Resistente e engajado, o carnaval 2020 foi inspirado nos desfiles críticos dos anos 1980. A comparação, feita pelo sociólogo Tiaraju Pablo ao Brasil de Fato na segunda-feira (17), se confirmou neste fim de semana em todo o país, seja nos desfiles mais grandiosos ou nos bloquinhos de rua menos pretensiosos.
“O samba sempre cumpriu um papel de contestação e organização”, avalia Tiaraju, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e fundador do Centro de Estudos Periféricos.
Em São Paulo, por exemplo, a primeira noite de desfiles foi marcada por homenagens a personalidades negras importantes, que ajudaram a construir a história do país, e por manifestações políticas contrárias ao governo de Jair Bolsonaro.
Na segunda noite, o destaque ficou para temas como o protagonismo das mulheres. A Mocidade Alegre celebrou as orixás femininas. Obá, Oyá, Yabá e Oxum foram apresentadas na avenida pela fé em um mundo melhor através do empoderamento feminino.
Folia na periferia
O Bloco Vem Para o Trem das Onze é um dos 10 blocos do carnaval deste ano, na região da Subprefeitura Jaçanã Tremembé. Pela primeira vez, a cidade abrigou desfiles de blocos de carnaval em todas as 32 prefeituras regionais.
Em 2020, de acordo com dados da Prefeitura, a quantidade de blocos cresceu 62% em relação ao ano passado, passando de 490 para 796.
No Jaçanã, é “um desafio atrás do outro”. O grupo de oito amigos começou com uma latinha de tinta na rua e dois foliões. No segundo ano, em 2013, conseguiram uma estrutura “um pouco melhor”: um carrinho de feira com uma caixa de som.
“A ideia é dar força à comunidade, é fazer o morador entender que no bairro é possível fazer uma grande festa. Quando a festa chega no bairro e a comunidade se apropria fica tão bonito quanto em qualquer outro lugar. É importante isso acontecer na periferia. É importante o morador entender que ele pode fazer parte disso, não só na televisão”, afirma Marina Moreno, de 45 anos, é uma das oito fundadoras do grupo, que desfila todo sábado de carnaval, às 18h, no bairro da zona norte de São Paulo.
Entre as vantagens dos bloquinhos da periferia, a segurança é um ponto destacado por Wagner Ufracker da Silva, o “Zé da Lua”, de 43 anos e fundador do Bloco do Baião, de São Miguel Paulista, região leste de São Paulo.
“Às vezes estando na periferia, tem mais segurança do que ir para o centro da cidade, porque às vezes você vai para o centro da cidade, tem arrastão. E na periferia não se vê tanto isso, porque as pessoas respeitam, é na comunidade”, afirma Silva, que mora em São Miguel Paulista desde que nasceu. No dia que o bloco sai na terça-feira de carnaval, os integrantes colocam brinquedos, máquinas de pipoca e de algodão doce nas ruas, criando um ambiente familiar.
O foco do Bloco do Baião é a diversidade das periferias de São Paulo ao levar o forró para o carnaval. O bloco, que começou com cinco integrantes hoje tem cerca de 25, surgiu no centenário de Luiz Gonzaga, no dia 24 de junho de 2012, também dia de São João, na Praça do Forró, em São Miguel Paulista, onde a concentração de nordestinos é expressiva.
Em São Bernardo, crianças engajadas
“Como vocês se atrevem?
Apagar a minha história
Limitar minha memória
Massacrar nossa nação”
A referência direta à frase da jovem militante ambiental Greta Thumberg , Como vocês se atrevem, foi o fio condutor da folia do bloco EuRECA (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente), que tomou as ruas de São Bernardo do Campo na sexta-feira (21).
Há quase três décadas o grupo se reúne para brincar o Carnaval com reflexões sobre os direitos da infância e da juventude. O enredo de 2020 dialoga diretamente com as preocupações e questionamentos dos grupos de crianças e adolescentes ligados ao bloco.
A questão ambiental tem caminhado para se tornar uma pauta da juventude global e reação das ruas da cidade do ABC paulista comprovam esse cenário. Comerciantes e transeuntes pararam para ver o bloco passar e alguns se juntaram ao batuque.
LGBT+ Contra Bolsonaro
Muito glitter, carão e resistência. Assim foi a passagem do MinhoQueens pelas ruas do centro de São Paulo. O bloco saiu da esquina mais famosa da capital, Av. Ipiranga com Av. São João, neste sábado (22), e arrastou milhares de pessoas embaladas por divas da música pop e por gritos de protestos contra o presidente Jair Bolsonaro.
