Comunidades remanescentes quilombolas resgatam história negra em Joinville

Foto: Juliane Guerreiro

Por Juliane Guerreiro.

O quadro pendurado na parede da sala mostra onde estamos: comunidade quilombola Ribeirão do Cubatão. A felicidade de Olívio Cristino em receber o documento que certifica a comunidade como remanescente de quilombos é tanta que o registro não deve ficar guardado em uma gaveta, mas sim ocupar lugar de destaque na casa onde mora com a irmã, na zona rural de Joinville.

É verdade que o interesse do aposentado de 70 anos em saber mais sobre a sua origem e a história de seus antepassados nem sempre foi tão grande. Ele admite que há poucos anos nem mesmo sabia o que era quilombola. “Eu ouvia falar em quilombo, Palmares, mas não tinha esse conhecimento”, conta. Foi em 2016 que tudo mudou e que a vida de Olívio passou a ter novo sentido.

Naquele ano, ele foi convidado pela Secretaria de Estado da Educação a participar do Seminário Estadual das Políticas para Educação das Relações Étnico-Raciais: Implementação da Lei nº 10.639/03, que reuniu agentes envolvidos nas políticas públicas relacionadas aos povos indígenas e quilombolas. Foi lá que Olívio entendeu a importância de resgatar suas origens e, desde então, tem feito disso a sua missão.

A primeira conquista foi conhecer parte da história de seu avô paterno, Antônio Naro. Com a ajuda do historiador Dilney Cunha, ele descobriu que seu avô foi escravizado em São Francisco do Sul e que ganhou a alforria em 1879, após ajudar no tratamento de doentes com febre amarela. O registro foi feito à época no jornal Kolonie-Zeitung e, mais tarde, publicado no livro Joinville – Os Pioneiros, de Raquel S. Thiago e Maria Thereza Böbel.

História de Antônio Naro foi publicada no Kolonie-Zeitung

“Foi a partir daí que eu comecei a dar andamento na pesquisa, a ir em biblioteca e em sebos para pesquisar alguma coisa. Então, a historiadora Judite Pavesi me mostrou uma parte da família Cercal (luso-brasileiros que tinham sesmaria na Colônia Dona Francisca). Foi aí que eu peguei a meada do fio e entendi que onde hoje é o Country Club era uma casa de escravos e que, provavelmente, o meu avô veio com os Cercal de São Francisco do Sul para cá”, explica.

Apesar de todo o ânimo de Olívio em encontrar registros do passado, esse ainda é um desafio para qualquer pessoa negra em Joinville. Hoje, os documentos ainda são poucos e dispersos, o que torna complexa a busca por eles. Mesmo diante disso, Olívio não pretende desistir. “Ainda tenho que desvendar a história dos meus avós paternos e se eu tiver que ir para Portugal para saber, eu vou”, afirma entusiasmado.

Certificações quilombolas são recentes

Embora as famílias quilombolas morem nas mesmas regiões há muito tempo e venham buscando o reconhecimento há alguns anos, a certificação como remanescentes de quilombos ainda é recente. O Ribeirão do Cubatão, onde mora Olívio, foi certificado em dezembro de 2019. Já a comunidade Beco do Caminho Curto, na mesma região, foi reconhecida em abril do mesmo ano.

Alessandra, Olívio e Célio celebram certificação – Arquivo pessoal

Conforme conta o defensor público Célio Alexandre John, da Defensoria Pública da União, o processo para certificação da comunidade do Beco do Caminho Curto, que fica em Pirabeiraba, começou ainda em 2013, mas foi prolongado porque havia documentos pendentes. Já a certificação da comunidade do Ribeirão do Cubatão ocorreu de forma célere, visto que foi solicitada e conquistada em 2019.

A certificação é feita pela Fundação Cultural Palmares que, durante o processo, faz visitas aos locais e exige uma série de documentos com o histórico das comunidades, além de uma ata de reunião para tratar da autodeclaração dos moradores como remanescentes quilombolas e de um requerimento assinado pela maioria deles.

