Pandemias: acontece nos filmes, acontece na vida real

Um vírus desconhecido e letal se expande pela cidade. A população, desesperada diante da propagação da infecção e mortes repentinas, rouba os supermercados, enquanto os políticos subestimam a pandemia, perdendo um tempo precioso para frear seus efeitos. Quando eles decidem colocar a cidade em quarentena, talvez seja tarde demais. Recorrem às forças repressivas para dominar uma população desesperada e aterrorizada com a propagação de uma doença mortal da qual não se difunde nenhuma informação confiável

Por Andrea D’Atri

Imagem: Reprodução/ Esquerda Diário

Provavelmente a partir de agora, Virus, o filme sul-coreano Kim Sung His lançado em 2013, deve incluir em seus créditos aquela legenda que atrairá: “Os personagens e fatos retratados neste filme são completamente fictícios. Qualquer semelhança com pessoas verdadeiras, vivas ou mortas, ou com eventos reais é pura coincidência. Porque as coincidências com a pandemia do coronavírus COVID-19 são assombrosas.

As pandemias têm atravessado a imaginação dos povos, do Antigo Testamento até Netflix, passando peças grandes produções de Hollywood. As fontes de inspiração têm sido, provavelmente, algumas das pandemias mais mortais da história que, apesar de suas grandes diferenças, surpreendem mais pelas semelhanças que carregam entre si.

A peste negra: quando os cadáveres foram armas biológicas

Uma das pandemias mais devastadores tem sido a conhecida como “a peste negra”, que se expandiu durante vários anos do séculos XIV e se calcula que acabou com a vida de 25 milhões de pessoas somente na Europa, o que equivalia a um terço da população do continente naquele momento. A hipótese mais acertada é que se tratou da propagação de uma bactéria através de ratos e pulgas.

No entanto, há quem sustente que essa epidemia não teria se espalhado tão drasticamente, se não fosse porque a economia agrícola estava estagnada como resultado de fatores climáticos, mas também porque se havia posto para cultivo terras de baixo rendimento agrícola, resultando em uma queda na produtividade que levou a uma piora da nutrição. Nesse contexto, as bactérias exterminaram uma população que tinha visto suas defesas imunológicas cair drasticamente. A pressão fiscal dos senhores feudais sobre os camponeses mergulhados na fome teria acelerado os eventos que eventualmente desintegraram o sistema e deram lugar à Idade Moderna.

A peste negra pode ter sido o cenário de onde se originaram as armas biológicas que hoje alimentam roteiros de ficção científica, teorias conspirativas e são o segredo mais bem guardado dos desenvolvimentos científicos militares das grandes potências. Uma cidade que agora é ucraniana, mas que, na Idade Média, foi disputada entre genoveses e venezianos, foi sitiada pelos tártaros em 1346.

“Com baixas em suas fileiras, produzidas pela peste negra e incapazes de alcançar a rendição da cidade sitiada, os tártaros jogaram os cadáveres “apestados” de seus soldados, por cima das paredes, com as catapultas.”

E, como em toda pandemia, preconceitos sociais também foram alimentados pelas classes dominantes para encontrar rapidamente um “bode expiatório”. Na Europa, os judeus foram rapidamente acusados de serem a causa da epidemia, iniciando-se as perseguições e expulsões destes das cidades.

A gripe espanhola: quando os modernos meios de transporte propagaram uma infecção a lugares muito distantes.

A pandemia de gripe de 1918 alcançou uma gravidade inusitada já que, atualmente, se calcula que entre 50 e 100 milhões de pessoas de todas as idades morreram em um ano só como consequência desse vírus, o que se calcula corresponder de 10% a 20% dos infectados.

Com base nessas hipóteses, pode-se estimar que um terço da população mundial em 1918 foi infectada por essa gripe letal que pode ter matado 25 milhões de pessoas nos primeiros seis meses. Em algumas regiões da China, 40% da população morreu, na Espanha 1%. Na Índia, estima-se que 17 milhões de pessoas morreram. Em uma população originária do Alaska, de 80 habitantes, 78 morreram em uma semana.

“Apesar de não ter uma das maiores taxas de morbidade, a Espanha deixou o nome desta gripe para a história. É que ao ser um país neutro durante a Primeira Guerra Mundial em curso, foi um dos países que não censurou as informações sobre a gripe e suas consequências letais.”

Como nos piores filmes de ficção científica, soldados combatentes da Primeira Guerra Mundial ajudaram, involuntariamente, na propagação da gripe mais mortal do que os exércitos beligerantes. E assim como hoje os governos estão correndo para cancelar voos internacionais, pela propagação do coronavírus através de viajantes, a modernização do sistema de transporte no início do século XX foi um dos fatores que permitiu a disseminação mais rápida de a pandemia para áreas geográficas distantes.

A peste rosa: castigos divinos, homofobia, racismo e teorias conspirativas

Desde 1983, quando se identificou a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), vários milhões de pessoas morreram em todo o mundo sem que se pudesse saber sequer quantas pessoas foram afetadas pelo vírus (HIV) desde então, já que nem todas portadores desenvolvem a síndrome que tem manifestações observáveis.

