Lurdinha, o filme

Por Elaine Tavares.

Domingo. Fiz uma panelada de pipoca, enrosquei nos gatos e fui ver “Lurdinha: a vendedora de ilusões”, o filme produzido e dirigido por Cesar Cavalcanti. Queria vê-lo assim, sozinha de gentes, para ruminar saudades. Nunca esqueço quando cheguei à Florianópolis em fevereiro de 1987.

Cesar com Marcia Konder (tão lindamente Lurdinha)

Era uma segunda-feira, desembarquei na rodoviária, eu e minha velha mochila verde. Não conhecia qualquer alma nem sabia para onde ir. Busquei o posto telefônico e fiquei folheando as páginas amarelas. Pensei: hotel perto da rodoviária é sempre barato. Saí andando em busca dos tais. O primeiro que achei ficava bem em frente ao terminal e a diária era um pouco menos do que tudo o que eu trazia no bolso para passar até encontrar um emprego. Desisti.

Saí andando pela Conselheiro Mafra, onde, verifiquei, estavam os hotéis mais baratos. Foi quando eu a vi. Vinha pela rua com um vestido rosa pálido, gola alta, um cinto dourado, meias, sapatos pretos e o rosto tão maquiado que parecia uma boneca. Nos cabelos levava uma redinha. Era uma personagem. Não sei por que, mas a visão daquela mulher tão peculiar me deu força. Eu estava num lugar que tinha figuras assim, haveria de ser bom. Nunca esqueci a cena, quase cinematográfica. Ela, tão bem aparada e eu, uma “riponga” desorientada. Acabei ficando num daqueles hotéis mal afamados da Conselheiro. Não sabia que eram de alta frequência e, como sou distraída, demorei a notar. Logo fiz amizade com as moças e era um ritual ver passar a Lurdinha com sua caixinha de fósforos a fazer aquele barulhinho, chamando para o sonho da loteria.

Ver o filme de Cesar me trouxe aqueles dias de volta. O começo da vida por aqui, a descoberta desses seres tão únicos que são os moradores dessa ilha boa, a partilha amorosa das ruas com essas criaturas que são como a alma do centro da cidade. Lurdinha, a anã Catarina, o homem do megafone, a Margarida em frente à igreja, o velhinho em frente a lotérica, o pintor da Esquina Democrática, as mulheres guarani, o Uby, poeta que também já se foi. Cada um deles, um mundo, como o de Lurdinha, tão bem retratado pelo olhar sensível e Cesar e Janete (autores do roteiro).

Na fala daqueles que conviveram com Lurdinha foi brotando toda essa beleza que as figuras típicas de uma cidade vão espalhando com sua original existência. O desvelar daquela mulher que passava fazendo o ruído característico com a caixa de fósforos é o próprio desvelar de uma cidade que já está se perdendo. A Desterro daquele final dos anos 80 já não está mais. Cresceu demasiado, foi perdendo a identidade. Essa que aí está é outra, tem outra cara, outro sotaque. É bela ainda, é certo, mas, sinto que falta algo.

Não foi sem razão que o final do filme me encontrou em lágrimas. A saudade da Lurdinha é também a saudade de uma Desterro cheia de pureza, provinciana e pacata. Essa Desterro que vive em mim quando eu caminho pelas ruas arenosas do Campeche. A Desterro da Lurdinha é a cidade que a gente ainda evoca nas lutas do Plano Diretor, amorosa, terna, cintilante e amiga.

O filme é um cristal precioso, como tende a ser tudo aquilo que nos toca no ponto mais sensível da memória. Na trilha da vida daquela mulher sisuda e batalhadora eu pude me ver, guria ainda, buscando um lugar nessa cidade. Ela nunca soube, mas morava em mim como a primeira lembrança de estrangeira, espiando pelas ruas em busca de um olhar amigo. O som de sua caixinha anunciava que vida ‘invinha” (como se diz em Minas) e eu pude seguir meu caminho até onde estou.

Lurdinha é um poema e precisa ser visto por muitos mais. Nela, vive a cidade… a nossa cidade!!

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