Após a certificação, a Defensoria Pública da União e as comunidades continuam o processo, agora em busca da demarcação dos territórios junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Não há prazo, é um processo moroso e o Incra tem poucos servidores para dar conta da demanda. Mas é importante para proteger o território de fatores externos, como a especulação imobiliária, invasores etc.”, explica o defensor.

Para ele, a certificação das comunidades como quilombolas é importante para o resgate histórico desses locais. “Quem conhece suas origens pode determinar seus caminhos do futuro e cobrar do poder público o acesso às políticas públicas voltadas para as comunidades tradicionais”, avalia.

Nesse sentido, quem já tem visto a vida melhorar é a dona de casa Gorete Aparecida de Oliveira, que mora no Beco do Caminho Curto. Ela conta que desde o início do processo de solicitação da certificação, alguns serviços públicos têm sido oferecidos com mais qualidade aos moradores.

“Para a gente foi muito bom. Temos ônibus, que antes não tínhamos, tivemos o direito de estudar aqui à noite e as crianças ganharam bem mais oportunidades. A Univille trouxe reforço escolar, o Engenheiro Sem Fronteiras fez o saneamento básico, tem galpão com biblioteca para as crianças, entre outras coisas”, analisa.

Gorete vê mais oportunidades para as crianças da comunidade

Por outro lado, o preconceito racial em Joinville, conhecida por ser uma cidade tradicionalmente germânica, ainda afeta os moradores. “A gente sofre bastante preconceito de as pessoas ficarem rindo e dizendo ‘ah, ela mora lá na comunidade dos quilombolas’. A gente vai no comércio e sempre nota que tem uma pessoa atrás, olhando para ver se a gente não vai mexer nas coisas, é bem chato mesmo”, conta.

Apesar disso, Gorete está feliz com a conquista, principalmente pela segurança jurídica que isso traz para a comunidade. “Há alguns anos, a prefeitura quis nos multar por estar aqui. Como a gente vai se separar se nascemos aqui e conhecemos todo mundo? São irmãs, primos, primas, tem muita geração vindo aí. Agora que somos certificados, temos mais segurança de que ninguém vai tirar a gente daqui”, comemora.

Resgate e ressignificação da história

Com a certificação quilombola, os moradores dessas comunidades têm acesso facilitado a políticas públicas, ampliando direitos no que se refere à defesa e à valorização do patrimônio cultural brasileiro e afro-brasileiro. Porém, além disso, a certificação em si já é uma conquista, como explica Alessandra Bernardino, assistente técnica pedagógica da Coordenadoria Regional de Educação (CRE), que acompanhou as comunidades desde o início dos processos.

“Com a comprovação de que existem, desde a colonização de Joinville, essas duas comunidades remanescentes quilombolas, essa certificação dá a esses grupos a ‘ressignificação’ dessa história tão marginalizada durante anos por determinados grupos étnicos, a negação da presença negra na história local”, explica.

Essa ressignificação, inclusive, é feita mesmo por quem é remanescente quilombola, como é o caso de Olívio, que hoje vê a sua história com outros olhos. “Eu aprendi na escola uma versão, mas se for ler a história é outra. A história de Joinville é outra porque quando os alemães migraram para cá já tinha negros e índios morando aqui. Foram duas etnias que fizeram muito por esse país e, hoje, para serem reconhecidas é difícil, ainda dizem que índio é preguiçoso, um monte de picuinha. Hoje, tem pessoas estudadas, com alto grau de ensino, que não aceitam que eu, neto de escravos que teve os antepassados chicoteados, viva uma vida boa”, ressalta.

Entre os planos de Olívio para a comunidade do Ribeirão do Cubatão está justamente a construção de um galpão que reúna a história dos seus antepassados em Joinville.

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