Vindo do Rio de Janeiro, Yuri Oliveira de Almeida destacou que por conta do atual governo de Bolsonaro, conhecido por declarações homofóbicas, estar em um bloco onde se sente representado e acolhido é fundamental. “É um espaço de todos e todas”, disse.
Folia contra a homofobia também em Recife
Em 2020, o Bloco a Diversidade completa 10 anos, sendo um dos pioneiros em levar no estandarte as pautas e as cores da luta LGBT em Pernambuco.
Fundado por cinco mulheres, a primeira edição do bloco saiu com o lema “Minha cama, minha vida”, brincando com o nome da então política social de moradia do governo Lula, “Minha casa, Minha Vida”, pautando direitos relacionados à sexualidade e orientação de gênero, e, a cada ano, um lema diferente levanta essas questões
“Todo ano o bloco traz um mote, um tema. No ano passado foi ‘Ninguém vai voltar para o armário’ e nesse ano é o ‘Terrível é a cara do preconceito’, em cima dessa questão da LGBTfobia”, explica Irene Freire, coordenadora do bloco.
No Bloco da Diversidade, as camisas são trocadas por dois quilos de alimento não perecível. A proposta do bloco é se juntar com a Articulação e Movimento de Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans-PE), a fim de doar os alimentos para pessoas trans em situação de vulnerabilidade.
Provocação e engajamento na capital mineira
Desde seu renascimento, o carnaval de Belo Horizonte se mistura com a política. Proibido e desestimulado pela prefeitura nas gestões de Marcio Lacerda (na época, do PSB), centenas de blocos de rua organizam a festa como uma forma de resistência e pelo direito ao lazer e à cidade.
É assim que nasce também o Bloco Tchanzinho Zona Norte, em 2013, homenageando o grupo É o Tchan e denunciando as desigualdades regionais de uma Belo Horizonte focada no eixo Centro-Sul. Com muita ironia e bom humor, o contexto político nacional também entra na mira do bloco que ano passado “foi para Cuba” e, este o “tchanzinho Zona Norte irá ao fim da Terra Plana”.
O tema denuncia a onda de notícias falsas (fake news) que tem assolado o país. O próprio bloco foi também alvo de fake News quando, em 2019, correu a notícia de que seu desfile tinha sido cancelado.
Circuito Mangueirosa: o resgate do Carnaval de Belém do Pará
Belém já figurou entre os maiores carnavais do Brasil e a valorização da cultura local é prioridade do Circuito Mangueirosa O evento é realizado na época do Carnaval por seis produtoras locais, que se uniram com o objetivo de resgatar o Carnaval paraense.
Este ano são 50 atrações incluindo Pitiú, Revoada e Banzeiro e a expectativa de público é de que 60 mil pessoas participem. A organização diz que além de fortalecer a cultura, o evento gera 300 empregos diretos e 1,2 mil indiretos.
Maurício Viana, da Melé Produções, uma das organizadoras do evento, conta que a ideia de criar o circuito surgiu quando as seis produtoras envolvidas decidiram fazer um grande festival no carnaval, justamente, incomodados, porque nessa época do ano, a cidade costumava ficar esvaziada por falta de opções culturais.
“A gente está tentando fazer um carnaval paraense com atrações, músicas paraenses priorizando a cultura do Pará. Lógico que a gente abre as portas para outros outros ritmos, outras referências, outros artistas de fora, outras músicas. Mas a gente quer dar uma cara paraense para o carnaval paraense, porque o Pará é uma terra muito criativa, muito quente em vários e culturas. Então, a gente está usando dessa cultura para fazer esse carnaval genuinamente paraense e eu acho que essa toda é a diferença. O Carnaval da Bahia, a gente sabe como é; o Carnaval de Recife a gente sabe como é. Então, a gente não queria ser só mais um Carnaval, sendo que a gente têm algo tão rico aqui dentro na nossa terra”, pontua.
Entre os ritmos do Carnaval de Belém estão: brega, lambada, carimbó, batuques, carimbó chamegado, frenético e muitos outros ritmos
Em Porto Alegre, “Não é não!”
A programação do Carnaval de Rua 2020 de Porto Alegre começou neste final de semana com desfiles previstos até a primeira semana de março, nos sábados, domingos e segunda e terça-feira de Carnaval. Nos dois últimos dias, 7 e 8 de março, os desfiles serão realizados na Orla do Guaíba, próximo à Usina do Gasômetro.
Banheiros químicos foram disponibilizados ao longo do percurso. A estrutura conta também com bares e equipes de apoio, trio elétrico, iluminação, segurança privada, limpeza, ambulâncias UTI móvel e brigadistas.
