Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
Nos tempos dos mitos gregos, Midas ambicioso desejou poder transformar tudo o que tocasse em ouro. O deus Dionísio tentou alertar, o que não surtiu efeito, com muita insistência, o desejo foi concedido, mas o que parecia ser uma benção revelou-se como uma praga, pois estava perdendo o que realmente importava, a condição humana, até sua filha foi transformada em ouro.
No contexto moderno, a esperteza e a súplica do Rei Midas aparecem sobre a forma do desejo de poder, da busca da autossatisfação em detrimento do outro, sendo capaz de converter homens e mulheres em simples mercadorias, até mesmo a morte não choca mais os mortais. Aliás, tornou-se um grande negócio, juntamente com a cura. A maneira como é realizada essa narrativa ganhou o nome de história.
O surgimento da narrativa da história ganhou várias formas, podendo ser comparada com as travessuras do deus grego Hermes, o deus mensageiro, que poderia alegrar, inspirar, comover, fazer apaixonar e odiar. A sua influência era tão grande que não apenas alcançava os mortais, era capaz de fascinar e mexer com a essência dos deuses do olimpo, que por mais fortes e poderosos que fossem, não resistiam e sucumbiam diante da comunicação ardilosa de Hermes, que se convertia em mensageiro e influenciador dos desejos e necessidades de todos os seres.
Quando os deuses do Olimpo caíram e desapareceram, Hermes ficou apenas na morada dos seres humanos. Quando a modernidade chegou, seu nome desapareceu, mas a sua força e influência continuaram. Diante disso, algumas questões passaram ser pertinentes, entre elas, como e para quem a história é contada? Quem é que conta a história dos estranhos no mundo? É possível ter uma visão imparcial da história?
O relato da história nega, muitas vezes, as vivências, os encontros e desencontros de muitos. Esse fenômeno ocorre por muitos motivos, entre eles está o fato da narrativa poder ser realizada pela omissão, pela fragmentação, por apresentar uma visão de alguns envolvidos no fato. Isso pode ocorrer conscientemente ou inconscientemente.
No caso da narrativa sobre os estranhos, encontramos uma perspectiva estratégica em esconder o que causa incômodo, o que mancha a perspectiva estética da sociedade, de sua organização, a visão sobre o crescimento e o sucesso, a busca pelo poder em detrimento do humano, o que é visível diante da violência que sucumbe o humano e tudo passa ser percebido na condição de objeto, de mercadoria para satisfazer uma velha vaidade humana, que já fora representada pela humanidade de muitas formas, entre elas, está a figura do rei Midas, ambicioso como o ser humano moderno, que tem o desejo do ouro a qualquer custo, mesmo que para isso destrua a si e a natureza ou essência dos seres a sua volta. Rei Midas teve a vantagem de ter o seu desejo desfeito, mas para os seres modernos, talvez não acordem a tempo e não haverá um deus Dionísio para os salvar de si mesmos e seus semelhantes.
A narrativa sobre os estranhos pode, também ter um aparato inconsciente, pois a estranheza como diferença não é desejável, por apresentar a dor e o sofrimento de muitos, o que macula a vaidade humana em ter uma ideia perfeita. Por isso, todo cuidado é pouco, pode-se dizer que a quem faltar “algo” no mundo daqueles que não se consideram estranhos é uma anomalia que tende a ser reprimida, subjugada. Então, se for diferente ou algo parecido, corra antes que os ditos normais apareçam! Porém, é possível associar-se ao mundo dos não estranhos, desde que seja negada a condição de diferença e estranheza. Por esse motivo, muitas vezes, a negação da estranheza aparece sobre formas e adornos, tornando alegre, risível, apresentando a feição natural, até mesmo banal.
Em relação a narrativa, podemos verificar que em geral é muito fácil falar do amor sobre as mulheres, do que visualizar a mãe que perde seu filho diante da grande engrenagem que tritura a estranheza do mundo. Existe um conjunto mais ou menos sistematizado dessas engrenagens, formando uma máquina, cujo propósito é triturar homens e mulheres em corpo e espírito, tendo como combustível a vaidade, os “egos inflamados”, o egoísmo, o desejo do poder pelo poder.
Diante disso, o despertar do pensamento tenta desvelar o que está na espreita. O resultado dessa força é apresentado não na sua totalidade, mas em pequenos pedacinhos, que por vezes se juntam e revelam que o humano se tornou um estranho de si mesmo, negando ao semelhante o direito de ser e viver. Por outro lado, revela-se, muitas vezes, faíscas de esperança, de ânimo, de encontros não planejados.
A história de Inaiê e de Ulisses é decorrente de narrativas que acabaram mutilando a memória. Durante o relato de Ulisses sobre a vida de sua família, a inquietação emergiu na alma de Inaiê, que subitamente lembrou e relatou para Ulisses, que sua mãe quando questionada sobre o motivo de não ter um sobrenome, revelou que ela era filha adotiva, que não fora registrada, pois quando bebê sua mãe biológica a entregou, com rosto cheio de lágrima e com dores de um corpo que estava prestes a perder a vida, tinha perdido seu marido em decorrência de um assassinato; seus outros filhos haviam parado em abrigos, restando uma pequena menina que deveria ser chamada de Inaiê, foi o último pedido de um moribunda que perderá a vida quando tentou salvar um de seus filhos.
O relato deixou Ulisses atordoado, pois já havia reconhecido no semblante de sua amiga a lembrança de sua mãe e em prantos abraçou aquela que era a sua irmã. Assim, o encontro de dois irmãos ocorreu no meio do mundo dos estranhos e uma pequena faísca de esperança foi acesa, junto com a descoberta de um pedacinho da história de dois órfãos.
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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.
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