados e funerária indígena”.
Arrepiante essa declaração, mas a verdade é que, se nada for feito para impedir essa medida, talvez seja esse mesmo o cenário, ainda mais numa situação como a de agora, com o coronavírus que chegou aos povos indígenas aldeados ou moradores de centros urbanos, fragilizando-os ainda mais.
Grilagem, não! Pressione os parlamentares
Enquanto isso, vale protestar contra a MP da Grilagem (Medida Provisória 190/2019), proposta pelo governo Bolsonaro, que tramita no Congresso Nacional e, a qualquer momento, pode ser avaliada e aprovada por deputados e senadores.
Ela é um prêmio para invasores e grileiros que desmatam e ateiam fogo na Amazônia e também no Cerrado. E um apoio – e vice-versa – para a IN de Marcelo Xavier, da Funai.
Então, por favor, acesse o site Saldão da Amazônia – iniciativa promovida pelo Greenpeace, ISA, WWF Brasil, Observatório do Clima, Instituto Sociedade, População e Natureza, e GTInfra – e assine a carta que lá está para pressionar os parlamentares. Diga NÃO à esta Medida Provisória criminosa!