O primeiro registro da infecção é um relatório médico de 1981 que aludiu a uma estranha condição semelhante a pneumonia vista em cinco homens brancos, gays e californianos não relacionados. Pouco depois, foi registrada a relação desses sintomas com outros que se assemelhavam ao câncer de pele.

“Os pacientes morreram e, muito rapidamente, preconceitos homofóbicos alimentados por fundamentalismos religiosos e a direita conservadora se espalharam mais rápido do que o vírus da imunodeficiência adquirida.”

Começou a se falar da “peste rosa”, embora logo se tornasse evidente que o vírus afetava usuários de drogas intravenosas, receptores de transfusão de sangue e mulheres heterossexuais.

No entanto, a OMS não retomou o assunto até 1988, quando criou o Programa Mundial de Aids. Em 1996, foi o momento com maior número de novas infecções, com 3,5 milhões de contágios. Atualmente, a AIDS afeta mais de 40 milhões de pessoas e, embora em países mais desenvolvidos, o número de pessoas infectadas pelo HIV diminuiu significativamente pela educação sexual e informações sobre práticas preventivas, e apesar também de que as terapias reduziram significativamente a taxa de mortalidade, nos países pobres os números permanecem alarmantes. Em alguns países africanos, 25% da população está infectada.

No início, teorias conspiratórias apontavam para um acidente em um laboratório onde armas biológicas seriam desenvolvidas para serem utilizadas na “Guerra Fria” entre os Estados Unidos e a então União Soviética. No entanto, no século XXI tinha sido totalmente demonstrado a hipótese que se supunha desde o início, que a origem estava em um tipo de chimpanzé africano. Essa hipótese também teve sua correlação de racismo, homofobia e xenofobia, embora evidências indiquem que a infecção pode ter passado de macacos para humanos através do contato sanguíneo em feridas causadas durante as caçadas.

Atualmente, a ciência sustenta que a origem da pandemia pode ser remontada a 1920 e que as transformações do transporte e outras mudanças sociais, propagaram mundialmente o vírus nos anos 60.

Segundo dados da ONU, apenas metade dos afetados atualmente tem acesso ao tratamento. Assim, a AIDS, longe de ser punição divina – como alguns representantes de credos fundamentalistas apontam – parece um flagelo típico de um sistema onde as regras ditadas pela apropriação privada dos lucros regem, enquanto as crises econômicas, ecológicas, e também a de qualidade de vida, são socializados sem escrúpulos.

Socialismo ou Barbárie

Como todas as pandemias da história, apesar do desenvolvimento científico, o coronavírus não escapou das hipóteses de conspiração que o associaram à guerra comercial China-EUA e ao desenvolvimento de armas biológicas, nem dos episódios xenofobia contra a qual os agentes de contágio são supostos, como migrantes chineses e turistas em diferentes países europeus. Além disso, como em outros tempos, o desenvolvimento do transporte contribuiu para sua rápida disseminação e, apesar das informações que temos mais amplamente do que nos tempos medievais, seguem circulando “boatos” que recomendam tratamentos ridículos para evitar infecção, sem qualquer base científica.

É que, como Albert Camus escreveu em seu romance, A Peste, de 1947, “a praga não é festa à medida do homem, portanto o homem diz que a praga é irreal, é um sonho ruim que tem que passar.” Talvez aí reside a proliferação de fantasias, farsas, hipóteses que envolvem todas as pandemias.

“Embora as bactérias da peste negra não se assemelham à gripe espanhola ou a gripe espanhola não compartilhe o genoma com o vírus da imunodeficiência adquirida ou covid-19, todas essas pandemias têm uma coisa em comum: elas se espalham e continuam a se espalhar em sociedades onde infraestrutura e os recursos disponíveis para lidar com eles são desiguais.”

Não é o mesmo atacar a infecção em países imperialistas como em países saqueados pelo imperialismo; o acesso a esses recursos também não é o mesmo para as classes dominantes como para os trabalhadores, populações migrantes e outros setores afetados pela discriminação.

Como escreveu a revolucionária internacionalista Rosa Luxemburgo em 1915, em seu conhecido Folheto Junius: “Friederich Engels disse uma vez: ’A sociedade capitalista enfrenta um dilema: avanço ao socialismo ou regressão à barbárie’. (…). Nós lemos e citamos essas palavras com leveza, sem ser capaz de conceber seu terrível significado. (…). Assim nos encontramos hoje, como profetizado por Engels uma geração atrás, ante da terrível escolha: ou triunfa o imperialismo e causa a destruição de toda cultura e, como na Roma antiga, despovoamento, desolação, degeneração, um imenso cemitério; ou triunfa o socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo, seus métodos, suas guerras.”

E por que não, também contra pandemias. Porque, um pouco diferente, em alguns aspectos e muito semelhantes, em outros, o coronavírus será outra pandemia na qual se mostra que, embora suas raízes estejam na biologia, a sociedade capitalista tem sua parcela de participação para transformá-lo, propaga-lo e dar-lhe um viés letal que afeta de forma diferente os setores mais explorados e oprimidos.

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