Campanha Não é Não!
Até o dia 29, a Diretoria da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher, em parceria com o Departamento de Política para as Mulheres da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, realizará a campanha de conscientização Não é Não!, com o objetivo de conscientização e enfrentamento aos crimes de estupro e importunação sexual.
MST: Carnaval e Luta em Curitiba
A rua Marechal Deodoro da Fonseca é trajeto conhecido de quem participa de manifestações públicas no centro de Curitiba. Por ali, milhares de pessoas já tomaram o lugar dos automóveis para erguer suas bandeiras por educação pública, pelo direito das mulheres, por #Elenão e tantas outras. Seja em lutas junto à população urbana, ou marchando por reforma agrária, camponeses e camponesas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também conhecem aquele percurso.
Neste domingo de Carnaval (23), a Marechal se transformou em “avenida” e uma multidão se organizou em desfile, na maior festa popular do Brasil. A festa contou com cerca de 30 integrantes do MST de todas as regiões do estado juntam sua alegria, cores e ritmos como parte dos 430 componentes da Escola de Samba Leões da Mocidade.
O grupo de Sem Terra está em Curitiba desde o dia 4 de fevereiro, no Curso de Formação Política do Carnaval. As formações diárias foram de teoria, história e técnicas musicais e artísticas, oficinas de confecção de alegorias e fantasias, até os ensaios junto aos demais integrantes da Leões
De norte a sul do Brasil, o MST brinca e constrói o Carnaval, de diferentes formas, conforme realidade de cada região. No caso do Paraná, Igor Igor de Nadai, educador e músico do MST que integra a organização dos cursos e da batucada do movimento, explica que a opção tem sido por aprender e trocar experiências com as Escolas.
“Para nós, essa relação do MST com as escolas de samba é uma troca legítima e necessária, de nos ensinar esse legado de conhecimento acumulado. É também o momento em que o MST, nós, Sem Terra, levamos a nossa voz, nossas demandas, as nossas caras, as nossas mãos, inclusive o barro que a gente carrega na sola do pé pra avenida e pras Escolas de Samba”.
Rio de Janeiro – o samba de protesto
A Estação Primeira de Mangueira, que venceu o carnaval de 2019 com o refrão “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. se apresenta agora como a “Estação Primeira de Nazaré”, no “A Verdade Vos Fará Livre”. O nome da música faz uma referência explícita ao jargão utilizado pelo presidente Jair Bolsonaro, em sua campanha nas eleições de 2018: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, João 8:32, da Bíblia Sagrada.
A versão da Mangueira, no entanto, traz um “Jesus da gente”, de “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, filho de pai carpinteiro desempregado e de mãe Maria das Dores Brasil. O samba-enredo foi assinado por Manuela Oiticica, a Manu da Cuíca – que emplacou a canção do carnaval deste ano – ao lado de Luiz Carlos Máximo.
“Será que todo povo entendeu o meu recado? Porque de novo cravejaram o meu corpo, os profetas da intolerância (…) Favela, pega a visão, não tem futuro sem partilha nem Messias de arma na mão”, conforme trecho da letra.
“Se fala tanto em Cristo, mas onde ele estaria hoje? Onde ele teria nascido? Ele teria nascido pobre. Ele poderia ter nascido na Mangueira. Se ele tivesse nascido no Morro da Mangueira, como é que seria sua história? O que o estado faz em geral com os jovens moradores de favela?”, avaliou Manu da Cuíca, compositora do samba da mangueira, em entrevista ao Brasil de Fato.
RJ: Enredo crítico motiva grupo de acesso
Logo na abertura do desfile da Série A (grupo de acesso) do Rio de Janeiro, na noite de sexta, 21, o presidente Bolsonaro recebeu sua primeira crítica no Carnaval 2020 em sambódromos. A escola carioca entrou na Sapucaí com o enredo “O conto do vigário”, e no final do desfile apresentou um boneco do palhaço Bozo com uma faixa presidencial e fazendo o símbolo da “arminha”, gesto característico de Jair Bolsonaro.
Ao longo do desfile, a plateia se dividiu entre aplausos e vaias. O Carnaval deste ano promete ser um dos mais politizados dos últimos anos. Nas ruas, diversos blocos montaram suas apresentações voltadas a críticas ao atual governo.
Depois da passagem do boneco, a ala “Bloco Sujo” fez uma homenagem aos blocos de rua que se manifestam contra o descaso do poder público. Os participantes estavam vestidos de marinheiro e melindrosa, carregavam estandartes com as palavras “Educação”, “Cultura”, “Saúde” e “Democracia”.
Edição: Douglas Matos.